CIDADANIA

Glênio Sá, 70 anos: o legado de coragem do único potiguar a lutar na Guerrilha do Araguaia

Sempre que o ritual no Dia de Finados terminava, Maria de Fátima Beserra de Sá parava na porta do cemitério para entreter os filhos enquanto a avó das crianças voltava até a sepultura para recolher algo que havia esquecido. Uma cena aparentemente comum que, aos poucos, passou a chamar a atenção. Os pequenos Gilson e Jana só começaram a achar estranho quando perceberam que o esquecimento virou hábito. Os irmãos não entendiam porque toda vez que iam ao cemitério a avó ou a mãe voltavam para pegar algo que haviam deixado para trás.

Questionadas pelos meninos sobre o que iam buscar, Neusa e Fátima desconversavam. Somente muitos anos depois, já adolescentes, Gilson e Jana descobriram que as cartinhas que escreviam à mão para o pai e deixavam sobre o túmulo, na esperança que ele lesse e enviasse resposta, estavam todas guardadas como documentos de um período difícil marcado pela força, dedicação e a coragem que o pai, o marido, o filho, o irmão, o líder comunista e o guerrilheiro Glênio Sá deixou como herança.

Na quinta-feira, 30 de abril, Glênio Fernandes de Sá completaria 70 anos de idade não fosse uma tragédia. Em 26 de julho de 1990, o fusca onde ele estava com mais três pessoas bateu de frente com um Opala, de placa fria adulterada. O motorista do Opala fugiu sem prestar socorro e nunca foi encontrado. O relógio marcava 15h40. Os passageiros retornavam para Natal depois de uma atividade de campanha no interior do Rio Grande do Norte. Morreram Glênio Sá e Alírio Guerra, dois dos principais dirigentes do PCdoB no Rio Grande do Norte que, naquele ano, disputariam uma vaga no Senado e na Câmara dos Deputados, respectivamente. Entre os sobreviventes, o dirigente municipal do PCdoB em Santa Cruz Valdo Teodósio e Antenor Roberto, atual vice-governador do Estado potiguar. O velório e o sepultamento marcaram um dos dias mais tristes da cidade. Os jornais registraram que mais de cinco mil pessoas foram se despedir dos comunistas.

“Se tiver papel e lápis escreva para mim, Gilsinho e mainha. Amarre numa estrelinha e jogue para mim”

A notícia da tragédia correu o Brasil. Glênio Sá era um dos nove sobreviventes da Guerrilha do Araguaia e único potiguar a participar da principal experiência de luta armada no país durante a ditadura militar que reuniu quase 70 pessoas. Natural de Caraúbas (RN) e caçula numa família de sete irmãos, sendo cinco homens e duas mulheres, morreu aos 40 anos de idade e ainda hoje é lembrado com carinho, emoção e reverência. Formado em Geologia na UFRN, passou os últimos anos de vida dedicado de corpo e alma à reconstrução do PCdoB no Rio Grande do Norte.

Coragem, força e dedicação são três palavras recorrentes que aparecem nos depoimentos de todas as pessoas com quem a agência Saiba Mais conversou durante o processo de produção desta reportagem. Predicados cultivados durante uma trajetória marcada pela luta em defesa da democracia e das causas sociais num país que briga contra sua verdadeira história e não está no retrato oficial.

Em ato pró-Lula em 1989, em Caicó (foto: acervo de família)

Glênio foi guerrilheiro, comunista, militante, preso, torturado e brigou pela própria liberdade. Resistiu, insistiu, amou, foi amado e segue vivo na memória das pessoas que passaram de alguma forma pela vida dele. Hoje, 30 anos depois da tragédia, o nome dele está gravado nas placas do Centro Cultural de Caraúbas, de ruas em Natal, Mossoró e Campinas (SP), além de batizar o auditório do PCdoB em Natal e um assentamento no município onde nasceu. No entanto, mais do que registros na parede ou vias públicas, as marcas de Glênio Sá ficaram na memória e também no coração de quem o conheceu:

– As pessoas têm uma visão equivocada do que era ser comunista, ele foge muito a esse estereótipo. Era afável, solidário, paciente, amigo, capaz de resolver qualquer divergência. Se perguntar para qualquer pessoa era isso. Então todos os anos é bem difícil para mim. Data de aniversário a gente comemorava em casa, com a família”, diz a viúva Fátima Sá, que vê nos filhos a semente germinada:

– A saudade é grande, muito grande. Cada um (dos filhos) encarou de um jeito. Vejo Glênio nos gestos de Gilson e Jana, constantemente”, conta.

