STF derruba restrição LGBTFóbica em doação de sangue. E agora?
Natal, RN 19 de abr 2024

STF derruba restrição LGBTFóbica em doação de sangue. E agora?

11 de maio de 2020
STF derruba restrição LGBTFóbica em doação de sangue. E agora?

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O vale está em festa! Na sexta-feira (8), o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o veto administrativo que impedia a doação de sangue por pessoas LGBT+. A decisão do STF foi uma resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 07 de junho de 2016. Na ADI, foram questionadas a Portaria nº 158/2016, do Ministério da Saúde, e a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 34/2014, da Anvisa. Em síntese, ambas dispõem sobre a suposta inaptidão “temporária” para doação sanguínea de indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo nos últimos 12 (doze) meses.

É um marco importante para as lutas sociais no Brasil a ser celebrado, principalmente em tempos de tão poucas comemorações e de Coronavírus. Ao mesmo tempo, é preciso retomar aspectos desse processo, inclusive votos de alguns ministros, que escancaram faces da LGBTfobia estrutural, institucional e individual e que reafirmam a necessidade de permanência e ampliação de nossas lutas.

Quem perdia com o veto e qual sua origem?

Mais do que afetar homens gays, como muito tem sido falado, a alegada sustentação biológica do veto impedia de doar – para ficar apenas em alguns perfis – homens bissexuais e pansexuais, mulheres trans heterossexuais, bissexuais e pansexuais e uma parcela das pessoas não-binárias. Além da violência produzida sobre essas pessoas, o veto empurrava para a morte aquelas e aqueles que precisam de sangue em um sistema de bancos quase sempre em baixa. Apenas considerando o número de homens autodeclarados gays e bissexuais, segundo o IBGE, estima-se que se desperdice cerca de 19 milhões de litros de sangue por ano.

A origem dessa proibição é conhecida por quase todos: a associação direta e discriminatória das vidas LGBT+ a AIDS. Quando o vírus HIV surgiu, a falta de dados e testes científicos mais precisos e as incertezas sobre a doença e seu tratamento podiam justificar medidas restritivas vitalícias ou temporárias na doação de sangue. Com o passar dos anos, contudo, os diagnósticos evoluíram, inclusive no protocolo de triagem e testagem da doação sanguínea. Há quem argumente que a pessoa pode ter se contaminado dias ou semanas antes da doação, o que não seria identificado em razão da janela imunológica. Mas isso também pode ocorrer com aquela senhora casada com o tão insuspeito “marido fiel”.

Aliás, o HIV e a AIDS, infelizmente, têm crescido a passos largos em meio às pessoas heterossexuais e cisgênero, como evidenciam os dados do Boletim Epidemiológico HIV/AIDS 2019, do Ministério da Saúde. Para essas pessoas, não têm sido exigidos, na entrevista de doação sanguínea, a confirmação do uso de preservativos quando em relações estáveis e muito menos a abstinência sexual.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, de fato, ainda há predominância de contaminação de HIV/Aids entre homens que praticam sexo com outros homens. Porém, além do crescimento entre homens e mulheres heterossexuais, não há estudos conclusivos quanto ao impacto da orientação sexual na doação de sangue. Por isso, países como Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Portugal, Espanha e Itália baseiam-se no comportamento sexual do indivíduo na triagem e não na generalização a partir da orientação sexual ou do gênero do doador e do parceiro.

Fica evidente, portanto, que a ampla restrição imposta às pessoas LGBT+, na doação de sangue, sustenta-se, sobretudo, no preconceito e na discriminação.

A vitória só veio agora na pandemia, mas as lutas vêm de décadas

Desde 1990, muitas têm sido as lutas no Brasil e no mundo pela pauta. A pandemia do Coronavírus, para além das dores e perdas acarretadas, tem tido um papel de escancarar desigualdades absurdas produzidas ou acentuadas pelo sistema capitalista e reproduzidos por instituições e pessoas. Os vetos indevidos no processo de doação de sangue, enquanto há gente morrendo precisando de transfusão, é um desses absurdos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, até 2015, a proibição de doação por pessoas LGBT+ era vitalícia. As lutas no movimento LGBT+ estadunidense fizeram com que se instituísse o prazo de 12 meses para a restrição, período até então aplicado no Brasil. Em abril de 2020, a pandemia e a queda nas doações fizeram com que a Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos reduzisse o período de restrição para três meses, a partir de dados científicos que já dispunham há décadas. Esse prazo reduzido, inclusive, havia sido adotado pelo Canadá em 2019.

Não é à toa que a vitória brasileira no STF também tenha ocorrido durante o isolamento imposto pelo Covid-19. Várias notícias, campanhas e relatos de gestores de hemocentros têm apontado queda drástica nas doações desde março, tornando insustentável a restrição imposta pelo Estado brasileiro e denunciada há décadas pelas lutas LGBT+.

