Inspeções realizadas na Cadeia Pública de Ceará-Mirim apontam indícios de tortura de presos
Natal, RN 24 de abr 2024

Inspeções realizadas na Cadeia Pública de Ceará-Mirim apontam indícios de tortura de presos

30 de agosto de 2021
Inspeções realizadas na Cadeia Pública de Ceará-Mirim apontam indícios de tortura de presos

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Duas visitas realizadas em 19 de julho e 27 de julho de 2021 pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte (CEPCT), para monitoramento e inspeção na Cadeia Pública de Ceará-Mirim (CPCM), apontaram indícios de maus tratos e torturas dos presos da unidade. As denúncias foram compiladas em um relatório de 50 páginas ao qual a Agência Saiba Mais teve acesso.

A Cadeia de Ceará-Mirim, que leva o nome de Dinorá Simas, foi planejada para 604 presos. No entanto, no momento das visitas havia 1.420 pessoas privadas de liberdade na unidade, que funciona como triagem do sistema prisional do estado e recebe, em média, de 30 a 40 presos provisórios ou sentenciados por dia. Diante do quadro de superlotação, o próprio vice-diretor admitiu que a equipe de policiais penais e de saúde é insuficiente para o atendimento das demandas. Em média, são 56 pessoas presas para cada policial penal da unidade.

Tortura

O Comitê recebeu denúncias contundentes de tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes, além de práticas de tortura. As denúncias foram feitas de forma unânime por todos os internos entrevistados. Na unidade, os castigos coletivos são frequentes. No mais comum, uma cela inteira de um pavilhão é transferida para uma cela do isolamento disciplinar. Caso flagrado pelo CEPCT no dia 17 de julho de 2021 quando a cela 8 do pavilhão 2 estava totalmente vazia, mas com pertences de presos. Quando questionada sobre os internos, a direção não prestou informações no momento, mas, segundo presos de outras celas, todos estavam na “chapa”, ou seja, no isolamento disciplinar.

Outra denúncia é de uso de spray de pimenta nos olhos e bocas de presos, o uso desregulado de armas menos letais, de tonfa (um tipo de bastão) para agressão nas mãos e costas, beber forçadamente água sanitária, entre outras coisas. Os presos de diversos pavilhões também relataram atos de tortura física nos presos dentro das celas e o incentivo da direção para que presos, que cumprem pena ou estão presos provisoriamente por participarem de grupos de extermínio, torturem outros detentos.

Também foi apontado que policiais penais, durante o plantão nos finais de semana, efetuam diversos disparos de balas de borracha dentro dos pavilhões pra causar temor. Durante a visita, de fato, foram encontrados diversos projéteis de bala de borracha no interior das celas e presos com marcas causadas pelos projéteis.

Imagens cedidas pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte

Saúde

De dezembro de 2020 a julho de 2021 foram registrados quatro óbitos na Cadeia Pública de Ceará-Mirim. De acordo com o vice-diretor da unidade, três em decorrência de HIV/AIDS e um por tuberculose. Mas, segundo a equipe de saúde, um óbito foi em decorrência de suicídio por ingestão medicamentosa, dois óbitos por tuberculose e um óbito por agravamento da diabetes e outras doenças crônicas (o interno faleceu após a saída da unidade).

Escabiose (sarna), HIV/AIDS, sífilis e tuberculose são as doenças mais frequentes na população carcerária da unidade prisional. A escabiose, de acordo com a equipe de saúde, ocorre em decorrência, principalmente, da falta de higiene do ambiente. Já o vice-diretor, relatou que a causa é a má-utilização de água sanitária. A CPCM tem 28 pessoas vivendo com HIV/AIDS e 26 pessoas com tuberculose, essas últimas em celas separadas por causa do risco de contágio. Porém, há pessoas com tuberculose que não estavam em isolamento e não faziam uso de máscaras de proteção. Não há uma contagem das pessoas com sífilis, apesar do alto grau de contaminação relatado. A equipe de saúde relatou que preservativos são disponibilizados somente quando há solicitação. Já a direção disse que não são disponibilizados por questões de segurança prisional.

O relatório também traz diversas denúncias de que a equipe de saúde registra quem precisa de atendimento médico, mas não realiza os atendimentos e ainda assim registra em ata como se os houvesse feito. Durante as visitas, foram constatadas lesões, infecções bacterianas ou outras enfermidades não tratadas em diversos presos, inclusive, com relatos de que curativos têm sido feitos pelos próprios detentos, sem assistência da equipe de saúde e sem assepsia.

Imagens cedidas pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte

Covid-19

Pelo menos 930 presos receberam a primeira dose do imunizante contra COVID-19 e entre 30 e 40 detentos recusaram a vacina, que está sendo disponibilizada apenas aos presos já sentenciados. Quando um preso é identificado com covid-19, ele fica em isolamento e recebe como tratamento medicamentos antigripais e ivermectina por até cinco dias. Caso haja agravamento, ele é transferido para o Hospital Giselda Trigueiro. No entanto, o CEPCT recebeu denúncias contundentes de que há na Cadeia Pública de Ceará-Mirim, pessoas infectadas pelo novo coronavírus que não estão em quarentena, dividindo cela com pessoas não infectadas e que não têm acesso à máscara. Durante a inspeção, também foi observado que diversos policiais penais estavam sem máscara e/ou uso de equipamentos de proteção individual.

Isolamento coletivo

A ala denominada como de “segurança máxima” é estruturada para alojar apenas uma pessoa, mas nesse espaço ficam, geralmente, sete presos(as). Apesar das celas contarem com um espaço aberto para garantir banho de sol, por causa da superlotação, esse espaço é utilizado para descanso, fazendo com que as pessoas durmam ao relento. A Comissão registrou queixas relacionadas à chuva, que inunda as celas, molhando colchões e outros materiais.

