A estabilidade do servidor público como condição do serviço público de qualidade
Natal, RN 29 de mar 2024

A estabilidade do servidor público como condição do serviço público de qualidade

1 de junho de 2021
A estabilidade do servidor público como condição do serviço público de qualidade

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A PEC – Proposta de Emenda Constitucional nº 32, que tramita na Câmara dos Deputados e que trata da reforma administrativa, parte da premissa de que é preciso retirar vários direitos sociais dos servidores públicos, dentre os quais a estabilidade, mantendo-a excepcionalmente para os ocupantes das chamadas carreiras típicas. A citada PEC não atinge os militares, os membros de poder, ou seja, parlamentares, juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores, promotores e procuradores.

A proposta de Reforma Administrativa prevê 05 (cinco) modalidades de contratação para servidores públicos:

  1. vínculo de experiência, como etapa de concurso público;
  2. vínculo por prazo determinado;

III. cargo com vínculo por prazo indeterminado;

  1. cargo típico de Estado; e
  2. cargo de liderança e assessoramento.

Há ainda a previsão de que a gestão de desempenho será definida em lei ordinária, pelos entes estatais, até que venha uma lei complementar.

Com a extinção da estabilidade, a PEC 32 prevê que os novos servidores serão admitidos, mediante contrato por prazo indeterminado ou determinado, e nomeados após submetidos, respectivamente, a concurso público ou seleção simplificada.

Se aprovada a PEC 32, os novos servidores públicos selecionados serão contratados para cumprir um período de experiência e somente se efetivarão após aprovados nas avaliações periódicas de desempenho.

No parlamento, a motivação principal do Centrão, ao tentar retirar a estabilidade do servidor público, é abrir caminho para a privatização dos serviços públicos, notadamente aqueles que hoje são indispensáveis à população, tais como os prestados pela rede de atendimento da saúde, da educação e da assistência social. Os aludidos serviços, se forem privatizados, serão explorados consideravelmente sob o controle do mercado, contribuindo para aprofundar o flagelo e a exclusão social num país que já é profundamente desigual e repleto de miseráveis.

A suposta promulgação da PEC 32 tende a provocar o imediato desmantelamento dos serviços públicos, a mercantilização dos bens sociais, a mutilação dos direitos dos trabalhadores públicos e a negação de acesso da população aos direitos sociais.

Na linguagem chula do ministro Paulo Guedes, a PEC 32 visa “colocar uma granada no bolso dos servidores públicos.” Todavia, as principais teses que tentam embasar a defesa da extinção da estabilidade são as seguintes:

é difícil exonerar um servidor público estável se este tiver um desempenho sofrível;

o servidor público no Brasil representa um custo elevado para o erário público;

o serviço público no Brasil tem muitos servidores;

o servidor fica desmotivado após adquirir a estabilidade;

e , por fim, os jovens preferem o risco e o empreendedorismo à estabilidade.

Passa-se a partir daqui à análise das teses apresentadas pelo governo federal para sustentar a aprovação da PEC 32 e mais especificamente a extinção da estabilidade do servidor público.

A primeira tese consiste na afirmação de que é preciso extinguir a estabilidade em razão da dificuldade de exonerar o servidor estável que apresentar rendimento insuficiente. A afirmação não procede, haja vista que já existem leis prevendo que se o servidor público não tiver desempenho satisfatório, ele poderá ser dispensado, ainda que seja estável. Registre-se que o art. 41, § 1º, da Constituição Federal, diz que mesmo o servidor público estável poderá a vir perder o cargo em decorrência de procedimento de avaliação que venha a constatar o desempenho insatisfatório. Os artigos 20 e 132, da Lei 8.112/1990, também colocam a possibilidade de o servidor público ser demitido se tiver fraco desempenho ou se cometer ilicitudes. Então, sem negar que o sistema de avaliação pode e deve ser aperfeiçoado democraticamente, não tem fundamento a alegação de que há dificuldade de demitir o servidor estável desidioso, basta que a administração use os critérios razoáveis para avaliação e obedeça aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A segunda tese é a de que o servidor representa um custo elevado para o Estado. Este argumento também não procede, pois se é verdade que a folha de salário, em números absolutos, parece impactante, percentualmente o quantum destinado ao pagamento de salários dos servidores públicos, no Brasil, representa pouco mais de 10,5% do PIB (Produto Interno Bruto), enquanto nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a exemplo da Espanha, mais de 17% do PIB nacional são destinados ao pagamento dos trabalhadores do setor público.[2]

A terceira tese é no sentido de que no Brasil há excesso de servidores públicos. Tal argumento parece não se sustentar, conforme os dados comparativos entre o Brasil e os países da OCDE. No Brasil os servidores públicos correspondem a 12% da PEA (População Economicamente Ativa), ao passo que nos países da OCDE os servidores são em média 21% da PEA, havendo países, a exemplo de Dinamarca e Noruega, que ocupam mais de 1/3 da PEA. [3]

A quarta tese, de que a estabilidade torna o empregado acomodado e prejudica a produtividade, constitui-se numa afirmação preconceituosa e que busca estigmatizar o servidor público como improdutivo. Essa tentativa de etiquetação é uma forma falaciosa para se tentar empanturrar a administração pública de trabalhadores temporários, com vínculos precários e totalmente vulneráveis aos ocupantes do poder de plantão. Acrescente-se, ainda, que precarizar a carreira do servidor é uma estratégia para se resgatar as formas mais autoritárias de gerenciar a administração pública como negócio privado. Lenin, no IX Congresso do Partido Bolchevique, em 1920, havia alertado que a burguesia jamais deixaria de assimilar a experiência do autoritarismo feudal para a gestão do Estado burguês. É esse Estado dominado pelo mercado, consubstanciado na promiscuidade entre os interesses privados e públicos, que visa insistentemente recuperar as relações de trabalho marcadas pelo afilhadismo, compadrio, nepotismo, servilismo e falta de compromissos com os interesses de bem-estar da sociedade.

