Câmara Cascudo é questionado com livro de Lobato e carta irônica

A estátua à frente do Memorial Câmara Cascudo, na Cidade Alta, em Natal, recebeu intervenção artística que usa a relação do folclorista com o escritor Monteiro Lobato para questioná-los. A intenção do autor, que prefere não se identificar, é “atacar o posto de intelectual” que Cascudo ocupa e “deixar nítido seu caráter antipopular e elitista, assim como Lobato, seu ‘amigo bandeirante da Literatura Brasileira’”.
Um livro rasurado de Lobato foi colocado aos pés do monumento, que segura uma carta irônica supostamente escrita pelo cânone potiguar esculpido em bronze. O texto também foi colocado na caixa de correspondências do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e por baixo da porta do Memorial.

A ação foi realizada em 10 de outubro, às 5h da manhã. O livro permaneceu no local por três horas e meia, quando foi retirado por um homem que vigia carros no local, de acordo com o autor. O vídeo do ato foi publicado nos perfis Mangue Cine e Mangue Zine, em 21 de outubro.
O performer explica que o trabalho é fruto de uma pesquisa artística que recolhe objetos em espaços públicos e os modifica para devolvê-los à cidade.
“Encontrei na rua um livro de Monteiro Lobato chamado ‘Histórias de Tia Nastácia’, de 1972. Ao ler as histórias, percebi o conteúdo racista e antipopular que predominava no livro, desde a capa que esconde Nastácia, colocando-a lá atrás, no verso da capa. Após pintar o livro, oferecendo outra narrativa pra ele, uma antirracista e popular, passei a investigar onde iria expor. Então, comecei a buscar relação de Lobato com Natal.”, detalha.

Assim, chegou à pesquisadora Marisa Lajolo, que se debruça sobre cartas entre os amigos Câmara Cascudo e Monteiro Lobato. “A autora afirma que Lobato apenas via em Cascudo um agenciador de livros, isto é, não via nele um intelectual”, lembra. Por essa razão, o livro de um parou nos pés do outro.
“A intenção central é causar o questionamento a imagem de Câmara Cascudo, por meio de uma linguagem não violenta. Para que, com isso, possa chegar a um público mais amplo sem ser afastada pelo rótulo de vandalismo”, pontua.

A estátua já foi alvo de outras intervenções. Em maio de 2022, o personagem histórico teve as mãos pintadas de vermelho com a frase “Fascistas não passarão!” escrita na base do monumento.
Confira a carta que compõe a intervenção:
Sou um estátua franzina que é ofuscada pelas árvores da praça. Meu idealizador foi muito injusto comigo: por que me fez tão pequeno? Desde 10 de Fevereiro de 1987 permaneço parada do mesmo jeito, em protesto. Meus braços tesos para baixo nem sentem mais os dedos de tanto formigamento. Olhos abertos mesmo quando o sol encandeia, rosto parcialmente elevado. Pelo menos assim posso ver a cruz da Catedral. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Botaram essa mão embaixo de mim, na qual meus pés estão grudados como o prédio de estilo neocolonial atrás de mim adere ao chão. Há mais de 35 anos que tento entender a ideia dessa mão. Se era para me enaltecer, então por que fizeram a maior do que eu? Dizem que é a mão do povo me fazendo carinho. Mas não é isso que sinto daqui de cima; sim, sinto-me pequeno, incapaz de estar com a vista nessa altura, dependente de algo muito maior que eu. Vejo-me como um pequeno pássaro abandonado no ninho pela mãe por não saber voar. Só sabia vender livros.
Essa mão estranha projeta-se de um púlpito e serve de púlpito pra mim. Sou um homem tipicamente modernista e conservador e preciso que tenha paciência comigo. Então quem é a escultura? A mão ou eu? A gente parece duas coisas diferentes, não é? De fato, somos, eu sou bronze e eles são concreto. Eu sou a tecnologia de reprodução da Itália, eles são os pedreiros do Passo da Pátria. Digo eles, pois apesar de ser uma mão como conjunto - como os prefiro ver -, insistem que são dedos como sujeitos. São 5 os que se reivindicam e quando se estão juntos operam como se fossem conter água. É meio oco o meio da mão, formando um desnível que parece me obrigar a ficar teso. Não é porque sou uma estátua que permaneço parado, tenho dois motivos outros.
O primeiro acabei de citar: o desnível da mão em que piso. Você já tentou ficar em pé numa mão côncava? Além disso, tamanha dureza conota uma certa intelectualidade e ajuda a convencer meus clientes a comprar o livro. Este, que carrego nos pés, é similarmente diferente de mim e da mão. Papel introjetado entre o bronze e o concreto. O que nos une? Por que estamos todos juntos aqui reunidos em frente a esta Igreja?
Unimo-nos pela profissão! Pela minha profissão de vender livros. A mão é meu palanque, como me ensinaram os Alves. Me faz ser mais alto do que eu poderia ser, assim os compradores podem me ver parado no tempo. Quando eles chegam à base da mão e veem o livro aos meus pés, é sucesso de venda pois piso na altura dos olhos deles. Nos unimos em última instância para que você olhe para o livro e compre-o.

Passo o dia parado aqui apenas vendendo as ideias dos outros, muitas vezes nem leio-as direito. Obviamente tenho minhas convicções romanticamente alemãs que, quando todos dormem, escrevo. Pareço ter um coração bom na minha ingenuidade. No fundo, sou bom e muitas vezes ignorante, o que me credencia como ator perfeito para o papel de herói.
Cri em Deus Pai Todo Poderoso e tomei decisões erradas na minha caminhada regressa, como abraçar o verde ou usar uma camisa suja de pele. Também sou muito curioso, o que muitas vezes me leva a acreditar em universalismos estranhos e em estreitamentos do mundo dos outros, o que torna minha bondade maldosa. Paralelismos supra intensos, objetificando para me subjetivar. De fato fiz muito pela história de onde nasci: a capital do sertão. As inúmeras incursões no interior do estado, quando me formei com o povo em literatura oral, foram indispensáveis.
Mas é dos belos campos do Tirol que penso, os quais anunciei em carta ao meu querido amigo, um bandeirante da Literatura Brasileira, que percebeu meu talento para venda de livros. Ele me inspirou! Talvez por isso esteja alinhado ao Forte dos Reis Magos, ícone da colonização do povo ao qual dedico meus estudos. De frente para a Catedral antiga e para o marco zero. No centro da cidade, no meio da história.
Rio Grande do Norte, Brasil, Mundo. Fui condecorado por um amigo importante que gostava de uma ideia que vendi por alguns meses. Depois de anos, quando fui entender do que se tratava, devolvi a condecoração, porque sou justo, né? Minha profissão, essa de vendedor de livros, me faz assim maleável como bronze em fundição na Zani. Então, já que tenho o poder mágico de contribuir para a história do meu povo sendo porta voz de ideias que não entendo, trago hoje esse livro cujo autor eu esqueci.
Assinado, Estátua de Câmara Cascudo