Erro de construção

A cadeia Pública Dinorá Simas conta com pátio para visitas e pátio para banho de sol. No entanto, de acordo com a direção da unidade, o pátio para banho de sol dos presos foi construído de maneira equivocada, ao centro da unidade. Com isso, o sol só incide diretamente no pátio às 12:00, o que inviabiliza o banho de sol previsto na Lei de Execução Penal (Art.º 52, parágrafo IV).

Alimentação estragada

Denúncias apontam má qualidade da alimentação, que também não tem variedade e muitas vezes vem estragada ou crua. Foi ressaltada a ausência de proteína animal e a entrega de pele e ossos de frango ou pequenas quantidades de mortadela. Além disso, foi denunciado que as marmitas, frequentemente, vêm com insetos, larvas, caramujos, parafusos, pedras e outros materiais. O relatório ainda aponta uma sensação de fome generalizada entre os presos que também relataram que, muitas vezes, há atraso na entrega da alimentação por escolha dos policiais penais e que ela já chega azeda.

Também foi observado que não há distinção entre a água potável e a água distribuída para higiene pessoal e ambiental. A água só é disponibilizada três vezes ao dia nos três pavilhões durante, aproximadamente, 20 minutos em cada um dos turnos. Os internos disseram que não há utensílios para beber água e que usam embalagens de quentinhas vazias para armazenar e beber água. No relatório foram apontados indícios de falta de água, que é racionada para consumo, banho, descarga e higiene de roupas e das celas. Além disso, houve denúncias de que o fornecimento de água é cortado propositalmente como forma de castigo aos presos.

Imagem cedida pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte

Visitas

A direção da unidade relatou que as visitas sociais presenciais retornaram no início de junho e que elas ocorrem semanalmente entre quinta e sexta-feira. As revistas são feitas apenas digitalmente através dos dois scanneres corporais na entrada da CPCM. No entanto, a Comissão não coletou relato de nenhum preso que tenha recebido visitas. Ao contrário, a denúncia de detentos é de que eles estão sem visita social há diversos meses, alguns há mais de 12 meses.

Durante p período de televisitas, por causa da covid-19, os presos denunciaram que nem todos tiveram acesso ao recursos e que houve ausência de privacidade nas televisitas, quando policiais penais ficavam em volta do preso, a fim de escutar o que era dito. Também há relatos de que os materiais fornecidos pelas famílias muitas vezes não são entregues, ou chegam em menor quantidade. Além disso, foi denunciado que os policiais penais da CPCM obrigam, por meio da ameaça de tortura, os presos a assinarem o documento de registro de recebimento mesmo quando não recebem o material.

Higiene

A Comissão observou que não há rotina de limpeza da unidade e, quando há, é realizada pelos presos. As celas, na grande maioria, estão em situação insalubre porque não há água para limpeza e os produtos para higiene não são entregues adequadamente, com cortes no abastecimento de água sanitária e sabão em pó.

Como os colchões são velhos e sujos, há presença de ácaros que provocam problemas respiratórios nos presos. Outro vetor de insalubridade é a presença de animais domésticos (gatos) na unidade, que defecam e urinam nos espaços de alojamento. Além disso, há na unidade, especialmente no corredor de “isolamento disciplinar” e “vulneráveis I”, uma infestação de mosquitos pernilongos.

Imagem cedida pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte

LGBTI+

Há na CPCM uma cela destinada à população LGBTI+, particularmente para mulheres trans e travestis, localizada na ala denominada de “segurança máxima”. A cela, com capacidade para uma pessoa, alojava nos dias de inspeção sete mulheres trans e travestis. Emas relataram que o nome social não é respeitado, sendo utilizado o nome de registro. Além disso, não são disponibilizados uniformes socialmente designados para mulheres. Por causa do rompimento de vínculos familiares, comunitários e/ou transfobia, a maioria das apenadas não recebe visitas sociais, muito menos materiais de higiene pessoal levados por visitantes. As apenadas não têm acesso a banho de sol e ficam o dia inteiro na cela, que tem ambiente aberto, mas que, como os demais na mesma ala, molha os materiais como colchões em caso de chuva. Elas também denunciaram que são ameaçadas de transferência para outras celas e pavilhões em caso de conflito.

Imagem cedida pelo Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio Grande do Norte

Pessoas com deficiência e/ou transtorno mental

Com uma única cela adaptada, mas não é utilizada, foi verificada a ausência de condições para a permanência de pessoas com deficiência e/ou transtorno mental na Cadeia Pública de Ceará-Mirim. Na unidade não são distribuídos medicamentos psicofármacos, mesmo com receita provida por familiares; tampouco acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

Em sua avaliação, a Comissão concluiu que nas últimas três décadas o sistema prisional brasileiro cresceu cerca de 700% agravando uma tensão entre o crime e os representantes da segurança pública. Durante a pandemia, os relatos de violação de direitos e tortura aumentaram exponencialmente, como demonstram vários estudos, dentre eles os do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Relatório da Pastoral Carcerária. O aumento das outras torturas, agravadas pela suspensão das visitas presenciais, revelam um trágico cenário de violências físicas, simbólicas e psicológicas.

O Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do RN é um órgão colegiado formado por decreto em 2019 com a finalidade de colaborar na formulação e execução da política estadual de prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, no Rio Grande do Norte. O grupo é formado por 10 membros titulares e seus suplentes, entre representantes da sociedade civil e do poder público, além dos convidados permanentes de órgãos do sistema de justiça.

A Agência Saiba Mais entrou em contato com a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap), mas não conseguimos uma respostas aos pontos colocados pelo relatório até o fechamento desta matéria.

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