Ficaram a companheira de vida Fátima, o primogênito Gilson e a caçula Jana. O destino não lhe deu mais tempo para conhecer Beatriz, a neta mais velha, e Manuela, a mais nova herdeira da família. Alguns rituais passaram dos filhos para os netos. O hino A Internacional que embalou os sonhos de Gilson e Jana, já fez Bia dormir e hoje soa como caixinha de música aos ouvidos da pequena Manu, de apenas um ano.

Sem a presença física da principal referência, mãe e filhos se uniram ainda mais no aperto e transformaram a memória de Glênio num campo de força que há três décadas os protege:

– Ficou o exemplo de humanidade, de uma pessoa que pensava no outro, altruísta. Meu pai foi um exemplo mesmo. Ele não era um comunista para o lado de fora, era assim que ele agia. E não era uma coisa fácil. Uma palavra que o define é coragem. Foi uma pessoa que deu a vida por uma causa. Não é para todo mundo”, destaca Gilson, o filho mais velho, que tinha 9 anos na época da tragédia, e lembra das primeiras palavras da mãe ao relatar o ocorrido:

– Cada um teve uma reação diferente pelo impacto. Jana teve uma retração, o que influenciou na forma dela encarar a vida. A primeira coisa que minha mãe falou foi se eu compreendia o que tinha acontecido e minha maior preocupação foi com Jana. Não sei se devido à criação, mas a gente nunca brigou. Talvez pelas dificuldades que a gente passou… já éramos bem pobres, ficamos numa situação muito ruim de vida e tivemos que nos ajudar ainda mais”, lembra.

Família contesta versão do “acidente”

A versão oficial do “acidente” nunca foi aceita pela família. Os arquivos abertos da ditadura militar em 2014 mostraram que as dúvidas sobre a causa da morte do ex-guerrilheiro mereciam, pelo menos, uma investigação mais aprofundada: documentos oficiais do Serviço Nacional de Inteligência revelaram que o comunista foi vigiado pelos militares pelo menos até 1989, uma década após a promulgação da lei da Anistia. Quatro meses antes da tragédia, Glênio participou de um evento em Natal em que citou nominalmente todos os agentes da repressão que o torturaram enquanto esteve na prisão:

– Era o Comitê em Defesa da Vida, na sede da OAB, estava lotado. Glênio se levanta e faz um desabafo, cita os principais torturadores. No final, na saída, eu disse: “Glênio, como você faz uma coisa dessa, citar o nome dos torturadores…”. E ele dizia que não iria mais acontecer nada, achava que não tinha mais ninguém. Mas quando ele sai da prisão, já sai jurado. E depois soubemos que ele foi vigiado 10 anos depois da lei da Anistia, a placa do Opala que bateu no carro dele era fria, de São Paulo… havia divergência no laudo da polícia”, recorda a companheira Fátima.

Além da perseguição e vigilância admitidas pelo próprio Estado, um fato ocorrido um dia após a tragédia reforça as suspeitas. A casa onde moravam Fátima, Gilson e Jana foi assaltava e os bandidos só roubaram documentos e livros de Glênio, além dos álbuns de fotografia da família.

Caçula, Jana tinha apenas seis anos de idade quando perdeu o pai. Das lembranças físicas, só restou uma única fotografia em que aparece ao lado de Glênio. Por sorte, a imagem não estava na caixa dos álbuns roubados. Nos últimos 30 anos, Jana se dedicou a lutar para preservar a memória do pai e se reinventou para constituí-lo no imaginário:

– Preenchi esse vazio com depoimentos de mainha, do meu irmão, de amigos, de parentes, além de leitura dos livros e documentos que ele deixou. Isso sempre me fez sentir mais próximo de painho, me ajudou a construir um ideal que eu pudesse de certa forma me espelhar. E o que eu ouço dessas pessoas é que os grandes traços dele eram a paciência e a amorosidade, características que seguiram com ele mesmo após os anos em que permaneceu preso, quando foi barbaramente torturado. Então, a imagem que tenho é de alguém que aprendeu a superar as dificuldades na vivência do sofrimento e que internalizou isso como lição de vida”, destaca a filha mais nova.

