Um diálogo sobre pessimismo e otimismo na pós-pandemia: será a humanidade essencialmente desumana?
Natal, RN 29 de mar 2024

Um diálogo sobre pessimismo e otimismo na pós-pandemia: será a humanidade essencialmente desumana?

19 de maio de 2020
Um diálogo sobre pessimismo e otimismo na pós-pandemia: será a humanidade essencialmente desumana?

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Por Robério Paulino

Depois da minha última Reflexões sobre a Pandemia, publicada aqui, na qual discuti as possibilidades de avanço e os perigos de retrocesso que vive a civilização nessa grave crise, diversos amigos de várias partes do país e mesmo do exterior me fizeram chegar seus comentários. E a maioria deles com uma crítica de que, apesar de eu ter apontado no texto tanto as possibilidades de avanço quanto de retrocesso social na saída dessa pandemia, de fato meu texto seria exageradamente otimista e subestimaria os retrocessos que vêm ocorrendo no Brasil e no mundo.

Muitos criticaram também o texto que citei de Zizek (2020), onde ele prevê uma humanidade melhor e mais solidária depois dessa crise, visão que para esses amigos seria demasiadamente pragmática, ingênua e otimista. Por isso resolvi dar seguimento a esse debate, usando nesse novo texto mesmo a primeira pessoa, o que não costumo fazer.

Não só pela reação a meu último artigo, mas pelo que observamos nas redes sociais, nos comentários de muitos analistas, constata-se que existe no mundo nas últimas décadas uma onda geral de ceticismo, de desesperança em uma alternativa societária melhor, e isso também é visível durante a comoção pela qual passa no momento a humanidade. Esse sentimento é perceptível mesmo nos círculos de esquerda, que em tese acreditam e lutam pela construção de uma sociedade superior. Evidentemente, esse pensamento é potencializado pela pandemia, que isola milhões em suas casas e leva a um clima de impotência. Têm aumentado muito os casos de depressão e doenças neurológicas nessa quarentena.

No Brasil, a pandemia se combina com uma crise política, com a decepção de grande parte da população com o governo Bolsonaro e a constatação que o país está sob um governo de direita irracional, messiânico, negacionista, que agrava a emergência sanitária com suas atitudes. Muitos estão decepcionados também com a falta de reação da maioria da população às reformas, aos ataques aos direitos sociais no último período. Nesse momento, questionam por que, apesar dos arroubos do presidente, que solapa os esforços coletivos de combate ao vírus, na contramão de todas as recomendações da ciência médica e da OMS, 1/3 ou mais da população segue apoiando o governo e porque demora tanto um impeachment.

Nas redes sociais, muitos afirmam que as pessoas que apoiam Bolsonaro não o fazem enganadas, na verdade seriam más, iguais ao seu líder, o que implicaria colocar nessa categoria dezenas de milhões de pessoas. Alguns só veem retrocesso no país e no mundo e um futuro imediato pior. Descreem de qualquer lado bom da alma humana. Outros destacam a paralisia dos trabalhadores, mesmo os organizados em sindicatos. Estariam certos esses amigos? Alguns começam mesmo a desacreditar do ser humano, dos povos, dos trabalhadores, do futuro da civilização. Esse texto pretende dialogar com esse sentimento geral e discutir se devemos estar pessimistas ou otimistas com as possíveis saídas dessa crise.

De fato, se observarmos apenas o fim do século passado e as duas primeiras décadas do século que corre, não temos muitos motivos para otimismo. As tentativas de construção de uma sociedade socialista no Século XX se burocratizaram e depois colapsaram, com os países que a tentaram retornando ao capitalismo, como na Rússia e na China. No último período, temos visto a volta de governos de direita ao comando de países altamente escolarizados, como Trump. Partidos de extrema direita, alguns diretamente fascistas, vêm tendo votações maiores, mesmo na Europa. A xenofobia e a intolerância voltam com força mesmo nesse continente altamente escolarizado.

