Sônia Haas: paciência, resistência e persistência marcam meio século de luta por memória e justiça a desaparecidos
Natal, RN 20 de abr 2024

Sônia Haas: paciência, resistência e persistência marcam meio século de luta por memória e justiça a desaparecidos

12 de março de 2023
11min
Sônia Haas: paciência, resistência e persistência marcam meio século de luta por memória e justiça a desaparecidos

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A publicitária Sônia Haas tinha 21 anos, quando soube da morte do seu irmão João Carlos Haas Sobrinho. Médico, ex-presidente do centro acadêmico da Faculdade de Medicina da UFRGS, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o gaúcho de São Leopoldo, João Carlos, foi assassinado por tropas do exército em 1972, na Guerrilha do Araguaia. Uma história que só foi conhecida pela família a partir de publicações veiculadas pelos jornais brasileiros em 1979.

Foi um soco no estômago”, desabafa Sônia.

Tinha início uma busca que, após meio século, não chegou ao fim. Faltam respostas do Estado brasileiro sobre as circunstâncias da morte e a localização dos restos mortais de “Doutor Juca”, codinome de João Carlos.

As dificuldades foram muitas e são muitas”, reclama Haas.

Em entrevista à Agência Saiba Mais, Sônia fala sobre o significado dessa persistente procura, uma luta marcada no Brasil pelo protagonismo das Mulheres, mães, irmãs, filhas e companheiras.

Vejo essa luta sempre com uma luz e uma sensibilidade feminina."

Lembranças

Caçula de uma família de sete irmãos, Sônia tinha apenas 8 anos quando viu João Carlos pela última vez, em 1966. Ele já havia terminado o curso de medicina e disse à família que iria à São Paulo para fazer especialização em um hospital de clínicas. Era a última vez que via os pais e irmãos.

Entre as lembranças da relação com João Carlos, Sônia guarda a marca da atenção, uma característica também lembrada por diversos depoimentos de camponeses do Araguaia que conviveram e foram atendidos pelo “Doutor Juca”.

Aniversário de 8 anos de João Carlos (ao centro de gravata) | Foto: arquivo da família

À afetividade e união que balizaram a relação familiar, Sônia acrescenta outro traço marcante em João Carlos: o espírito de liderança.

Fomos criados num ambiente de liderança, de fazer as coisas acontecer. Meu pai e minha mãe tinham muito isso e nós aprendemos a ter esse espírito de liderança e colaboração dentro de um ambiente muito humanista. Meu pai lotava a nossa casa com pessoas que precisavam de ajuda”, conta Haas.

Os pais

O pai, Idelfonso Haas, era sapateiro e músico. A mãe, Ilma Linck, nasceu numa colônia alemã e foi alfabetizada em alemão. Eles se conheceram em São Leopoldo, na região do “Vale do Rio dos Sinos”, berço da colonização alemã no Brasil e construíram uma vida juntos.

Meu pai era um alemão daqueles bem autoritários, mas era um desbravador, um cara que tinha visão. Assim, na época, acabou virando empresário”, revela Sônia.

Com esse perfil, em 1964, Idelfonso tem o primeiro grande impacto pela atuação política do segundo filho mais velho. No ano de instauração do golpe militar, João Carlos é preso, em Porto Alegre. Ele era o presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFRGS.

Ter que lidar com essa situação não passava pela cabeça do meu pai. Ele era da Arena. Não era assim tão político, mas era alinhado à Arena. Tinha uns amigos, meu padrinho, todo mundo que era da Arena. Meu pai era líder da igreja de São Leopoldo, era empresário, então tinha todo um papel na sociedade e, de repente, o filho é preso. Eu imagino que isso foi um baque para ele”, avalia Sônia, que na época tinha apenas 6 anos de idade.

Em dezembro de 1964, João Carlos Haas conclui o curso de Medicina | Foto: arquivo da família

Depois de sua prisão e com a ameaça de cassação do seu registro na Faculdade de Medicina, houve grande mobilização dos professores e estudantes. A Congregação da universidade o reintegrou, permitindo que concluísse o estágio obrigatório na Santa Casa de Porto Alegre e no Hospital Ernesto Dornelles. Mesmo sem entender ao certo os riscos e significado da luta do filho, Ilma Linck passou a temer o seu envolvimento político no movimento estudantil.