Jana ao lado de Glênio, Raimunda (avó) e Gilson: única imagem com o pai (foto: acervo pessoal)

Jana Sá assumiu papel político semelhante ao que o pai desempenhava. Ocupa espaço na direção estadual do PCdoB, dedicou-se à reorganização do Partido e tem uma visão humanista da política. Das características que herdou, cita o amor pelo mar, a impaciência nas pernas e admite que a militância política foi um caminho natural e inspirador:

– Seguir seu caminho na militância política, na direção do PCdoB, na luta que precisa ser permanente pelas liberdades democráticas, pelo direito dos trabalhadores, (semelhança) ao me indignar frente à qualquer tipo de injustiça, e na luta pelo direito à memória e à verdade, condições imprescindíveis para estabelecer a conciliação e a paz que nosso país tanto precisa hoje. Além, é claro, a disposição para seguir o caminho da luta”, reforça.

Sobre a imagem definitiva que guarda do pai, é direta:

– Quando penso no meu pai vem a imagem dele sorrindo e feliz”, diz.

Em família: um comunista que amava o mar, os bichos e encantado com a natureza

Glênio e Fátima: cumplicidade e amor eterno desde 1979 (foto: acervo da família)

Glênio e Fátima se casaram em 1979, quando o país ensaiava a transição lenta e gradual da ditadura para a democracia. O comunista sempre abriu o passado em relação às lutas do movimento estudantil em Fortaleza, a participação na Guerrilha, a prisão e as torturas. E Fátima logo percebeu que o período de violência havia deixado sequelas. As costas de Glênio, por exemplo, eram marcadas com cigarros, marcas das torturas:

– Desde que começamos a namorar notava ele sempre assustado. Achava Glênio tão bonito, mas tinha medo também no início e ele logo me contou toda a história. Em casa, falava sobre tudo isso. Como tinha sido, o que havia passado. A gente sabia que estava sendo seguido. Uma vez Glênio viajou a São Paulo e um cara bateu na porta perguntando por ele. Eu disse que ele não estava e o rapaz: “não está ou está viajando?”. Falei que como ele sabia mais do que eu que ele aguardasse. Às vezes quando saía de casa e voltava tinha gente escorado no portão em frente”, relata.

Fátima se tornou militante pela convivência com o marido. E apesar da dedicação de Glênio ao PCdoB, nunca se queixou da ausência dele nem em relação aos filhos:

– Ele era muito amoroso com os meninos, comigo. Em alguns finais de semana íamos para uma casa na praia de Zumbi, ele adorava o mar, colocava os meninos para dormir cantando a Internacional”, diz.

Nas lembranças de Gilson, o pai sonhava em criar cachorro, gato e galinha em casa

Nas lembranças de Gilson, o pai mirava o futuro e sonhava em morar com a família numa casa onde pudesse criar animais em liberdade, como cachorros, gatos e galinhas. Sobre a experiência no Araguaia, Fátima lembra que pelos relatos do marido, a beleza natural da região lhe chamou a atenção:

– Me relatou muito bem a beleza do Araguaia que viu descendo de barco, lembrou que balançava muito. Ficava feliz falando mata…”, recorda

Sobre o legado deixado pelo marido, ressalta a disposição e as experiências que conseguiu transmitir para quem conviveu com ele:

– Glênio deixou como legado a coerência, de abnegação, de coragem e a disposição de reconstruir o PCdoB. É referência para os nossos filhos, sua luta. Acho que as pessoas que conviveram com ele sentem isso”, afirma.

