Os ventos da energia renovável não sopram para a Comunidade Pesqueira de Enxu Queimado
Natal, RN 28 de mar 2024

Os ventos da energia renovável não sopram para a Comunidade Pesqueira de Enxu Queimado

12 de dezembro de 2021
Os ventos da energia renovável não sopram para a Comunidade Pesqueira de Enxu Queimado

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Quando chegou a eólica aqui, destruiu tudo. Aqui tudo era lindo. Tinha muita mata, muito morro, muita lagoa. E em dois anos destruíram tudo para implantar as usinas.” O relato de Maria Joelma da Silva é o retrato da transformação paisagística e social experimentada hoje pela comunidade pesqueira de Enxu Queimado, localizada no município de Pedra Grande, litoral do Rio Grande do Norte, a 142 km de Natal. A promessa de uma alternativa de energia renovável foi cumprida, mas a instalação atropelou a comunidade tradicional que começou a se formar em meados de 1920.

Rodeada por torres e cortada pelo barulho das turbinas, a presidenta da Colônia de Pescadores de Enxu Queimado, hoje com 33 anos, lembra de um tempo de paz. Joelma tinha 15 anos quando sua família escolheu, na esquina do Brasil, uma das mais deslumbrantes praias do litoral potiguar, onde o sol se põe no mar. Em sua adolescência, os fins de semana foram marcados por momentos de lazer no “encontro de morros, que formava lagoas lindas no inverno”.

Eólicas dividem o espaço com as casas na praia de Enxu Queimado | Foto: Jana Sá

Sob o argumento do progresso e dos empregos que seriam gerados, as instalações dos parques de energia renovável prometiam não gerar impactos para os nativos, mas não foram acompanhadas pela realização de amplas discussões com as comunidades tradicionais. “A eólica criou empregos quando chegou aqui, mas foram temporários, e trouxe muitos outros problemas”, revela José Silva de Melo, conhecido como Xará na comunidade onde nasceu, cresceu e trabalha há 35 anos como pescador.

Após mais de uma década do início de funcionamento, os 24 parques eólicos implantados e em construção mudaram a paisagem da praia de Enxu Queimado, dividiu a comunidade, deslocou os jovens da pesca artesanal e formou a geração que as pessoas chamam de ‘filhos dos ventos’, que ficaram sem paternidade. “Sem contar que delimitou o acesso da população local, hoje em dia tudo é cercado, ninguém tem acesso a espaços naturais sem permissão”, reclama Joelma. As estradas são uma das poucas benfeitorias reconhecidas pela comunidade.

Com o passar dos anos, após a instalação completa dos 12 parques em operação na região e os 11 que aguardam Despacho de Requerimento de Outorga (DRO), os empregos para os nativos rarearam. Os poucos que restam atuam basicamente no trabalho braçal, para cavar as valas de instalação dos aerogeradores de mais um parque.

Segundo a pesquisadora Moema Hofstaetter, doutora em Turismo e Desenvolvimento, que integra o grupo de pesquisas do Laboratório Interdisciplinar Sociedades Ambientais e Territórios (LISAT) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), não há sequer dados que precisem o número de empregos gerados pelas eólicas.

Não há interesse que esses números venham à tona, porque eles não são positivos. Esse discurso de emprego é mentiroso, porque o trabalho gerado é precário, sazonal e de baixa remuneração. Não resolve a questão da pobreza, não gera desenvolvimento, ele é pontual”, avalia Moema Hofstaetter.

Pesquisadora Moema Hofstaetter | Foto: Jana Sá

Já os impactos para as comunidades foram se acumulando. As dunas ganharam estradas de cascalhos por onde passam os veículos responsáveis pela manutenção dos equipamentos. Pássaros em sua rota de migração morrem ao se chocar com as hélices. O barulho gerado pelos cataventos é tão alto como as torres. À noite, luzes vermelhas piscam nos aerogeradores, com potencial para desorientar as tartarugas que desovam na região. A intervenção humana com a retirada da vegetação nativa também acelerou o processo de movimentação das dunas, e o paredão de areia parece cada vez mais próximo da comunidade.

Ameaça à pesca artesanal na terra e no mar

No Estado que lidera nacionalmente a produção de energia eólica, com patamar de capacidade produtiva superior a 5 Gigawatts (GW), as comunidades tradicionais reclamam que a autossuficiência foi conquistada por meio da retirada dos vários grupos humanos de seus espaços, deslocando as pessoas ou submetendo-as ao interesse de grupos que não são de pescadores, agricultores ou ribeirinhos.

