Sobre trabalho escravo no Brasil
Natal, RN 22 de ago 2024

Sobre trabalho escravo no Brasil

21 de janeiro de 2024
11min
Sobre trabalho escravo no Brasil
Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

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Como parte do processo de reconstrução do Estado e das políticas públicas em particular, depois de quatro anos do governo Bolsonaro, no final do primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula (2023), se registrou um recorde de resgate de vítimas de trabalho escravo: 3.190 pessoas segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego divulgado no dia 10 de janeiro de 2024, o maior número de resgates no país dos últimos 14 anos e também  registrou o maior número de denúncias (3.422), 61% a mais que em 2022 ( 2.587) em 531 ações de fiscalização

O maior número de ações e resgates foi na região Sudeste, seguida do Centro-Oeste e Nordeste. Foram fiscalizados 598 estabelecimentos urbanos e rurais. Além dos resgates, houve o pagamento de mais de R$ 12,8 milhões em verbas salariais e rescisórias.

Segundo o Sindicato Nacional de Auditores Fiscais do Trabalho, o início do combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil foi a Instrução Normativa Intersecretarial nº 1, de 24 de março de 1994, o primeiro instrumento legal no qual auditoras fiscais tiveram papel destacado “Além de trazer a garantia dos direitos do trabalhador rural e levar dignidade aos trabalhadores, foi essa Instrução Normativa que fez o Brasil reconhecer, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), a existência de trabalho escravo. Em seguida, em 1995, o país criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), base do sistema de combate à escravidão em território nacional” https://www.sinait.org.br/noticia/20644/primeiros-instrumentos-de-combate-ao-trabalho-escravo-no-brasil-foram-iniciativas-de-auditoras-fiscais-do-trabalho.

Assim, foi no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) o reconhecimento oficial por parte do Estado brasileiro da existência do trabalho escravo (portanto mais de um século depois do fim oficial da escravidão). Fernando Henrique havia publicado em 1991 (Editora Civilização Brasileira) a tese de doutorado (orientada por Florestan Fernandes) um livro que se tornou uma referência sobre os estudos e pesquisas sobre escravidão no Brasil: Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul.

Um relatório da Secretaria de Inspeção de Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego mostrou que nos seus dois governos (1995 a 2002) houve 5.893 resgates de pessoas submetidas a trabalho escravo análogo à escravidão.

No Congresso Nacional a primeira proposta nesse sentido foi a PEC 438 de 2001 que ficou conhecida como PEC do Trabalho Escravo que alterava o art.243 da Constituição de 1988 prevendo a expropriação de propriedades onde se constatasse trabalho escravo e ainda o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência da exploração de trabalho escravo “sendo revertido em benefício de instituições e pessoal especializado no assentamento dos colonos que foram escravizados, bem como no aparelhamento estatal e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão”.

Esta PEC só foi votada, aprovada e sancionada treze anos depois, em 2014 (Emenda Constitucional n. 81) pela presidenta Dilma Rousseff.

No dia 20 de dezembro de 2002, onze dias para o fim do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei 10.608 que estabelece “prover assistência financeira temporária ao trabalhador resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo ou reduzido à condição análoga à de escravo” com direito a receber três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo.

Quase um ano depois, no dia 1 de dezembro de 2003, Lula sancionou a Lei. 10.803 que alterou o art. 149 do Código Penal (de 1940), com penas de dois a cinco anos, além de multa (aumentada se o crime for cometido contra crianças ou adolescentes) em caso de constatação de trabalho análogo à escravidão.

Essa Lei foi parte de um conjunto de iniciativas do governo Lula de combate ao trabalho escravo e no final dos dois governos (2003 a 2010) houve o resgate de 32.986 trabalhadores, resultado de ações contidas nos Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo (o primeiro de 2003 e o segundo em 2008 com 66 linhas de ação, com estratégias não apenas para o enfrentamento e à repressão, como também à reinserção, prevenção e capacitação dos resgatados.

Foi criada também a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), em 31 de julho de 2003, com o objetivo de coordenar e avaliar a implementação das ações previstas no combate ao trabalho escravo, além de acompanhar a tramitação de Projetos de Lei no Congresso Nacional e avaliar a proposição de estudos e pesquisas sobre o trabalho escravo no país.

Em 2004 foi criado o Cadastro de Empregadores Infratores, com o nome de pessoas físicas e jurídicas flagradas pela fiscalização na prática do trabalho análogo à de escravo, que ficou conhecido como Lista Suja, que expõe o nome dos empregadores, além de terem sua propriedade monitorada por dois anos pela auditoria trabalhista.

O governo de Dilma Rousseff deu continuidade as políticas de combate ao trabalho escravo, criando (2011) a Frente Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.

No dia 5 de junho de 2014 foi promulgada a Emenda Constitucional 81 alterando o art. 243 da Constituição Federal estabelecendo que “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular” e prioridade dos resgatados em áreas de assentamentos.

O problema é que essa lei, até 2024, não foi regulamentada.

Com o golpe contra Dilma Rousseff e em 2016, nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, entre os inúmeros retrocessos, houve também em relação ao combate do trabalho escravo, com a diminuição de verbas e fiscalização, segundo dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).