Irmãos comunistas, pai conservador e o lendário apartamento 115

Família em Caraúbas (RN): Glênio é o primeiro da ponta (dir)

Glênio era o caçula de uma família de sete irmãos. Os cinco homens eram comunistas, criados por uma mãe católica fervorosa e um pai tradicional de direita que apoiava um dos políticos mais conservadores da história do Rio Grande do Norte, o ex-senador Dinarte Mariz, ligado ao militares durante a ditadura. Para entender como os ideias de esquerda entraram na casa do seo Epitácio Martins Fernandes de Sá é preciso voltar no tempo, até a Caraúbas dos anos 1940, quando um vendedor de queijo chamado João do Açu atravessou a vida de Gilberto, o primogênito da casa.

Além de vender queijo, João do Açu tinha outras qualidades, o que acabaram despertando a curiosidade do garoto:

– Em Caraúbas tinha o João do Açu, comunista da linha ortodoxa. Ele vendia queijo e a gente conversava. Me apresentou uns textos, indicou livros, era bem simples. E depois fui estudar em João Pessoa e tentava entender a questão do partido”, conta Gilberto, hoje professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.

Gilberto foi atrás de mais informações para entender a mensagem do comunista João do Açu e acabou influenciando os quatro irmãos. Resultado: três dos cinco irmãos comunistas – Glênio, Gil e Epitácio – foram presos e torturados num determinado tempo da história. Só Gilson e Gilberto conseguiram escapar da ditadura.

Nos anos 1960, já morando em Fortaleza (CE), ajudou a fundar o PCdoB na capital cearense. Lá, dividiu apartamento com outros dois irmãos: Gil e o próprio Glênio, que chegou em 1968.

Parte dessa experiência, Glênio deixou registrada em “Araguaia, relato de um guerrilheiro”, escrito sem maiores pretensões a pedido de uma dirigente do PCdoB e que acabou virando um livro lançado em dezembro de 1990, após a morte dele.

A obra é dividida em sete capítulos: Os Precedentes, No Gameleira, Na Guerrilha, Dentro da Mata, A Traição, A Prisão e A Liberdade.

A obra é de fato um registro histórico. O potiguar começa falando sobre o início no movimento estudantil, o que o motivou a se engajar na luta armada e as principais recordações do período em que viveu outra vida mata adentro no sul do Pará:

– Dois anos após o golpe militar de 1º de abril de 1964, comecei o meu engajamento na ação política oposicionista, quando ainda fazia o curso ginasial, em Mossoró, maior cidade interiorana do Rio Grande do Norte. Em 1968, já em Fortaleza, participava ativamente do movimento estudantil secundarista quando ingressei nas fileiras do PCdoB. Na época já tinha lido algumas obras de Marx e de Lenin e a entrada no partido foi a concretização da minha entrada militante”, relata já na abertura do livro.

Gilberto, Gil e Glênio moraram juntos com outros amigos no mítico apartamento 115, da rua Clarindo Queiroz, em Fortaleza.

O apartamento era uma espécie de célula comunista onde, além das reuniões políticas, se debatia cultura, especialmente literatura e cinema. Eram tempos embalados por Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré. No cinema, a turma do Cinema Novo – Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Sérgio Ricardo – estava sempre na pauta:

– Eu tinha todos os discos da editora Elenco, dirigida pelo Aluísio de Oliveira, que lançou o pessoal da Bossa Nova. O apartamento 115 virou uma referência. Lembro da gente discutindo o filme Hiroshima mon amour, que era um filme político, mas também tinha um romance. Era no apartamento que as pessoas terminavam as reuniões e discutiam cultura”, lembra Gil.

Apesar de mais velho que o irmão, Gil passou a admirar o caçula e acompanhou toda a trajetória de Glênio. Ele cita a coragem como característica que mais lhe saltava aos olhos:

– Por onde Glênio passou, todos o viam como uma referência séria. Era muito afável, muito amado, muito determinado, responsável. Eu cheguei a dizer a ele: “eu queria ter a coragem que você tem”. Foi um exemplo para nós, um exemplo de desprendimento. A vida de Glênio era alimentada por sonhos libertários. Era um sonhador forte. Morreu seguindo esses princípios, lutou contra a injustiça social”, relata.

