Carlão de Souza: naquela mesa tá faltando ele
Natal, RN 29 de mar 2024

Carlão de Souza: naquela mesa tá faltando ele

16 de agosto de 2019
Carlão de Souza: naquela mesa tá faltando ele

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O jornalista Carlos de Souza embarcou por engano em uma máquina do tempo com defeito. Era assim que Carlão se definia numa das redes sociais que mais usava para desabafar sobre um tempo que não parecia com ele e do qual não se conformava. Nessa viagem, que durou 60 anos, o jornalista, escritor, professor, boêmio, poeta, dramaturgo, cronista e amante contou histórias, viveu outras tantas, amou, se desiludiu, se desesperançou e cultivou amigos na mesma proporção.

A tal máquina do tempo com defeito levou Carlão para longe dos seus nesta sexta-feira (16). Nas primeiras horas da manhã, o jornalista perdeu a batalha para um câncer na região da bacia, diagnosticado em julho. O velório acontece a partir das 16h, no Centro de Velório São José. O corpo será cremado no sábado, ao meio-dia, no cemitério de Emaús. Carlão deixa a esposa Sônia, os filhos Alex, Sérgio e Constância, além de quatro netos.

Minutos depois da notícia se espalhar, dezenas de amigos, colegas e repórteres que trabalharam com o jornalista publicaram mensagens de carinho e boas lembranças.

Natural de Areia Branca (RN), Carlos de Sousa era filho da imprensa escrita, embora também tenha atuado como editor na InterTV Cabugi. Mas foi como repórter e editor da Tribuna do Norte e do já extinto Diário de Natal que ele deslanchou na carreira, sempre devoto da área cultural. Também foi professor do curso de jornalismo da UFRN, editor de revistas como Preá, O Galo e será lembrado na história do jornalismo como um dos grandes incentivadores de novas gerações de repórteres.

Oriundo de escola pública, formou-se jornalista ainda na primeira metade dos anos 1980 pelo curso de Comunicação Social da UFRN. Levou as influências literárias para o jornalismo e fez um caminho inverso.

Na novela“Crônica da Banalidade”, o primeiro dos cinco livros da carreira lançado em 1988, Carlão entra para o time dos intelectuais da cidade deixando muito claro que intelectual também andava com os marginais. Ainda publicou "Cachorro Magro", "É Tudo Fogo de Palha", "Cidade dos Reis" e "Urbi".

Ligeiro

O editor Abimael Silva publicou três dos cinco livros de Carlão. Emocionado ao telefone, citou com carinho a obra e, principalmente, a convivência com o amigo:

- Além da amizade de 35 anos, eu adorava o que Carlão escrevia. Quando ele lançou o primeiro livro, “Crônica da Banalidade”, pela editora Clima, foi um marco. Depois editei “Cachorro Magro”, um livro da maior importância para a poesia do Rio Grande do Norte, 1º lugar do prêmio de poesia Othoniel Menezes. Eu morei na casa do Carlão um certo tempo. Tomamos muita cerveja, vinho, cachaça, Carlão não poderia partir assim tão ligeiro. Meu aniversário é 13 de maio e o dele 15. Então por vários anos emendávamos um final de semana inteiro comemorando. Foi um irmão que vi indo embora e a gente aqui, sem coragem. Eu não sei o que vai ser de mim nesse velório”, disse sem conseguir segurar a emoção.

Com Carlos Magno Araújo, Tácito Costa e a companheira Sônia

Mais de três décadas também unem Carlos de Souza e o jornalista Tácito Costa. Chamava a atenção do amigo o trânsito de Carlão em vários universos, a partir do casamento entre a personalidade e a paixão pela literatura:

- Carlão era um leitor voraz, sofisticado, lia os clássicos, refinado. Não tem quem diga que Carlão não era um cara culto. Ao mesmo tempo ele se relacionava com o cachaceiro e com o intelectual. A vida inteira sempre esteve ligado com literatura”, conta o amigo.