No terreno econômico e social, o neoliberalismo, apesar da grave crise financeira que gerou em 2008, segue à frente de muitos governos, suprimindo milhões de empregos e cortando salários e direitos sociais. A desigualdade social e a concentração de renda voltaram a patamares de antes de 1929. A pobreza revelada nesses poucos meses de pandemia vem chocando a muitos. Apesar do empobrecimento das populações, os sistemas de proteção social e de saúde pública vinham sendo corroídos, mesmo em países centrais. No caso dos EUA, na verdade quase já não existem.

No aspecto ambiental, a ação humana é destrutiva para a natureza e para as demais espécies. O clima do planeta vem sendo alterado de forma talvez irreversível. Muitas espécies estão em extinção pela ação humana. Rios e mares estão cada vez mais poluídos com todo tipo de detritos. Florestas imensas são queimadas. A atmosfera se aquece e pode ter sua temperatura média elevada em até 1 grau Celsius até o final do presente século, conforme previsões do IPCC. Secas, inundações, desertificação de muitas áreas, fomes severas, poderão ser algumas das consequências.

O risco de novas guerras arrasadoras segue latente. Vários países continuam com arsenais nucleares que podem destruir instantaneamente todas as grandes cidades do mundo. Nestes dias de pandemia, passou despercebido de muitos a ameaça da Rússia de retaliar diretamente com mísseis nucleares um possível lançamento de foguetes norte-americanos próximo ao seu território, lembrando os tempos da Guerra Fria. O Oriente Médio e a Palestina são barris de pólvora. Como consequência das guerras recentes no mundo, milhões vivem em campos de refugiados, em condições sub-humanas.

Na verdade, a história do sapiens não é só de avanços, progresso e coisas belas. Infelizmente, a saga humana também foi construída sobre um rastro de guerras, massacres, mortes, sangue, opressão, desigualdade, sofrimento, dor. Foi isso que procurei mostrar em meu último texto, apontando que mesmo depois dessa pandemia, os riscos de retrocesso civilizatório, de retorno ao caos, à barbárie, seguem presentes, não podem ser descartados, especialmente se o setor mais consciente de nossa espécie não agir enquanto é tempo.

Seria o sapiens essencialmente mau?

Frente às atrocidades e perversidades que observamos, muitas pessoas tendem a buscar a explicação da violência, da desigualdade, das barbáries que observamos, na natureza humana, que seria essencialmente má. Para elas, o ser humano seria egoísta, possesivo, violento contra os semelhantes, o que explicaria a história de guerras, massacres, opressões. Essa visão encontra respaldo no campo da Filosofia. Para o filósofo Thomas Hobbes, que viveu na virada entre os séculos XVI e XVII, o ser humano é essencialmente mau. Essa concepção pode ser encontrada na sua obra O Leviatã (1979). Como o homem não é um ser do bem e não saberia viver em sociedade, é preciso então que uma autoridade superior imponha a ele as regras de convivência, justificando-se assim um Estado absolutista. No sentido oposto, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, em Do contrato social (1973) considerava que o homem tem uma natureza essencialmente boa, mas que seria corrompida pelo processo civilizador, ou seja, pela sociedade. O homem nasce bom e livre e ao crescer e viver, por todo lado é violentado, se corrompendo então.

Talvez uma das melhores discussões sobre a natureza humana tenha sido feita pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (1999). Depois de sequestrado por um comando israelense, o carrasco nazista Eichmann é levado a julgamento em Jerusalém. No entanto, durante o julgamento, em vez de um monstro assassino que todos esperavam, o que surge é um funcionário nazista medíocre, um arrivista completamente incapaz de refletir sobre as atrocidades que havia praticado ao mandar milhões de seres humanos para a morte nos campos de concentração, repetindo clichês típicos de um funcionário obediente apenas.