Pergunto como seo Epitácio lidava com tantos comunistas sendo ele um homem de princípios conservadores e Gil lembra de uma cena com o pai que lhe marcou. De volta a Caraúbas para uma visita, os dois sentaram na sala, ligaram a televisão e assistiram o telejornal informar sobre a morte do ex-delegado da Polícia Federal e conhecido torturador do DOPS Laudelino Coelho. A reação do pai confortou o filho:

– Quando meu pai viu a notícia falou na hora: “Mais um para o inferno”. Acho que foi uma forma dele se solidarizar comigo sem maiores explicações. Só disse aquilo: “Mais um para o inferno”. Pra mim, bastou”, diz.

No Araguaia, o relato de um guerrilheiro

A Guerrilha do Araguaia durou de 1969 a 1976 e era formada basicamente por estudantes secundaristas, universitários, operários e profissionais liberais. Todos sob o comando do ex-militar do Exército Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, e do comandante máximo Maurício Grabois.

Na época, Glênio Sá era estudante e desde 1968 morava em Fortaleza com  Gil e Gilberto. Antes de partir para o Araguaia, Glênio já tinha sido preso duas vezes, ambas no Crato (CE), em atividades políticas de panfletagem. Quando decidiu ingressar na luta armada, a opção não era consensual nem mesmo entre os irmãos comunistas. Gilberto, por exemplo, era contra. Mas nunca impediu o caçula de fazer o que queria:

– Antes de Glênio ir para o Araguaia ele passou lá em casa, eu já morava em São Paulo e não concordava com a luta armada. Mas a gente nunca divergia, não discutia, sempre nos respeitamos muito. E não é também porque eu não achava certo que não ajudei. Dei força, era aquilo que ele queria”, recorda o mais velho.

Muitas das razões que levaram Glênio Sá à Guerrilha do Araguaia estão no documento “Guerra Popular, Caminho para a Luta Armada no Brasil”, lançado pelo PCdoB na segunda metade dos anos 1960. Era o incentivo que o estudante potiguar precisava:

Um documento do PCdoB intitulado “Guerra Popular, Caminho para a Luta Armada no Brasil” incentivou-me a sair à procura do que existia de concreto sobre a preparação dos comunistas para a luta armada. Solicitei o meu deslocamento para o campo, usando como argumento minha origem sertaneja”, escreveu.

Fotos com os desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia

Sem informações sobre o paradeiro do caçula, os irmãos achavam que Glênio não tinha escapado com vida do Araguaia. Mas o destino tinha outros planos para a família Sá. Quando estava na Papuda, presídio de Brasília (DF), Glênio percebeu na cela ao lado a chegada de um novo preso. O rapaz era acusado de contrabando. No livro, o comunista potiguar descreve a cena:

– Estava nu porque tinha lavado e estendido sua única roupa. Ia ser transferido para uma cadeia no interior de Goiás e queria ver a família a limpo. Conversamos muito também e ele ficou muito comovido com a minha situação. Pedi-lhe para levar um recado para a minha família, quando fosse embora. Ele se prontificou imediatamente dizendo que ia pedir à filha para escrever para os meus parentes. Resolvi escrever o endereço da minha casa numa ponta de jornal. Pus o papel bem dobrado no bolsinho da minha bermuda. Chamei o carcereiro protestante e disse: “Meu vizinho está com frio. Leva essa bermuda pra ele”. Passou tranquilo, sem inspeção. Na manhã seguinte levaram meu amigo prisioneiro embora. Fiquei pensando se ele era mesmo um prisioneiro comum”, relatou.  

O que parecia o roteiro de um filme de ficção virou realidade. A carta chegou em Caraúbas, na farmácia da família Sá, enviada por Divina, a filha do prisioneiro da Papuda. Embora os cinco filhos de Epitácio fossem comunistas, o patriarca seguia a política da velha UDN, partido que dava sustentação à ditadura militar. No Rio Grande do Norte, Epitácio mantinha ligações políticas com Dinarte Mariz. E foi a ele que o pai de Glênio recorreu para libertar o filho caçula.

