“Sentada na calçada de canudo e canequinha, tchublé, tchublim, eu vi uma bonequinha, tchublé, tchublim, fazendo uma bolinha, tchublé, tchublim, Bolinha de Sabão.” Eu amava essa musiquinha, e a boneca Bolinha de Sabão, é claro! Mas naquela época eu era “menino” - acho que quem estava perto de mim entendia que eu não era. E as bonecas me encantavam para além do entendimento ou julgamento de qualquer adulto.
Além da Bolinha de Sabão, havia a Lu Patinadora. Aff... Era louca por ela, também. Foi por conta da Lu que aprendi a andar de patins. Mas não tinha capacete, nem joelheiras, nem tornozeleiras de proteção como ela. Isso era pra gente rica. Inclusive a boneca. E eu era a sexta filha de uma professora e de um carpinteiro. Sem condições para tanto. Principalmente quando eles não entendiam ainda que eu era a sexta filha e que desejava aquelas meninas de plástico como ninguém.
Mas – sempre há um MAS – eu tinha uma prima maravilhosa que vinha passar as férias de final de ano comigo. E o que ela trazia?! BONECAS! Uma infinidade delas: a turma da Moraguinho – dava vontade de comer cada uma delas de tão cheirosas que eram a frutas; as Chuquinhas – cheias de acessórios e cheirando a pó... “Eu as maternava” como disse Zila Mamede em seu poema Milharais. E era feliz enquanto elas todas habitavam minha casa nas férias.
Foi com essa prima que assistimos a estreia do Xou da Xuxa, programa que me levava para outro universo: o do encantamento de poder ser quem eu queria ser, num mundo mágico e colorido, para além do arco-íris.
Mesmo não me deixando ser menina, meus pais não me obrigaram a ser menino e isso me deu uma infância menos dolorosa. Pelo menos dentro de casa e nas ruas por onde meu horizonte infantil alcançava. Criada brincando nas ruas – na minha época crianças brincavam nas ruas – livre e quase sem limites. Eu corria quarteirões, subia em árvores para me esconder quando brincávamos de esconde-esconde ou tica-cola; brincávamos de pulava corda, de roda, de bila; disputávamos corridas, com ou sem bicicletas...
Nos finais de semana, tomávamos banho de açude (quando estavam cheios, claro), usando biquínis feitos de crochê, feitos por minhas irmãs, flutuando sob as águas em boias de pneus que nos permitiam ir até o fundo. Como era bom. Fazíamos piqueniques em baixo das algarobas.
Tudo era simples, mas tudo era bom... Sobretudo a liberdade e o sonho.
Outra coisa pela qual tinha verdadeira paixão era a história de gravar fitas K7 pra ouvir initerruptamente em toca-fitas. Eu tinha um portátil, pretinho. Andava com ele pra cima e pra baixo e com uma caixa de madeira feita sob medida pra guardar aqueles K7’s que eu queria levar junto com o aparelho de som para as praças, as viagens, os encontros de amigos. Às vezes eu era a DJ hahahahahahahaha...
Aprendi inglês por conta das músicas, olha só! Fiz amigos estrangeiros por conta disso e por escrever cartas em inglês através de uma rede social da época chamada Pen Pal. Funcionava via Correios. Cartas escritas à mão, diga-se de passagem. Os endereços eram publicados em uma revista chamada SpeakUp. Eu era assinante.
Tudo aquilo era muito mágico pra mim. E saber inglês me fazia mais diferente ainda das outras crianças, sobretudo dos meninos, com quem não compactuava muito da minha vida. De alguma forma, ser a criança viada inteligente me protegia de certas violências, atraía admiração até.
Esse tempo era muito bom, tempo em que eu era vista como uma criança diferente porque gostava de coisas diferentes, mas não por que representava algum “perigo” pra família tradicional brasileira. Tempo em que eu já era uma menina aos meus olhos e tentava marcar minha diferença quanto a ser menino, não fazendo nada que eles costumavam fazer. Tempo em que minha turma era praticamente de meninas e que seus pais confiavam em mim quando estávamos juntas.
Felizmente, acho que quem estava perto de mim sabia exatamente quem eu era. Sabiam que eu era uma menina que gostava de brincadeira de meninas, e de músicas em inglês, e as da MPB; gostava da Xuxa e de desenhos animados, de brincar de rua e fingir que era mãe de um monte de bonecas cheirosas... Nem que esse maternar-se acontecesse somente nas férias!