Não é na natureza humana, no entanto, que devemos buscar as explicações para os acontecimentos humanos, os processos sociais, ainda que não sejam secundárias as diferenças de caráter adquiridas pelos indivíduos em sua vida. A formação das mentalidades e as personalidades dos indivíduos devem ser explicadas antes de tudo pelo seu meio social, a sociedade, com seus valores culturais, e pela família, no quais nasceram e vivem. É difícil acreditar que uma criança nasça má, com um “pecado original”. Uma criança nasce uma página em branco, pura. É a educação que recebem na família, na escola e na sociedade que vão moldar o seu comportamento posterior. Uma sociedade desigual, brutalizada, inculta, egoísta, gerará indivíduos igualmente brutos, com valores negativos, com óbvias exceções. Já uma família e uma sociedade com valores humanos mais elevados, formará indivíduos melhores.

É a condição social a que são submetidos, que divide os seres humanos em classes e perpetua a exploração e a desigualdade, que vai levar os indivíduos a tomarem consciência de sua situação e começarem a lutar por uma sociedade melhor, mais justa, igualitária e pacífica. Ao contrário do que prega a ideologia capitalista atual, de que a é saída para uma vida melhor é individual e isso pode levar ao engrandecimento social, o que se vê no mundo neste momento é um empobrecimento geral das populações, uma precarização das relações de trabalho, com grande elevação da desigualdade e da pobreza, mesmo nos países centrais. Para ser vitoriosa, a luta só pode ser coletiva.

Também temos motivos para otimismo

O que procurei mostrar em meu último texto, no entanto, é que nem tudo é motivo para pessimismo, nem tudo está perdido, que existem muitos traços da realidade que nos levam a crer em um futuro melhor para a civilização, apesar dos imensos perigos que moram ao lado. Dei vários exemplos e aqui retomo alguns.

Há apenas 80 anos não existiam sistemas de proteção social universais, mesmo na Europa; hoje eles existem, mesmo precarizados. O neoliberalismo, apesar de sua fúria depois de 1979/80, não conseguiu destruí-los em todos os lugares; alguns seguiram mesmo sendo ampliados de lá para cá. Nessa pandemia, eles demonstram toda sua essencialidade e muito provavelmente terão que ser reforçados, queiram os governos capitalistas ou não. Muito em breve os trabalhadores da saúde, por exemplo, sairão dos hospitais para a ruas, com uma imensa autoridade. Já veremos.

Hospitais públicos, como temos no Brasil atualmente, ainda que precários, sequer existiam há 100 anos. Médicos eram raros. Hoje, em todo mundo, poucas pessoas não estão vacinadas contra as doenças mais sérias. Até os séculos XVIII e mesmo XIX, mesmo a nobreza sequer escovava os dentes, nem sabia o que era um sabonete; hoje poucos seres humanos não têm acesso a um creme dental barato. Em 1800, um nobre ou um capitalista rico não tinham os remédios que hoje mesmo as populações mais pobres têm acesso, como os antibióticos. Por isso, apontei no meu último texto como se elevou muito a expectativa de vida em todo mundo nas últimas décadas.

Basta olhar a nossa volta, em nossas casas, nas ruas, e observar a quantidade de bens e serviços de que dispomos, mesmo nas residências mais pobres: geladeiras, fogões, televisores, móveis, energia elétrica, lâmpadas, água encanada, talheres de aço, copos, móveis, roupas industrializadas, tênis etc. A transformação pela qual passou a China em apenas 70 anos, saindo de um país eminentemente rural para um país industrial, escolarizado e moderno, dá a dimensão das transformações vividas nessas últimas décadas. Bastaria também comparar o Brasil rural e analfabeto de 1950 com o país de hoje, para entendermos do que falo.

Há apenas 70 anos, mais de 90% dos seres humanos eram praticamente analfabetos; hoje, felizmente, a imensa maioria das crianças, mesmo nos continentes mais pobres, como na África, estão na escola. Há 100 anos, as mulheres não votavam; hoje votam. Os analfabetos idem. No Brasil, até 1988 não existia aposentadoria rural; hoje milhões a recebem. Eu poderia seguir dando exemplos para mostrar que, apesar de tudo, de todas as guerras, atrocidades, desigualdade, a humanidade hoje está muito maior e melhor material e culturalmente do que em épocas anteriores. O prejuízo ficou com animais e plantas, que viram seu número e suas áreas vitais drasticamente suprimidas pelo sapiens.