Gilberto, o filho mais velho e responsável por recrutar todos os irmãos homens para as fileiras do PCdoB, foi o escolhido pelo pai para tirar o irmão da cadeia. E o primogênito assumiu as rédeas, colocou o orgulho de lado, passou a ser o interlocutor da família com Dinarte Mariz e foi até o irmão. Glênio já estava num presídio do Rio de Janeiro e narrou emocionado o reencontro:

– Um ano e um mês completaram-se desde que eu fora preso. Um belo dia, um oficial acompanhado por vários soldados armados, abriu a porta da minha cela e me convidou a sair. Pela primeira vez sem algemas e sem capuz. Levaram-me, por umas escadas, a um corredor imenso. A uns cem metros de mim avistei um homem de paletó. Quando me aproximei, uma surpresa agradável: era meu irmão Gilberto. Foi um abraço muito forte e cheio de emoção. Levaram-nos para uma sala. Meu irmão estava meio constrangido com tanto cerco e nós só tínhamos 15 minutos. Começou a contar as novidades, dizendo que trazia saudades de todos. Estava vindo do Ceará, onde era professor universitário e que a filha do meu amigo prisioneiro goiano tinha mesmo mandado a carta para nossos pais; que o Exército tinha negado minha passagem pela PE de Brasília; que papai estava tentando convencer um amigo seu do Exército a interceder por mim e tinha conseguido aquela visita, etc. Me deu comida e dinheiro e disse que papai viria em seguida me visitar e queria saber do que eu estava precisando. Deu ainda a triste notícia de que nosso irmão Gilson morreram afogado e choramos os dois, emocionados. Não tinha mais clima para conversar e o nosso tempo se esgotou”, escreveu.

Citado no livro, Gilson trabalhava na construção da Transamazônica e durante uma travessia pelo rio Amazonas o barco em que estava naufragou. Mesmo sabendo nadar, acabou morrendo afogado. Mais tarde, como homenagem, Glênio deu o nome do irmão ao primeiro filho.

Gilberto e o pai acionaram quem conseguiram para tentar libertar Glênio. Dinarte Mariz abriu alguns caminhos, mas chegou a um dado momento em que admitiu que não poderia ir mais adiante. Na época, o ex-governador do Maranhão Vitorino Freire era ainda mais ligado aos militares e também foi acionado. Assim como o arcebispo Dom Eugênio Sales e outros persongens entre comandantes, generais e militares de outras patentes.

– Era a vida de Glênio, então valia tudo. Na primeira vez que fui ao presídio me disseram que era mentira, que ele não estava lá. Na saída, um cabo que ouviu a conversa me garantiu que tinha visto Glênio ser torturado no dia anterior. Foi quando voltei a Dinarte Mariz, que ligou para um comandante na minha frente pedindo informações sobre o “menino de Epitácio”. Só então consegui me encontrar com ele, como está relatado no livro. Mas depois foi mais um tempo para tirá-lo de lá, o que só conseguimos com a ajuda dos advogados Marcelo Cerqueira, que era meu amigo dos tempos da UNE, e a doutora Eny Moreira, que hospedou Glênio logo que saiu da prisão”, conta.

No apartamento do Rio de Janeiro da advogada Eny Moreira, o reencontro entre Glênio, Gilberto e Gil, que morava em São Paulo e foi voando para o Rio, aconteceu:

– Indescritível a alegria que a gente tem ao reencontrar quem a gente tanto queria e ver que ele está bem. E foi aquele abraço, uma alegria incontida”, lembra Gil.

Glênio relata no livro sua maior saudade, na volta para o Nordeste:

– Cerca de 15 familiares me aguardavam no aeroporto. Apesar da alegria grande em revê-los, após mais de quatro anos de ausência, não seria ainda ali que mataria minha maior saudade. Fui para Caraúbas, interior do Rio Grande do Norte, meu ponto de partida, para abraçar e beijar minha querida mãe que me esperava tão ansiosa”, conta.

Reconstrução do PCdoB começa pela universidade

Glênio Sá discursa durante campanha para o DCE da UFRN, em 1979 (foto: acervo da família)

Glênio Sá liderou o processo de reconstrução do PCdoB no Rio Grande do Norte ainda em meio à clandestinidade durante a ditadura militar. Já em liberdade, e de volta a Natal em 1974, o comunista foi buscar na universidade parte da militância que cerraria as fileiras do Partido a partir dali. Dois anos após sair da cadeia, Glênio é aprovado no vestibular da UFRN e inicia o curso de Geologia ao mesmo tempo em que começa a mobilização e recrutamento de estudantes universitários.

