A exoneração de Ernesto Araújo e o desastre da política externa brasileira
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A exoneração de Ernesto Araújo e o desastre da política externa brasileira

30 de março de 2021
A exoneração de Ernesto Araújo e o desastre da política externa brasileira

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Ontem o Brasil foi agraciado com o pedido de exoneração do Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo. Talvez este tenha sido o fato mais festejado pelos brasileiros insatisfeitos com o grau de rebaixamento da diplomacia brasileira e da sua política de subalternidade.

Nos dois primeiros anos de governo federal, a política externa brasileira tem sido o espelho das idiossincrasias do presidente Bolsonaro. Este, ainda, na campanha presidencial, em 2018, já havia lançado os fundamentos do que viria a ser a atuação do Itamaraty, chamada de “diplomacia do insulto”, ao atacar os muçulmanos, chamando-os de intolerantes, e ao cogitar fechar no Brasil a Embaixada da Palestina.

O Brasil em pouco tempo destruiu a sua política externa ao abdicar de um protagonismo que vinha conquistando há décadas. Em troca, sob a orientação de Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro passou a adotar uma “política da subserviência doentia” aos EUA, inclusive ao determinar a liberação de todos os vistos para norte-americanos, sem qualquer regra de reciprocidade, algo jamais visto na história da diplomacia das grandes nações do mundo.

A cúpula da diplomacia brasileira, sob a gestão de Ernesto Araújo, não teve a mínima visão estratégica e deixou se contaminar por uma pauta moralista, irracional e de fundamentalismo religioso. O atrapalhado ex-ministro meteu-se em discussões que não lhe cabiam. Ele cogitou transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém e defendeu que esta fosse reconhecida pelo governo brasileiro como a capital de Israel.

No plano da política internacional na América Latina, Ernesto sugeriu fustigar o governo da Venezuela, apoiou o patético Guaidó, autoproclamado presidente de uma nação imaginária, e pareceu ensaiar alianças ideológicas com Mauricio Macri, na Argentina, que não resultaram em nenhum benefício para o Brasil.

A gestão da diplomacia brasileira fez uma política de desarticulação internacional, baseada no deboche a nações parceiras e na incapacidade de construir positivamente acordos e alianças que favorecessem concretamente o país.

Em face das pitorescas participações nas reuniões dos organismos multilaterais, a diplomacia bolsonarista, marcada pela subalternidade ao imperialismo estadunidense, conseguiu transformar o Brasil em motivo de chacota global.

Em plena crise da pandemia global, a diplomacia brasileira não ajudou de forma relevante em nada, mesmo porque mostrou-se inábil para o diálogo ao criar arestas gratuitas e ao adotar posturas xenófobas que desacreditaram totalmente o governo Bolsonaro.

O Brasil foi convidado, em abril de 2020, para fazer parte da Covax, a Aliança Mundial de Vacinas, uma coalizão de 165 países para garantir a imunização contra a Covid-19. Ernesto Araújo boicotou a reunião dos países signatários da OMS (Organização Mundial de Saúde), que tinham interesse na citada articulação, e desperdiçou a oportunidade de adquirir medicamentos e de vacinas contra o coronavírus. Se tivesse integrado a Covax, o Brasil poderia encomendar mais de 200 milhões de doses, o que garantiria de imediato a imunização de metade da população brasileira.

A diplomacia brasileira esteve até o momento preocupada tão somente em debochar da China, embora este seja o seu maior parceiro comercial. A propósito, por orientação de Ernesto Araújo, o país boicotou as doações feitas por empresas chinesas no início da pandemia, conforme denunciou o embaixador da China numa Conferência sobre cooperação internacional no combate à Covid-19. O embaixador afirmou que o transporte das mercadorias doadas era 100% financiado pelo governo chinês, mas ainda assim o então ministro Ernesto não se movimentou para viabilizar a autorização de embarque. A empresa chinesa ByteDance, dona do aplicativo TikTok, com intensa atividade negocial no Brasil, chegou a doar ao governo brasileiro 11 toneladas de equipamentos médicos para o combate à Covid-19, ou seja, o equivalente a 1 milhão de dólares. Os equipamentos ficaram encalhados por meses na China em face dos entraves burocráticos criados pelo Brasil. Outra empresa, de nome Didi, doou milhares de máscaras N95 para o Brasil e também a doação da mercadoria foi ignorada. A propósito, Ernesto Araújo deu respaldo ao chamado Protocolo da Diplomacia de Máscaras, que recomendava não estimular doações vindas da China e orientava que, diante de qualquer doação concretizada, não fosse dada visibilidade ao ato de altruísmo. Por outro lado, o ministro fez questão de propagandear as doações dos 2 milhões de doses de cloroquina feitas pelos EUA ao Brasil.

Sob a gestão de Ernesto Araújo, a diplomacia brasileira desperdiçou a aplicação do art. 4º da Constituição Federal, o qual diz que o Brasil, nas suas relações internacionais, rege-se pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político.

Enfim, até o momento o Brasil continua desacreditado pelo modo grotesco e lunático que a sua diplomacia recente tratou questões importantes como os direitos humanos e o aquecimento global. A esperança é que a experiência confusa de Ernesto Araújo, frente ao Ministério das Relações Exteriores, sirva de lição para que o país nunca mais desperdice a responsabilidade e a oportunidade de levar a sério as suas relações diplomáticas e nunca mais ouse atribuir aos terraplanistas missões para as quais eles nunca foram qualificados para assumir.

*Zéu Palmeira Sobrinho é professor da UFRN, Juiz do Trabalho e integrante da AJD – Associação Juízes para a Democracia

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