A instalação em terra das eólicas trouxe o deslocamento de grupos humanos | Foto: Jana Sá

Segundo o pesquisador Cláudio Negrão, que estuda a inexistência de reserva extrativista marinha e costeira no Rio Grande do Norte, em todos os municípios que contam com as estruturas para geração de energia eólica as comunidades tradicionais sofrem problemas.

Em Macau presenciei o mangue sendo aterrado para construção de casa e condomínios, o que acaba com a pesca do marisco. Em Galinhos, vi uma ordem de despejo e demolição dos ranchos no mar para que num terreno atrás construa-se um resort, enquanto restaurantes e pousadas avançam nas construções a poucos metros do mar. Em Diogo Lopes, que já é uma reserva de desenvolvimento sustentável, eu vi eólicas na praia e construção de casas nas dunas. E aqui em Enxu, que já está cercada pelas eólicas em terra, agora o anúncio dos parques offshore (no mar), além de ameaças de pessoas que se dizem proprietárias das terras”, conta Negrão.

As características naturais que fazem o ambiente propício para a energia dos ventos encontrarem solo fértil, também representam uma ameaça à continuidade da atividade artesanal pesqueira.

É preciso discutir a reserva extrativista marinha e costeira como modelo capaz de trazer segurança para as comunidades pesqueiras diante dos conflitos da terra, das ameaças que sofrem de despejos, demolições, de pessoas que chegam aqui dizendo que são proprietárias, que tem usucapião. E também no mar, com a pesca predatória, das grandes embarcações, e agora essa questão da eólica offshore”, aponta o pesquisador.

Isso porque, o Rio Grande do Norte pode se tornar em breve o primeiro estado do país a ter produção de energia eólica offshore. O Governo do Estado já assinou memorando de entendimento com a Internacional Energias Renováveis (IER) para implantação de projetos de geração de energia eólica offshore e produção de hidrogênio verde.

A decisão é vista com preocupação por pesquisadores que alegam a falta de estudos de impacto ambiental e de diálogo com as comunidades. “Estou sentindo falta do debate do governo do estado com as comunidades”, reclama Cláudio.

Pesca artesanal sob ameaça em terra e mar | Foto: Jana Sá

Quem defende os aerogeradores offshore, atribui à força e regularidade dos ventos marinhos um funcionamento com mais continuidade do que em terra, o que poderia gerar até 60% mais energia do que uma turbina eólica terrestre. Porém, para Moema Hofstaetter, “há um vazio de estudos, não sabemos de fato o que pode acontecer”.

A pesquisadora lembra que “há a questão do cabeamento, do campo eletromagnético, das aves e populações marítimas” que precisam ser analisadas antes de se decidir pelas instalações.

Conflito fundiário

Cataventos gigantes podem ser vistos de longe nas estradas | Foto: Jana Sá

Os cataventos gigantes que podem ser vistos de longe nas estradas e pretendem avançar no mar não são as únicas intervenções externas que ampliam o medo dos nativos de perder um território que vem encolhendo substancialmente ao longo dos anos. Desde 2007, os moradores de Enxu Queimado passaram a ser alvo de assédios constantes por parte da incorporadora que reivindica a propriedade de praticamente toda a comunidade.

Estamos na luta para garantia do território para evitar que a especulação imobiliária, através da empresa Teixeira Onze, que se diz dona das terras através da posse de um documento de 13 anos, faça a comunidade perder seus vínculos ancestrais, profissionais, afetivos e familiares”, afirma Leonete Roseno, Educadora Popular, que integra o Comitê de Defesa do Território Pesqueiro da Praia de Enxu Queimado. Ela vive no local desde 2011, e é casada com um pescador que está na região há 34 anos.

Depois de uma decisão liminar da primeira instância favorável à empresa, os moradores da comunidade pesqueira conquistaram a suspensão temporária da reintegração de posse dada pelo desembargador Vivaldo Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ/RN).

Para o advogado da comunidade, Gustavo Barbosa, eles recorreram justamente para questionar a legitimidade da posse alegada pela empresa. “O problema é que a empresa nunca teve a posse da terra. Ela não mora, não planta, não frequenta a região. Não havendo ocupação, não há posse, diferente dos moradores da área que a usam para morar e tirar seu sustento. A empresa pediu a reintegração de uma posse que nunca teve. Não por menos, o TJ/RN reconheceu que o direito a permanecer na terra é de quem está dando a ela sua função social, prevista na própria Constituição de 1988”, destacou.

Apesar de reconhecer como uma vitória para a comunidade, Leonete ressalta os desafios para que a comunidade continue mobilizada pela conquista definitiva da permanência na propriedade. A incorporadora Teixeira Onze ainda poderá recorrer da decisão.

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