Recém-chegado do Rio de Janeiro, o jovem Christian Vasconcelos vinha influenciado pelas ideias do Movimento de Emancipação do Proletariado, uma organização clandestina de esquerda e de orientação Marxista com atuação no Brasil nos anos 1970 e 1980. O encontro com Glênio, no entanto, mudou os rumos da trajetória político-partidária do estudante carioca de apenas 18 anos.

A diferença de idade entre Christian e Glênio Sá era de oito anos. E em pouco tempo, a relação político passou a ser fraternal. Durante o tempo em que conviveu com o ex-guerrilheiro, que passou a colega de curso e “irmão mais velho”, Vasconcelos cita a humanidade e simplicidade como marcas que permanecem nas boas lembranças:

– Glênio era o meu irmão mais velho. Eu tinha 18 anos, estava chegando do Rio transferido da Universidade Federal Rural e vinha influenciado pela corrente Movimento Emancipação do Proletariado. O conheci como colega de curso, ele um ano à minha frente. Foi a figura mais humana que eu conheci na vida. A gente fica imaginando que pessoas como Glênio são seres extraordinários, mas na verdade são pessoas comuns, simples como a gente. E me dá mais orgulho ainda de estar onde estou, de fazer parte de tudo o que fiz na minha vida tendo Glênio como espelho”, diz.

A capacidade que Glênio tinha de ouvir o outro e de assimilar as divergências é citada por vários colegas e amigos que conviveram com o comunista. Christian lembra que mesmo em assembleias acirradas durante o movimento estudantil ou dentro do próprio PCdoB, Glênio abria mão de falar e até de defender um posicionamento.

– Glênio era muito firme na defesa dos pontos de vista quando estava convencido, e tinha uma capacidade de ouvir muito grande, foi uma referência para muita gente. Lembro de ouví-lo falar uma vez: “se eu não estiver convencido de uma matéria, não vou defender”, o que demonstra que ele não era arrogante, abria mão muitas vezes, reconhecia erros”, lembra.

Glênio Sá foi o condutor da reorganização do PCdoB no Rio Grande do Norte (foto: acervo de família)

Com o processo de abertura política iniciado pelos militares após a pressão das ruas, o movimento estudantil virou um barril de pólvora na luta pela redemocratização do país. E dentro das universidades, a pressão também aumentou para que as direções dos centros e diretórios acadêmicos, além dos diretórios centrais, fossem escolhidas de forma direta pela comunidade.

O estudante de Geologia Glênio Sá era um dos líderes do processo que reivindicava eleições diretas na UFRN. Pressionada, a reitoria cedeu e, em 1979, Glênio é eleito presidente do Diretório Acadêmico do Centro de Ciências Exatas.

A primeira diretoria eleita do CCE tinha outros nomes que ao longo dos anos se transformaram em referência na política norte riograndense. Um deles, recém-chegado do interior de Minas Gerais, também foi recrutado e cativado pelo olhar e a retórica do comunista.

Embora Glênio não tenha conseguido levar aquele colega para o PCdoB, o comunista também virou espelho para ele. Na hora de definir a filiação partidária, o estudante de Geologia Fernando Mineiro optou por contribuir com a fundação de um partido novo, o Partido dos Trabalhadores. Mas a partir dali selou uma relação de admiração e afeto com o líder comunista:

– O Glênio que me recrutou para o movimento estudantil. Foi ele que indicou meu nome para compor a chapa da primeira eleição direta para o DCE, no final de 1979, como representante do Centro de Ciências Exatas. Ali eu comecei a fazer a militância estudantil por isso digo que o Glênio foi o responsável pela minha entrada no movimento”, conta.

Primeiro vereador do PT eleito em Natal e deputado estadual por quatro mandatos consecutivos, Mineiro destaca que, embora em partidos diferentes, ele e Glênio sempre se respeitaram:

– Sempre tivemos uma relação de muito respeito, ele tinha uma capacidade rara de respeitar as divergências e as visões diferentes. Ele era do PCdoB, eu fui para o PT, mas nunca tivemos uma desavença. Glênio teve um papel muito importante na minha vida, foi uma referência para mim”, afirmou.