Esses avanços não se deram por obra do capitalismo, com seu ímpeto avassalador, mas apesar dele. Ocorreram porque, apesar de tudo de ruim que vemos, as populações, os povos, as massas trabalhadoras exigem, lutam, conquistam. E porque a ciência e o conhecimento humano progridem cada vez mais rapidamente e permitem rápidos avanços na tecnologia, na produtividade, na medicina, na educação etc. Mas é inegável que, pelo medo das revoluções sociais, para não desaparecer do mundo enquanto sistema social, o capitalismo demonstrou-se de uma adaptabilidade imensa, de grande plasticidade.

No terreno da política, o mundo de até 400 anos atrás era um mundo de poderes absolutistas, um mundo de opressão, sem qualquer participação das massas populares. Foram necessárias muitas revoluções, mortes, muito sangue, para trazer ao mundo a limitada democracia burguesa representativa que temos hoje. Ela é uma conquista que hoje temos que defender contra os fascistas, que pregam regresso a ditaduras.

Os retrocessos que hoje observamos, seja no campo dos direitos sociais e civis ou da democracia, nos devem deixar alertas. Mas para avaliar se a humanidade tem avançado ou regredido, devemos ampliar nossos horizontes, olhar em perspectiva sobre vários séculos. E se assim o fizermos, a conclusão evidente é que a humanidade - apesar de tudo de negativo que citamos, guerras, massacres, violência, desigualdades, pobreza – está melhor, muito maior, mais longeva, mais rica, senhora do planeta sobre os demais animais e plantas.

O que tentei apontar no meu último artigo é que temos tanto motivo para temer um retrocesso sim, como para esperar e lutar por uma saída positiva após essa pandemia. Apesar de tudo de ruim que constatamos, a humanidade não tem vocação para suicida, soube achar o caminho até aqui, através de milhares de anos. Cientistas trabalham febrilmente para conseguir uma vacina ou um coquetel de remédios contra o vírus e em breve o conseguirão. Ademais, a maioria dos infectados desenvolve anticorpos contra a doença, pelo aprendizado de milhares de anos de nosso sistema imunológico.

Nesse momento, grande parte da humanidade está paralisada em casa, acuada por um inimigo perigoso e invisível. Mas, se não todos, pelo menos milhões de pessoas estão refletindo sobre as causas e lições desse cataclismo. Os jovens, as novas gerações, que terão o futuro em suas mãos, estão aprendendo, refletindo, sobre o atual curso equivocado das sociedades, e poderão dar um futuro diferente à civilização. Um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e de paz é possível.

Além disso, é só uma questão de tempo a volta de novas lutas sociais. A paralisia temporária que observamos no Brasil não será para sempre. O retrocesso que vivemos no país no último período e nas últimas eleições, que levou um fascista ao governo, poderá ser revertido. O desgaste, as divisões e o afastamento de Bolsonaro de vários de seus aliados de ontem, com menos de 1 ano e meio de governo, indica a dura dialética dos processos, de que nada dura muito em nossa época, tudo é passageiro, até as derrotas.

Miremo-nos no belíssimo exemplo recente do Chile, de uma explosão social que levou milhões às ruas no país onde o capital mais precocemente aplicou um duro plano neoliberal. Em 2019, a juventude e a população daquele país nos deram uma emocionante lição, de que avançar através da luta social, coletiva, nas ruas, é plenamente possível. Depende de cada um de nós. Depende de você que leu esse texto até aqui de fazer a coisa certa.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1979.

ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)

ZIZEK, Slavoj. Zizek: O nascimento de um novo comunismo. Entrevista ao jornal La Repubblica. Traduzido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Publicado no portal outraspalavras.net. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/zizek-o-nascimento-de-um-novo-comunismo/. Acesso em: 08 de maio de 2020.  

[1] Professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

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