Já nos anos 2000, duas dessas lutas tiveram significativa repercussão nacional. Foram as campanhas “Igualdade na Veia”, liderada pelo Grupo Dignidade, em 2015, e a #DoaçãoSemDiscriminação, organizada pelo Coletivo LGBT+ Leilane Assunção, em 2019.

Na iniciativa “Igualdade na Veia”, página e materiais nas redes sociais acompanharam uma petição virtual que reuniu mais de 20 mil assinaturas para a derrubada do veto. Já entre as ações da campanha #DoaçãoSemDiscriminação, foram organizados materiais virtuais, vídeos, comunicados à mídia, uma Dia D para doação sanguínea reunindo dezenas e dezenas de pessoas LGBT+ no Hemocentro Dalton Cunha, em Natal/RN, no dia 31 de agosto de 2019. Impedidos de doar diante da mídia que fazia a cobertura, os militantes presentes organizaram um protesto no local. Foram surpreendidos com o impedimento, pois haviam contactado o hemocentro quando da decisão da Justiça do Rio Grande do Norte que proibia o veto em 2019, informando da ideia da campanha. O sonho de doar virou pesadelo e mais combustível para as lutas.

Foto: Arquivo Coletivo LGBT+ Leilane Assunção

Se a Covid-19 parece ter tido um papel catalizador nessa questão, estas e outras tantas lutas foram fundamentais para o acúmulo de forças e o avanço das consciências que abriram os caminhos.

O conservadorismo dos Poderes Executivo e Legislativo

Muitos direitos conquistados pelas lutas das pessoas LGBT+ no Brasil têm sido concretizadas no âmbito do Poder Judiciário. Foi assim com o casamento LGBT+, o uso do social, a retificação de gênero e a criminalização da LGBTFobia. A derrubada das restrições LGBTfóbicas no processo doação de sangue soma-se a esse rol.

Essa realidade evidencia a composição historicamente conservadora dos Poderes Executivo e Legislativo. Governos federais, inclusive nas gestões do Partido dos Trabalhadores, perpetuaram a LGBTfobia na doação de sangue. O Congresso Nacional, apesar de dispor de algumas iniciativas que visam superar a discriminação, nunca aprovou um dispositivo legal. Os parlamentos municipais e estaduais, com raras exceções, seguiram inertes.

Por isso, a decisão no STF representa, de fato, um avanço, que somente foi possível com as lutas sociais. Ainda assim, a instituição e sua votação não estão livres de níveis diferentes de LGBTfobia, materializada, por exemplo, na tramitação arrastada até a decisão final.

Durante a votação, o ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a divergir da derrubada do veto. Votou pela procedência parcial da ação, sendo favorável à doação por parte de homens gays e bissexuais, apenas se o sangue coletado fosse utilizado após o teste imunológico efetuado depois da janela determinada pelas autoridades sanitárias. Foi acompanhando pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Este último afirmou que o STF deve se conter “diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados".

Ora, se o teste imunológico é aplicado a todo sangue coletado, por que a janela não seria aplicada a outros perfis de doadores diante dos “dados técnicos e científicos devidamente demonstrados” de que pessoas LGBT+ e não-LGBT+ estão sujeitas à contaminação quando adotam condutas sexuais inseguras?

O desconhecimento aqui não pode ser uma justificativa. Sem dúvidas, esses votos sustentaram-se na violência LGBTfobia individual que dá corpo à violência institucional, mesmo que não tenha sido a intenção ou que tenha sido menos aguda do que outras tantas praticadas pelo Estado ou nas ruas.

E agora? Já podemos doar? A luta acabou?

Depois de publicada a decisão que considerou inconstitucional as restrições até então vigentes às pessoas LGBT+, as doações não poderão ser impedidas, a não ser que o doador ou a doadora não cumpram outro critério previsto nas normas do Ministério da Saúde e da Anvisa. Para doar, é preciso, entre outros pré-requisitos:

- Ter entre 18 a 69 anos, ou dispor de autorização dos responsáveis se tiver entre 16 e 17 anos.

- Pesar mais de 50 kg e dispor de IMC maior que 18,5.

- Ter dormido bem na noite anterior à doação e alimentar-se antes da doação.

- Não ter ingerido bebida alcóolica nas últimas 12 horas anteriores à doação ou fumado cigarro nas últimas três horas.

A luta, contudo, não acabou. Sem dúvidas, ainda restarão práticas de LGBTfobia no cotidiano da doação sanguínea. Sem dúvidas, outras tantas situações de LGBTfobia seguirão sendo materializadas nas instituições de saúde, mas também de educação, de trabalho e de tantas outras, pois a LGBTfoia é estruturante do próprio capitalismo.

Até superarmos tudo com mais organização e lutas, comemoramos a vitória que viabiliza a doação de sangue LGBT+. Afinal, é um sinal de que não só precisamos como podemos mudar as coisas por meio das nossas lutas, mesmo que isso demore décadas. É uma vitória da vida, em que fazermos prevalecer uma das nossas certezas: nosso sangue salva; a LGBTfobia mata!

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