Coordenador do Centro em Direitos Humanos e Memória Popular, Roberto Monte reúne um dos maiores acervos do movimento político do país com personagens e fatos históricos a partir dos anos 1950, com foco no Rio Grande do Norte. As imagens em vídeo de Glênio em discursos disponíveis hoje na internet foram captadas por Monte e ativista Marize Monte. Para ele, a morte de Glênio Sá e Alírio Guerra foram perdas não só para o PCdoB, mas para toda a esquerda:

– Não é porque a pessoa morre que você vai falar bem, mas Glênio era um cara muito sério. Ainda jovem foi para a guerrilha. E o lance não foi nem ele ter participado, mas escapado do Araguaia. Depois que saiu já entrou na luta pelo processo de redemocratização do país. A morte dele foi traumática porque aconteceu num momento barra pesada. Glênio e Alírio eram os dois grandes dirigentes do PCdoB no Estado, as grandes referências. Ficou só o segundo escalão”, diz.

Filme vai mostrar que comunista potiguar foi perseguido mesmo depois da ditadura

Jana Sá foi selecionada no edital da Fundação José Augusto e fará documentário reconstituindo a morte do pai

A família de Glênio Sá nunca aceitou a versão oficial de que a morte do ex-guerrilheiro foi um acidente. Documentos obtidos após a abertura dos arquivos da ditadura militar em 2014 pelo governo Dilma Rousseff mostram que o comunista potiguar foi vigiado e perseguido mesmo 10 anos após a promulgação da lei da Anistia.

A certidão em que o Estado brasileiro reconhece que cometeu um crime é uma das provas que familiares de Glênio vêm reunindo ao longos dos anos. A placa fria do Opala que colidiu com o fusca onde estavam os dirigentes comunistas aliado ao fato de que o motorista fugiu e nunca mais foi encontrado reforçam a tese de assassinato.

Alguns fatos “estranhos” também marcaram o período após a morte do ex-guerrilheiro. Um dia após a tragédia, a casa da viúva Maria de Fátima Sá foi assaltada, mas os bandidos só levaram documentos e livros de Glênio, além dos álbuns fotográficos com memórias e lembranças do comunista.

Outro indício forte de que o acidente pode ter sido forjado está no depoimento do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra, publicado em 2012, no livro “Memórias de uma Guerra Suja”. Na obra, Guerra não cita o nome de Glênio Sá, mas faz referência a uma morte encomendada por agentes da ditadura militar no final dos anos 1980, numa cidade do interior da região Nordeste. Esse assassinato, ainda segundo Guerra, teria sido forjado com sucesso num acidente de carro e vitimado um político comunista. Na época, Glênio Sá era candidato ao Senado pelo PCdoB e o “acidente” ocorreu em Jaçanã, município do interior potiguar.

Filha mais nova do ex-guerrilheiro, Jana Sá vai contar a versão da família no documentário “Não foi acidente: mataram meu pai”. O filme foi selecionado no edital de audiovisual da Fundação José Augusto, braço cultural do Governo do Rio Grande do Norte, e está em fase de produção. O documentário trará documentos oficiais e depoimentos de personagens que conviveram com Glênio Sá durante a Guerrilha do Araguaia, como o ex-deputado federal Genoíno de Oliveira (PT), camponeses, familiares e outros entrevistados.

– É uma tentativa de passar a limpo uma parte da história do país que estabeleceu o esquecimento por decreto e o que restou da ditadura. Meu pai é um exemplo de como o aparato repressor do Estado, que funcionou durante a ditadura militar, continuou a agir mesmo após o fim do regime de exceção. O filme vai mostrar as circunstâncias da morte dele, envoltas de mistérios e que, para a família, nunca foram esclarecidas”, diz a jornalista e diretora do filme, que destaca a versão família:

– Meu pai foi vigiado e perseguido pelos militares mesmo 10 anos após a lei de anistia. Então a narrativa será criada a partir de depoimentos de personagens da época que vão tentar passar a limpo a história do Brasil”, afirma.

 

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Jornalista e autor da biografia "O homem da Feiticeira: A história de Carlos Alexandre"