Um dedo (ops) de prosa sobre masculinidade frágil
Natal, RN 9 de dez 2023

Um dedo (ops) de prosa sobre masculinidade frágil

8 de novembro de 2023
4min
Um dedo (ops) de prosa sobre masculinidade frágil

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Aqui nesse mesmo espaço na Saiba Mais, escrevi em dezembro de 2021 texto com o título "Crônica de um exame de próstata anunciado" na qual relato com algum humor sobre minha felicidade ao receber exames gerais que atestavam minha saúde. Rins, baço, pâncreas, pulmões, estômago, sangue, até mesmo o fígado, tudo ok, firme e forte para mais uns anos de caminhada. Mas para os amigos só importava uma coisa: se eu havia feito o exame de próstata. 

Na verdade a curiosidade não é para saber se a próstata está no tamanho adequado, se ela inchou, se já foi detectado câncer, ou seja, possível óbito se não tratado. As perguntas se referem sempre ao chamado toque retal, na qual o médico introduz uma pequena parte do dedo no reto do paciente para conferir, com maior exatidão, após os exames de ultrassom, o tamanho da próstata do paciente (o que indicaria câncer ou não e em qual estágio. Um processo rápido, quase banal mesmo. Mas que é medo, trauma (e talvez fetiche) de 10 entre 10 homens brasileiros.

Explica-se: a ideia de que para a realização de um exame o médico introduza o dedo no ânus masculino, remete imediatamente à homossexualidade, que, como se sabe é inadmissível para o macho-hétero-pai de fanília-conservador. Portanto, o toque retal, ou seja, o próprio exame de próstata "diminui" a masculinidade, essa coisa frágil como um cristal que grande parte dos homens carrega consigo para bares, encontros sociais, trabalho, almoços de família, como uma caixa de Pandora, como as tábuas dos Dez Mandamentos de Moisés, algo sagrado e ao mesmo tempo tênue, quase mitológico mesmo.

Contudo, apesar do estigma, o exame é necessário, até pela pressão familiar, do médico, do trabalho. O Novembro Azul, para justamente a prevenção do câncer via exame, é divulgado de maneira intensa pelos Governos Federal e estaduais. Nesse caso nada mais "masculino" do que debochar da situação, do procedimento. Nasceram aí muitas piadas envolvendo o exame, digo, o toque. Ouvi, como todo homem que fez ou vai fazer, dezenas delas: "E aí, Cefas, o dedo do médico era grande?". "O médico te levou para um chope e um jantar primeiro?". "Melhor fazer o exame de novo para ter uma segunda opinião". Enfim, daria para encher este artigo somente com as frases, digamos, bem humoradas dos amigos.

Mas essa situação não carrega só humor. Há também preconceito explícito e mesmo radicalismo. Ouvi frases como: "No meu ninguém coloca o dedo, muito menos homem". "Aqui só é saída, entrada nunca". "Morrer todo mundo vai mesmo, no meu ninguém toca". Essa masculinidade frágil em relação ao ânus impede inclusive qualquer assunto sobre o prazer masculino nessa região, ainda que com a companheira, namorada, esposa. Para o "macho" a simples menção da região anal já incide na homossexualidade que, como já analisamos, tem que ser interdita, abolida, evitada. Enfim, assunto específico para outro texto.

O triste mesmo é saber que a masculinidade frágil mata. O câncer de próstata é o segundo mais comum entre os homens brasileiros (atrás apenas do câncer de pele não-melanoma). Em valores absolutos e considerando ambos os sexos, é o segundo tipo mais comum. Anualmente é registrada média de 60 mil novos casos confirmados. Em 2019, foram registradas no Brasil 15.983 (Dados do Atlas de Mortalidade por Câncer) mortes por câncer de próstata. Cabe a cada um de nós, homens, evitar fazer parte dessa trágica estatística por medos e tabus sem sentido.

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