 Entre as iniciativas importantes aprovadas antes, a aprovação da lista suja de empresas que foram condenadas por uso de trabalho escravo, que incluía à proibição de acesso a crédito rural e que nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro teve seu acesso dificultado.

Em 2017, no governo de Michel Temer, as regras sobre a caracterização do trabalho análogo à escravidão foram alteradas, ignorando as inúmeras irregularidades constatadas pelos auditores fiscais como o não pagamento de salários.

Na campanha eleitoral e depois de eleito, Jair Bolsonaro afirmou que queria desregulamentar a legislação trabalhista para “tirar o Estado do cangote do empreendedor” e criticou o combate ao trabalho escravo.

No dia 1 de maio de 2021 ele atacou a Emenda Constitucional 81 de 2014 afirmando para um grupo de empresários que precisava rever a emenda e que não seria aprovada no seu governo, como de fato não foi.

E apesar disso, graças ao trabalho de fiscais e da Polícia Federal em 2022, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, 2.575 trabalhadores (e trabalhadoras) foram resgatados de condições análogas às de escravo, que correspondeu a um terço a mais que em 2021. Do total 35 eram crianças e adolescentes. Foram encontradas práticas de trabalho análogo ao de escravo em 17 estados exceto em três, Alagoas, Amazonas e Amapá (https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/trabalho-escravo-2575-pessoas-foram-resgatadas-em-2022).  Em 2021, dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública mostram que o número de operações abertas pela Polícia Federal para resgatar trabalhadores em condições análogas à escravidão aumentou 470% em relação a 2020.

Quanto à “lista suja”, em outubro de 2023, como parte das iniciativas do governo Lula de combate ao trabalho escravo foi incluído na lista mais 204 nomes entre pessoas e empresas, a maior já realizada, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). E entre os incluídos, a Cervejaria Kaiser, do Grupo Heineken.

O trabalho escravo está presente em muitos países, não é uma especificidade do Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho “A escravidão moderna está presente em quase todos os países do mundo e atravessa fronteiras étnicas, culturais e religiosas” e que 50 milhões de pessoas viviam em situação de escravidão moderna em 2021, segundo o Global Estimatives of Modern, 28 milhões realizavam trabalhos forçados e 22 milhões estavam presas em casamentos forçados.
Segundo a OIT “O número de pessoas em situação de escravidão moderna aumentou consideravelmente nos últimos cinco anos. Em 2021, 10 milhões de pessoas a mais estavam em situação de escravidão moderna em comparação com as estimativas globais de 2016” (https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_855426/lang--pt/index.htm).

Em relação ao Brasil, o que explica o fato de 135 anos da Lei áurea e sendo um crime previsto no Código Penal (de 1940), ainda continue havendo trabalho escravo? Agora não são mais (majoritariamente) africanos negros e seus descendentes, mas trabalhadores com baixa escolaridade e na pobreza extrema. A maioria são migrantes internos, que se empregaram em atividades como a pecuária, a produção de carvão, o desmatamento e o cultivo de cana-de-açúcar, soja, algodão, café e outras lavouras. (https://escravonempensar.org.br).

No Congresso Nacional a tramitação de Projetos de Lei que visam o combate a trabalho escravo continua. Em 2019, cinco anos após sua promulgação da Emenda Constitucional 81, o senador Randolfe Rodrigues protocolou o Projeto de Lei. 5.970 que dá efetividade à Emenda que estabelece a perda de propriedades (rurais e urbanas) nos casos identificados de trabalho escravo, sem qualquer direito a indenização. 

Quatro anos depois havia sido aprovada pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) e Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, mas ainda não foi votado em plenário, ou seja, dez anos depois, em 2024, ainda falta uma norma para regulamentar o confisco de propriedades previsto na Emenda Constitucional de 2014.

E caso seja aprovado no Senado ainda seguirá para votação na Câmara dos Deputados na qual a bancada ruralista é muito mais influente e dificilmente o PL será aprovado.

A escravidão atual é como diz o sociólogo e professor aposentado da USP, José de Souza Martins uma anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade capitalista “mutilada e insuficientemente realizada atravessada pelo primado de interesses econômicos” (introdução do livro Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista (São Paulo, Editora UNESP, 2023)).

 E mais: “Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser também, proprietário de gente”.

E cita o fato de que em 27 de junho de 2023 dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. Só que isso ocorreu em 2002, há mais de 20 anos, mas como ele diz, o crime de escravização é imprescritível e o julgamento foi em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Fundamentalmente, como ele desenvolve no livro, o trabalho análogo à escravidão está inscrito na estrutura lógica do capitalismo (no caso do Brasil ele considera como sub-capitalismo) e sobre o modo “como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado (...). Mas, sobretudo, indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva”.

Trabalho escravo ou análogo a escravo é crime. Segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro (de 1940), ocorre em quatro modalidades: submeter o trabalhador a trabalhos forçados; a jornadas exaustivas; sujeitar a condições degradantes de trabalho e restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador ou preposto e sua permanência é uma afronta à dignidade humana e aos princípios elementares do Estado Democrático de Direito.

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