Os dois se conheceram ainda na adolescência, quando estudantes da escola estadual Wirston Churchill. Na época, a bem da verdade, Carlão tinha mais interesse na irmã de Tácito do que propriamente na amizade com o amigo. O reencontro, no entanto, foi selado já como repórteres da Tribuna do Norte:

- Só o conheci mesmo na Tribuna, acho que em 1985, 86... a partir daí nos tornamos amigos. Sempre foi envolvido com cultura, desde o princípio. Carlão era um cara bem-humorado, nunca o vi de mau-humor. Sempre malhador, gozador, de bem com a vida, sem ambição material, aliás, isso é outra coisa marcante na vida dele: Carlão não ligava pra dinheiro, plano de saúde, se tinha carteira assinada, tocava a vida sem se preocupar”, disse, lembrando que o amigo sempre preservou suas opiniões políticas, o que influenciou nas fases de vacas magras e dificuldades financeiras.

Carlão era um jornalista e intelectual de esquerda crítico ao governo de Jair Bolsonaro. E fazia questão de dizer isso publicamente.

Cultura e formação intelectual

O jornalista Adriano de Sousa acompanhou a trajetória do amigo desde a faculdade. Os dois entraram juntos no curso de comunicação da UFRN e já ali Carlão chamava a atenção pela criatividade e diversidade de sua produção:

“Carlão sempre foi aquilo que ele era: muito inteligente, criativo, jornalista de primeira linha, intelectual, tinha muita qualidade e diversidade na produção. Enquanto a maioria das pessoas da nossa geração se concentrava num nicho criativo específico, seja poesia, crônica ou romance, ele abraçou o que podia, escreveu poesia, teatro, ele tem um livro sobre teatro do Rio Grande do Norte. Então Carlão tinha essa faceta da diversidade, além de ter sido professor de comunicação, eram vários apetites”, descreve.

A relação da literatura com o jornalismo também é destacada por Adriano quando se debruça sobre o trabalho do amigo nas redações:

“O perfil do jornalista mudou. A nossa geração escolhia o jornalismo porque gostava de escrever, de ler, o jornalismo era o veículo natural para quem tinha essa formação. Os currículos, pelo menos da minha época, têm uma formatação muito técnica que deixavam descoberta a área intelectual. A faculdade de jornalismo não te obriga a ler sobre economia, filosofia... e produz um bom técnico de comunicação, mas com formação intelectual muito pobre. Então essa pobreza reflete na qualidade do trabalho, na qualidade como jornalista e até na qualidade do cidadão como porta-voz da sociedade. Afinal, o trabalho do jornalista é esse. E o Carlão tinha toda essa formação intelectual e cultural”, analisa.

Uma das últimas fotos de Carlão da redação da TN: com Carlos Peixoto, Vicente Neto, Valdir Julião e Carlos Black

Essa bagagem intelectual e cultural citada por Adriano de Sousa é o que movimentava o coração e a mente de Carlão na juventude a também na fase adulta. Além de repórter e editor, ele chegou a assinar na Tribuna do Norte colunas voltadas para a literatura e cinema. Diretor de redação do veículo até há pouco tempo, Carlos Peixoto lembra que jornalismo e literatura andavam juntos no coração do Gordo:

"Trabalhei com Carlão durante toda a minha vida profissional. Mesmo quando não estávamos na mesma redação. Nossa geração é aquela que sonhava mudar o jornalismo. Não ganharíamos dinheiro, estabilidade no emprego ou fama. Ganharíamos o prazer de ter perseguido sonhos, de ter feito bem feito o que era preciso fazer bem feito. Jornalismo e literatura. Amizade, companheirismo, ideais, bourbons e histórias de vida. Tudo isso, eu e mais uma porção de pessoas que estão por aí, agora lamentando a partida dele, dividimos com Carlão. O que mais?

"Morte não te orgulhes,/ embora te hão chamado/

Poderosa e apavorosa: o que não és;/

Porque os que pensas ter derrubado,/

Não morrem".

São versos de um poema de John Donne, que Carlão gostava. Ele que também foi poeta e assim será. Para mim e, com certeza, para todos nós que o amávamos”, disse.

Carlão não foi referência apenas para jornalistas. O escritor e filósofo Pablo Capistrano, lembrou nas redes sociais uma história dos tempos em que Carlão assinava uma coluna literária na Tribuna:

“Em 1993 o Sótão 277 (coletivo de literatura do qual fazia parte) lançou o fazine Peru Frio. Com todo arroubo dos hormônios adolescentes escrevemos um editorial (olha pra isso... "editorial" em fazine.... a gente se achava) onde mandavamos: "Foda-se Drummond; Foda-se Bandeira; Foda-se o puto do Leminski". O zine chegou as mãos de Carlão de Souza via Alex de Souza. Carlão ficou injuriado. Mandar Drummond e Bandeira se foder tudo bem, mas Leminski?!? Um ícone da poesia marginal. Ele escreveu um crônica no jornal expressando seu desconforto com aquele texto desaforado de um bando de adolescentes estudantes da antiga ETFRN que achavam que iriam revolucionar a província e que queriam passar o trator por cima de tudo. Jota Jota (nosso membro mais incendiário à época) escreveu uma carta desaforada pra Tribuna do Norte, defendo a política de terra arrasada do grupo. Na outra semana Carlão escreveu uma crônica com o título "Cronista enlouquece ao ver que suas palavras feriram sem querer ferir". Era uma bandeira branca. Desse dia em diante, Carlão deixou de ser apenas o pai de Alex e nunca mais saiu de nossas vidas. Um coração do tamanho do mundo e uma generosidade sem fim”, escreveu.

Analisando essa Roda Viva, o jornalista Carlos Magno Araújo acredita que Carlão foi quem descobriu a saída.

- Carlão não botava o dinheiro na frente das coisas, tinha algo mais importante que eram as pessoas, as histórias, os convívios, aprender é mais importante. E o jornalismo virou uma atividade como outra qualquer. E as vezes a gente leva essa loucura para dentro da roda viva. Carlão sempre teve certo. A gente diz: “vou morrer, e o que vou levar ?” Levamos experiência, o que a gente aprende. A vida é muito voltada para o trabalho, o mundo tá pedindo isso... por isso eu acho que Carlão foi o grande sábio. A gente achava que éramos nós, mas ele é quem estava enxergando na frente. Porque o Carlão optou pelo humano, pela pessoa, e não pela máquina”, finalizou.

"Eu e Alex, quando não havia barriga, mas tinha bourbon"

Quem acompanhava de perto ou de longe a vida de Carlos de Souza e família, especialmente na farra da boêmia, tinha lá suas dúvidas sobre quem cuidava de quem. De três relacionamentos distintos, nasceram Alex, Sérgio e Constância. Os três são jornalistas e, cada um ao seu modo, bastante apegados ao pai. Do trio, o principal herdeiro intelectual de Carlão é Alex de Souza, hoje editor da UFPB. A foto acima foi publicada no facebook por Carlos de Souza em 3 de maio de 2017 com a frase:

"Eu e Alex, quando não havia barriga, mas tinha bourbon".

À pedido da agência Saiba Mais, Alex falou sobre o legado que Carlão deixa e da grande referência de tê-lo como amigo e pai:

Papai era um superlativo. A gente se conheceu depois de velho, porque quando saíamos na buraqueira, eu com uns 8, 9 anos, todo mundo dizia que eu era o pai de Carlão, afinal alguém tinha que ser o responsável naquela relação. Papai me levava ao Chernobyl, na praia do meio, e me largava no balcão conversando com João Gualberto de Aguiar. Depois, quando eu vi que ele podia caminhar por aí sozinho, fui estudar na ETFRN, onde me envolvi com tudo de errado que existe na vida, coisas como rock'n'roll e poesia. Foi nessa época que ele aplicou o maior conto do vigário do jornalismo potiguar, porque eu e meus amigos, gente da laia de Everton Dantas, Aristeu Araújo, Vital, Alexandre Honório, Ana Paula, acabamos todos virando jornalistas. Papai foi tão negligente que, nessa bobeira, meus irmãos Serginho e Constância acabaram entrando também nesse mau caminho. E isso não se faz.

Acho que depois, com a consciência pesada, ele acabou arranjando emprego pra todo mundo, no Diário de Natal ou na Tribuna do Norte. Mas aí já era tarde demais pra gente perdoar. Foi o maior escândalo de nepotismo da imprensa norte-rio-grandense, porque, àquela altura, todo mundo já se considerava filho dele.

Não gosto de falar dos livros de papai, porque Carlão não sossegava a priquita: publicou uma novela, depois um poema, depois teatro, depois outro romance e, por fim, contos. Se nem ele sabia o que queria, quem sou eu pra julgar. E também, teimoso que só, ele nunca topava alterar nada quando eu mandava. Só pra depois dizer que eu tava certo, o que me deixava ainda mais puto.

A gente era mais amigo do que qualquer coisa, porque era disso que ele gostava: de ter amigos, muitos, sempre. Daí quando ele brigava com um, sempre sobrava um outro pra ele encher a paciência durante um copo de cerveja.

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