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28 de junho de 2018
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Algumas experiências têm a capacidade de nos marcar, de não serem efêmeras, de resistirem ao tempo. Foi assim com uma mesa que tive a oportunidade de acompanhar no Fórum Social Mundial, em Salvador, duas semanas atrás. A mesa era o oposto do que costumam ser as mesas: todas as palestrantes eram mulheres, apenas o mediador era homem. Entre elas, duas mulheres trans, uma mulher travesti e uma cisgênero. Uma delas negra. Todas com doutorado. Ali estavam cerca de 30 % de todas as transexuais com doutorado no país, pois estima-se que haja apenas dez pessoas trans com essa titulação no Brasil.

Organizada pelo GT de Direitos Humanos do PROIFES-Federação, a mesa tinha como tema “A Inclusão das Populações Negras e LGBTTQ nas Universidades e Institutos Federais: Um Desafio Docente”. Entre as debatedoras, a primeira professora trans em uma universidade pública brasileira, Leilane Assunção, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); a primeira professora trans efetiva em uma universidade pública, que pediu para ter o nome preservado no artigo, do departamento de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); a primeira travesti negra a defender uma tese de doutorado no país, a professora Megg Rayara de Oliveira Gomes, do departamento de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR); e a professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Joseli Maria Silva, mulher cis, que pesquisa sobre a morte de mulheres trans e travestis no Paraná.

Para elas, serem as primeiras não é motivo de orgulho, mas sim uma evidência da opressão e violência que perpassa as instituições de ensino no Brasil, hostis aqueles e aquelas cuja sexualidade e identidade de gênero são consideradas desviantes. Nas palavras de uma das palestrantes, aquela mesa era de sobreviventes, que criaram estratégias para lidar com a intimidação, a insegurança, a estigmatização, a segregação e o isolamento que tanto geram o desinteresse pela escola, produzem distorção idade-série, abandono e evasão da população LGBTTQ.

Mais de 120 pessoas lotaram o espaço Chico Mendes, na Tenda da CUT, para um debate que durou mais de duas horas. As palestrantes narraram situações de discriminação e transfobia que viveram como estudantes e que ainda vivem como docentes. “Sou professora de didática na UFPR, mas a minha presença naquele espaço não é pacífica, é sempre conflituosa porque têm professoras que nem me cumprimentam”, relata Megg.

Travesti preta do gênero feminino, heterossexual, como gosta de se apresentar, Megg Rayara de Oliveira Gomes defendeu o doutorado em 2017, com a tese “O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”. Baseado na trajetória de quatro professores negros homossexuais e afeminados, o estudo discute racismo e homofobia como dispositivos de poder e analisa como esses professores afirmaram-se na carreira docente.

Megg dedica trechos da tese ao relato de sua experiência, desde que, ainda criança, percebeu sua identidade feminina, até a chegada ao ensino superior – uma caminhada marcada por preconceito, incompreensão e, por muito tempo, a necessidade de se esconder na identidade masculina para sobreviver. “Minha pesquisa nasceu de uma inquietação pessoal, compartilhada por vários sujeitos que, assim como eu, vivem uma trajetória escolar como estudante e como docente, marcada pelo racismo e pela homofobia.”

Sobre ter se aventurado pela carreira docente, retornando a um espaço onde vivenciou situações de controle, dores e perseguições, Megg responde: “Voltar para a escola significava um acerto de contas com o passado. Não estava tão vulnerável como estive na infância e adolescência. A bicha preta migrava dos cantos escuros da escola, do fundo da sala de aula para a mesa da professora”.

Escapulindo ao destino que parecia imutável e conquistando o direito à fala, podia interferir positivamente na vida de estudantes pretos/as e bichas. “A bicha preta é professora e funcionária pública”, diz. “A bicha preta que volta não é a mesma. Não traz consigo sentimento de culpa, de medo e não está disposta a expressar uma existência nos moldes da cis heterossexualidade. Experiências pessoais se somam ao conhecimento acadêmico para forjar uma prática docente que se propõe menos conservadora, menos opressora. A simples presença de uma bicha preta exercendo o magistério desencadeia uma série de discursos que revelam que a escola, ao contrário da bicha, mudou pouco e continua caracterizada por discursos racistas e homofóbicos”.

Megg denunciou ainda o que chamou de “feminismo de genitália”, das mulheres que se consideram mais mulheres do que ela “por ter nascido com um pau”. E reclamou a falta de intersecção dos movimentos negros com a luta LGBT, apontando o silenciamento diante das mortes de travestis e transexuais negras. A insensibilidade social às mortes de determinados sujeitos, como os jovens pretos e pobres e as travestis e transexuais, também foi abordada na mesa. Ali estavam mulheres que superaram a expectativa de vida da população trans (que no Brasil é de apenas 35 anos), cujo direito de viver e envelhecer são negados.

Revelando a força que aquela mesa tinha, o único homem, que cumpria o papel de mediador, chorou. Professor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Nildo Ribeiro, mesmo sendo um homem cisgênero, branco, mas por ser homossexual, viveu um cotiando escolar em que era chamado de viado, bicha, mariquinha, mulherzinha, sempre de maneira depreciativa. Naquela mesa ele se sentiu à vontade para chorar.

Com trajetórias diferentes, mas um cotidiano de violações e resistência em comum, Leilane, Jessie e Megg estavam ali, como sobreviventes da escola e da universidade, vencendo todos os mecanismos de silenciamento a que foram submetidas, falando, aplaudidas de pé. Para o público que participava atentamente do debate, deixaram a seguinte reflexão: “Por que a calçada é mais atraente para a travesti do que a sala de aula?”.

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