Ano passado não morri, nem vou morrer esse ano
Natal, RN 28 de mar 2024

Ano passado não morri, nem vou morrer esse ano

5 de fevereiro de 2020
Ano passado não morri, nem vou morrer esse ano

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Nessa última virada de ano uma frase ecoou muito forte nas rodas de conversas e redes sociais do público de esquerda. Trata-se do trecho da música “Sujeito de Sorte”, de Belchior, que diz “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Essa frase ganhou mais visibilidade e força após o lançamento da música “Amarelo”, de Emicida, com participação de Pabllo Vittar e Majur. Mas sempre que escutava esse trecho sendo entoada por colegas, algo me incomodava. Essa coisa de dizer que a gente morreu é muito forte, muito pesada. Claro que devemos avaliar o contexto em que a frase é colocada na música do Emicida, em que é ressaltado o extermínio de negros, pobres, mulheres, homossexuais e uma série de pessoas presentes no espectro que chamamos de “minorias”. Mas quando é dita fora do contexto dessa música e repetida por aí a fora, me parece que ela representa uma aceitação da derrota, de que não fomos capazes de suportar os avanços do fascismo e que essa narrativa fascista e conservadora venceu.

Costumo dizer que estamos naquele estado de golpe, quando levamos um soco e ficamos cambaleando procurando a corda do ringue para se segurar. A gente fica um tempo buscando fôlego para voltar ao embate e tentando fugir para não levar outro golpe certeiro enquanto ainda se recupera do golpe passado. Claro que para pessoas que não sentem a falta do pão em sua mesa ou a angústia do vencimento dos boletos batendo a sua porta, o impacto desse golpe é bem menor. Enquanto artista venho sofrendo diretamente com os ataques econômicos e morais desferidos pelo anti-presidente do nosso país e seus seguidores. Eles querem nos matar. De fato alguns de nós estão morrendo, outros adoecem, mas eu não morri, muitos de nós ainda estão de pé, ainda estamos resistindo, mas precisamos ir além da resistência.

Em conversa com uma amiga artista, refletimos que a palavra “resistência” precisa vir acompanhada da palavra “insistência”. Ano passado eu não morri. Aliás, ano passado eu me apresentei em mais de 20 escolas públicas, montamos uma mostra dos espetáculos do nosso grupo que durou mais de três meses e que além de Natal foi também pra Mossoró; Estreamos uma remontagem de um dos espetáculos mais legais do nosso grupo; acolhemos em nosso espaço de trabalho compartilhado mais um grupo de teatro de nossa cidade, um dos mais importantes da nossa história teatral. Enfim, são muitas ações que só comprovam que eu não morri e que muitos de nós também não.

Falo de um olhar localizado em minhas experiências, mas não é difícil perceber que exemplos como o nosso se repetem em todo o nosso Estado. A arte é necessária, o teatro é necessário. O nosso público pode até diminuir, mas a qualidade dele está só aumentando. Insistiremos, não morreremos e continuaremos na nossa luta árdua de tentar com que tenhamos uma sociedade que possa pensar livremente, que possa se amar livremente, longe do ódio e da intolerância. Começamos o ano com nossas contas no vermelho, mas a nossa vontade de continuar e insistir é maior do que qualquer coisa que venha a querer nos derrubar.

Que fique claro que esse texto não é uma crítica à frase do Belchior, entoada e estampada em nossas camisetas e muros. Quero tão somente refletir e trazer um novo olhar, uma nova perspectiva para que possamos construir uma narrativa de enfrentamento, de insistência, uma narrativa propositiva, construída por nós, oriundos da classe trabalhadora, por nós que estamos longe dos berços de ouro, por nós que passamos dificuldades financeiras e consequentemente emocionais nesse sistema onde o capital a tudo arrasta.

Ano passado eu não morri, esse ano eu não vou morrer e muitos de nós continuaremos a insistir e produzir. Produziremos arte, produziremos a luta, produziremos o pensamento e a reflexão livres. Qualquer discurso de censura e cerceamento será fortemente enfrentado por nós. Não podemos mais ficar pedindo tolerância àqueles que não nos toleram e que desejam diuturnamente a nossa morte e extinção. E que fique bem claro, muitos de nós darão a sua vida em favor da liberdade.

Mas nós...

...nós não morreremos!

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