Apragata de Rabicho
Natal, RN 29 de mar 2024

Apragata de Rabicho

22 de abril de 2020
Apragata de Rabicho

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Meu pai tinha uma insatisfação contida – pense numa doença ruim!, e um desejo doido de possuir uma sandália, bem na moda da época, feita de couro de bode, solado de borracha de pneu, revestido com sola de couro de bezerro novo e pespontada com detalhes de estrelinhas, quinem arreio de alazão, daquele que somente Sidrônio sabia bordar. Mas realizar esse sonho exigia muito trabalho extra, porque os ganhos só davam mal pra pagar a dívida com a bodega de seu Jeremias, que sempre ficava uma ponta pra semana seguinte. Aliás, quando a conta crescia muito era a vez de sacrificar uma cabra e isso afetava a sobrevivência porque, com um litro de leite a menos, tinha que cortar na coalhada, base importante da alimentação. Leite, agora, só no desjejum.

Seu avô Manoel Freire, ou “Papai Véio” como ele chamava, sabia desse desejo e, como chirimbava o neto, resolveu propor um negócio.

- Zé Leão, você quer ganhar um extra?
- Claro vovô!
- Pois lhe pago quinhentos réis por semana, pra você pastorar o arroz e trazer ração verde pra Corante – jumento tinhoso, já velho, gordo e banguelo, que era tratado com o maior carinho, por sua trajetória de serviços prestados e, a essas alturas, só comia o que fosse semitriturado.

O avô esperto, já tinha pesquisado o preço da mercadoria, mas não queria presenteá-lo sem um gesto educativo que valorizasse a conquista. Os olhos brilharam de alegria, mas o velho impôs mais condições pra tornar a vitória mais prazerosa e, também, diminuir os enredos que recebia do novo contratado.

- Mas você tem que parar de andar com Chico de Marcimino por um mês!

Essa parte colocava em xeque “a proposta” e a amizade com o primo, mas como Chico estava endividado com a questão da besta-fera, então, estava na hora de cobrar-lhe a conta.

- Mas por que isso agora?

- Ontem sua mãe esteve aqui e me contou que vocês entraram no roçado de Fuloriza, abriram uma janela na melancia grande que ela estava cevando pro genro e, comeram e ainda por cima, cagaram dentro. É verdade?

- Tá certo! Quando é que eu começo?

O destino finalmente lhe sorriu e uma perspectiva se abriu num horizonte próximo. Não via a hora de chegar o sábado pra ir na feira de Jardim do Seridó escolher a musa da sua tão esperada insatisfação contida. As coisas mudaram na rotina diária. Acordava no cagá dos pintos, por volta de 5h da matina, pra visita diária aos quixós, que era pra tomar o café com o avô às 6 h em ponto. A mãe, desconfiada com tanta disciplina e disposição, perguntou:

- Pra onde vai tão cedo?
- Pra casa de vovô.
- Vê o que a essa hora?
- Vou pastorar o arroz.

A mãe percebeu que havia coisa no ar, mas não ia se meter com o pai pra não atrapalhar e magoar feridas. No sábado às 4h da manhã o burro e o jumento, selado e encangalhado, respectivamente, aguardavam os passageiros para uma tangida de 4 léguas. Cinco e meia desembarcaram nas imediações do mercado, seu avô foi no armazém de algodão, do Cel. João Medeiros, receber um saldo, e às 6h seus olhos brilharam com os 60 centavos de réis que seu avô depositou na sua mão.

- Era cinquenta, vovô!
- Você se esforçou muito e merece.
- Obrigado!

Correu de porta a fora na direção do mercado e foi direto na banca mais atrativa e começou a busca por aquela que encantasse mais seus olhos e fizesse um rastro de nobreza. Já que estava pagando queria uma de pneu de besta-fera (Ford 29) pra ficar um rastro bonito na areia do rio. E lá estava ela brilhante e imponente pendurada na prateleira e bem dentro do orçamento, por 50 centavos. Ainda sobraram 10 centavos pras guloseimas de garapa de cana com pão doce.

Em casa lhe aguardava o amigo ferido pelo jejum de uma semana, mas já sabendo que a anistia passaria por um longo processo de negociação, afinal havia um contrato em vigência, cuja quebra poderia acarretar em consequências imprevisíveis. Entretanto, a alegria de Zé Leão, erguendo seu troféu em mãos, foi tão contagiante que o avô se apressou em dizer “Chico, experimente as apragatas de rabicho de Zé Leão pra vê se cabe no seu pé?” Ele em verdade quis dizer “Tá vendo Chico, como é importante andar direito ganhando a vida com seu suor?” O proprietário do novo “automóvel” ficou enciumado, mas a saudade do amigo fez esboçar um sorriso amarelo.

Leão continuou andando descalço, pra não gastar a rodagem do seu precioso objeto de estimação, exceto aos domingos quando o punha debaixo do braço e ia encontrar o amigo, pra fazer rastro de FOR-29 nos bancos de areia fina do rio Seridó.

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