DEMOCRACIA

Era para serem recebidos por Lula, mas familiares de desaparecidos políticos encontraram a polícia

Decepção. Numa semana dedicada à discussão dos 44 anos da Lei de Anistia no Brasil e à luta por Memória, Verdade, Justiça e Reparação, familiares de mortos e desaparecidos políticos esperavam ser recebidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para entrega de uma carta em que pedem o reestabelecimento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Mas a manifestação realizada em Brasília, no dia 30 de agosto, Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, foi recebida por um aparato policial.

Infelizmente não fomos recebidos pelo presidente Lula, em que pese os vários pedidos de audiência aos responsáveis pela agenda. Marcamos nossas reivindicações num ato em frente ao Palácio do Planalto sob a presença intimidatória da polícia de Brasília, que ameaçava nos tirar de lá. Resistimos”, lamenta Diva Santana, 78 anos, irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Reidner Coqueiro, desparecidos políticos que aderiram à luta armada pelo fim da ditadura civil-militar no Brasil, na Guerrilha do Araguaia.

Diva é integrante do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e era Conselheira da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Lei 9.140/95. Com a função de investigar, encontrar e dar uma resposta às famílias de desaparecidos políticos, assim como reconhecer mortes ocorridas em decorrência da repressão e reparar seus familiares, a CEMDP teve a sua extinção aprovada no último mês do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Policiais Militares do Distrito Federal tentam encerrar manifestação de familiares dos mortos e desaparecidos políticos

Com a eleição do Lula, a reinstalação da CEMDP passou a ser considerada de “máxima prioridade” pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Entre os dias 24 de março e 2 de abril, o Poder Executivo relembrou os 59 anos do golpe civil-militar quando estabeleceu institucionalmente a “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”. Pela primeira vez, em mais de cinco décadas de luta por memória, verdade e justiça, os familiares de mortos e desaparecidos pelo regime militar no Brasil foram recebidos pelo Estado brasileiro para um momento de escuta. E aproveitaram o momento para cobrar o cumprimento da promessa da volta dos trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Na ocasião, o ministro Silvio Almeida repudiou o ato ilegal cometido pelo governo Bolsonaro e reforçou a importância da CEMDP. “A Comissão de mortos e desaparecidos não é resultado apenas da vontade de um governante, mas sim de uma política de Estado do Brasil amparada pela lei e tratados internacionais”, declarou.

Antes, o próprio presidente Lula havia manifestado, durante café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto, em 6 de abril de 2023, o compromisso em recriar a Comissão. Na ocasião, Lula afirmou que faria a assinatura assim que recebesse o documento, e que ele e a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) fizeram o possível durante seus governos “para resolver um problema histórico” do país. Contudo, não foi o que aconteceu.

Após quatro meses desde a declaração do presidente – e oito meses desde o início do governo – o colegiado ainda não retomou seus trabalhos. Em seu terceiro mandato, o presidente Lula nunca recebeu os familiares dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil, mas foi até a Argentina participar de um encontro com o grupo de mães e avós da Praça de Maio. Um coletivo de mulheres formado para cobrar explicações do Estado argentino pelo assassinato e desaparecimento de milhares de jovens durante a ditadura no país.

As Mães e Avós da Praça de Maio são uma inspiração na defesa da democracia na América Latina. Emocionado com o nosso encontro de hoje“, escreveu Lula em postagem nas redes sociais. O gesto aumentou a expectativa dos grupos que lutam por Memória, Verdade, Justiça e Reparação no Brasil.

Eu queria que do jeito que o presidente Lula abraçou as Mães da Praça de Maio, na Argentina, ele dissesse ‘o Estado falhou com vocês, nós falhamos, vocês ficaram abandonadas’. Não precisava nem me abraçar”, desabafou Mercês Castro, 64 anos, durante ato na capital federal. Há mais de cinco décadas ela busca os restos mortais de Antônio Teodoro de Castro, o irmão assassinado durante a Guerrilha do Araguaia pelos militares.

Confiante na luta protagonizada pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil, a professora Vera Paiva, do Instituto de Psicologia (IP) da USP, participou em Brasília das atividades que foram realizadas entre os dias 28 e 30 de agosto, exigindo do Estado a volta da comissão responsável pela busca e identificação das pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Vera é filha de Rubens Paiva, engenheiro civil e político, dado como desaparecido em 1971 e integrava a coordenação da CEMDP. Ela conta que a manifestação realizada no dia 30, em frente ao Palácio, fez com que o governo mandasse um representante da Secretaria Geral da Presidência, Cândido Hilário Garcia de Araújo, para conversar com os familiares.

Representante da Secretaria Geral da Presidência, Cândido Hilário Garcia de Araújo, conversa com grupo de manifestantes

A conversa não apresentou resolução e o grupo fez a leitura pública, na presença do representante da presidência, da carta elaborada pelos por familiares de mortos e desaparecidos políticos em conjunto com organizações da sociedade civil e defensores da democracia brasileira.

São quase 60 anos de buscas. Mais de 21.500 dias de espera, poucos avanços e muitos retrocessos, principalmente os ocorridos nos últimos sete anos”, diz trecho do documento. O texto afirma que “os trabalhos desta Comissão ainda são imprescindíveis para garantir o esclarecimento da Verdade, o resgate e a construção da Memória e a aplicação da Justiça contra a impunidade dos crimes cometidos”.

Em meio ao jogo de empurra, o protesto dos familiares terminou concorrendo com um ensaio da banda de fuzileiros navais. Enquanto militares desfilavam com seus uniformes e baionetas, os manifestantes reafirmavam: “Pela vida, pela paz, tortura nunca mais“.

Entre os encaminhamentos para que se dê prosseguimento à busca dos mortos e desaparecidos políticos no país, um novo ofício deverá ser encaminhado à secretaria solicitando, uma vez mais, uma audiência dos familiares com o presidente Lula. Também será continuada a campanha por reforçar assinaturas a um Manifesto pela Reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O documento foi lançado em 26 de junho, data internacionalmente dedicada ao combate à tortura, e já conta com mais de 2.500 assinaturas. O texto está disponível também em inglês, francês e espanhol.

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