A quinta tese é a de que os atuais jovens trabalhadores da geração Y, preconceituosamente chamados pula-pula, que são os nascidos entre 1981 e 1994, não se interessam pela estabilidade porque se sentem desafiados ao risco e à experiência empreendedorista.[4] Essa tese de que os jovens não querem compromisso, em matéria de trabalho, foi desmascarada por uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia, que escutou cerca de 25 mil jovens de 22 nacionalidades. Do contingente de entrevistados, 60% afirmaram que pretendem continuar no emprego atual por pelo menos 9 anos. Ademais, segunda a pesquisa citada pela Revista The Economist,[5] os jovens reconhecem como enganosa a glamourização do empreendedorismo, bem como a tese de que estão dispostos a renunciar à segurança para viver uma aventura. No Brasil em igual sentido foi também a pesquisa organizada por José Alberto Claro. [6]

Historicamente está comprovado que o trabalhador, ao se manter na mesma atividade por mais tempo, tende a ter uma qualificação melhor e uma condição de vida superior. Além disso, do ponto de vista da proteção social, os trabalhadores que tem mais dificuldades de aposentadoria são os que tem uma alta rotatividade nos postos de trabalho, pois são estes que tendem a ter diferentes vínculos com intercorrentes experiências de desemprego.

Na prática, sob a perspectiva neoliberal, a retirada da estabilidade do servidor público significa reduzir as resistências à privatização dos serviços públicos e tende a provocar, em curto prazo, um prejuízo incalculável à profissionalização e à continuidade no serviço público. Para além da privatização, parte da elite brasileira agarra-se à proposta neoliberal por enxergar nesta uma possibilidade de espaço para afirmação do seu legado de autoritarismo e de colonialidade. Com efeito, tentar transformar os servidores públicos em peças descartáveis significará a erosão do vínculo de respeito e transparência do administrador em relação ao cidadão, destinatário dos serviços públicos, às entidades e aos trabalhadores, principalmente aqueles que em razão da sua condição de estável:

são críticos, em relação ao autoritarismo e ao mandonismo, e capazes de demonstrar uma liderança reflexiva perante os membros de sua categoria;

não hesitam em denunciar, provocar o contencioso administrativo ou judicializar em relação aos atos de violações de direito;

rebelam-se contra as discriminações em razão da cor, da raça, da origem étnica, da orientação sexual, ideológica ou religiosa;

são mulheres grávidas ou mulheres que tenham responsabilidades familiares;

são filiados a determinada entidade sindical ou demonstrem interesse em participação na eleição da direção do sindicato;

A estabilidade na relação de trabalho é algo tão importante para a humanização das relações de trabalho que a OIT (Organização Internacional do Trabalho) aprovou a Convenção 158. Esta norma, considerando a eticidade do contrato laboral e o valor social do trabalho, estabelece que em nenhuma hipótese deve o empregador – privado ou público - ter o poder potestativo e inabalável de dispensar arbitrariamente o trabalhador, pois tal ato tende a ter repercussões graves para os que subsistem da relação de assalariamento e tem implicações para os familiares do assalariado, para a sociedade e para a economia do país.

A PEC 32 é a preparação do terreno para a volta do mandonismo, do clientelismo, do nepotismo e de outras mazelas que o serviço público teve no passado. Os governos neoliberais sempre perceberam que os servidores em sua maioria são os grandes sustentáculos da qualidade dos serviços públicos. No Chile, quando Pinochet deu o golpe militar, a primeira forma que ele encontrou para destruir a escola pública e os serviços públicos de saúde foi atacar as conquistas históricas dos servidores públicos, retirando destes o direito à estabilidade e aos salários dignos.

Enfim, cabe à sociedade pressionar o Congresso Nacional para que este recuse a PEC 32 e mantenha a estabilidade do servidor público, pois esta é a condição para se prestigiar o interesse da coletividade, preservar a qualidade, a continuidade e a profissionalização no serviço público. Sem a estabilidade do servidor estarão alargados os caminhos para o apadrinhamento, as rachadinhas, o nepotismo, o carreirismo e o autoritarismo na Administração Pública.

*Zéu Palmeira Sobrinho é mestre e doutor em ciências sociais (UFRN), pós-doutor em sociologia jurídica (Univ. Coimbra), juiz do trabalho, professor da UFRN e membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia.

[2] Os dados mencionados, referentes a 2019, foram retirados do Atlas do Estado Brasileiro, publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no site https://www.ipea.gov.br/atlasestado/, em 18.5.2021.

[3] Para os dados da OCDE consultar: OECD (2015), "Public sector employment as a percentage of the labour force, 2009 and 2013", in Public employment, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/gov_glance-2015-graph49-en.

[4] RUDGE, Marina et ali. Geração Y: um estudo sobre suas movimentações, valores expectativas. RECAPE – Revista de Carreira de Pessoas, disponível em https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/2_32653-88121-2-pb.pdf.

[5] Confira no site: https://www.economist.com/business/2015/08/01/myths-about-millennials.

[6] CLARO, José Alberto Carvalho dos Santos et alli. Estilo de Vida do Jovem da “Geração Y” e suas Perspectivas de Carreira, Renda e Consumo. XIII SemeAD, ISSN 2177-3866, setembro, 2010.

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