Quando João Carlos saiu da prisão, minha mãe conversou com ele, a sós, ela me contou. No quarto dela, onde as conversas sigilosas aconteciam, ela pediu para que João parasse com a militância estudantil. E ele disse que não podia, que ele tinha que lutar por uma sociedade igual para todos e que, se ela aceitava Jesus Cristo, teria que aceitar ele, a luta dele e que chorou muito”, disse Sônia ao lembrar que a mãe era uma pessoa doce, mas muito forte.

Desaparecimento

Dois anos depois da sua prisão, em janeiro de 1966, João Carlos parte da cidade de São Paulo com um grupo de militantes comunistas para fazer curso de treinamento de guerrilha, em Pequim, na China. Manteve contatos esporádicos com a família, através de correspondências escritas, depois passou a viver na clandestinidade. A última carta é de 1969. Foram dez anos sem que a família tivesse notícias de João Carlos.

Foi muito duro, muito angustiante para meus pais, para nós todos como irmãos, viver esse período sem um contato, sem uma informação, sem uma certeza”, lamenta Sônia.

Ao regressar ao Brasil, João Carlos morou em Porto Franco (MA), município próximo à rodovia Belém-Brasília, onde montou um pequeno hospital. Em 1969, foi viver nas margens do Araguaia, onde adotou o codinome Juca. Na guerrilha, era o responsável pelo serviço de saúde.

O Relatório Arroyo registra que João Carlos morreu em 30 de setembro de 1972, nas redondezas da área do Franco, por uma rajada de tiros de militares. A documentação militar acerca do assunto aponta João Carlos apenas como desaparecido ou morto. O Relatório do Ministério do Exército, de 1993, citado pelo livro da CEMDP, afirma que ele teria desaparecido em 1972. Já no Relatório do Ministério da Marinha do mesmo ano, ele consta como morto em Xambioá. O Relatório do Centro de Informações do Exército (CIE), de 1975, ratifica sua morte no ano de 1972.

Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na região do Araguaia no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, dentre elas está João Carlos.

Os pais, Idelfonso Haas e Ilma Linck, falecidos em 1989 e 2001, respectivamente, morreram sem saber a inteira verdade sobre a morte do seu filhe e sem poder enterrar seus restos mortais.

A procura

Os pedidos de esclarecimento ao Estado brasileiro sobre a morte de João Carlos começaram em 1979, tão logo a família teve acesso a matérias jornalísticas que tratavam da realização da Guerrilha do Araguaia. E foi na faculdade que Sônia iniciou sua jornada de busca por memória, verdade e justiça para João Carlos. Ela cursava publicidade.

Professores de filosofia da comunicação tinham sido presos, falavam em aula alguma coisa, então eu comecei a me abrir com essas pessoas”, revela Sônia ao falar das dificuldades e medos com que os pais tratavam o assunto em casa. “O assunto era muito evitado lá em casa. Muito evitado”.

A irmã Tânia, que estava na universidade federal, buscou pessoas em Porto Alegre, indicadas por amigos de João Carlos.

A gente começou a tatear, a caminhar nesse terreno totalmente desconhecido”, afirma Haas.

Pouco a pouco, Sônia foi tomando a frente desse doloroso trabalho de busca pelos restos mortais de João Carlos Haas Sobrinho.

Eu tomei a frente porque tínhamos uma prima que já fazia a busca pelo João, que era a Marisa, que tinha a idade dele e circulava muito na sessão de índices da Universidade de Porto Alegre. Ela me abriu o caminho e foi me passando esse legado”, explica.

Com o processo de abertura para democracia, Sônia Haas se engaja na luta coletiva pela busca dos desaparecidos políticos e fez algumas visitas à região do Araguaia, onde o irmão participou da guerrilha.

Para Sônia, que recebeu dos pais uma procuração para seguir a procura, o papel destacado das Mulheres na preservação da memória dos seus familiares e na persistência da busca por justiça e reparação tem relação com a garra, força, coragem e comprometimento.

É o coração materno que busca pelo seu filho, pelo seu companheiro, pelo seu irmão, pelo seu pai. É aquele vazio que a gente carrega, que a gente quer preencher".

Com uma história que não pode dominar e uma verdade que vai se revelando com o tempo, Sônia tem esperança no futuro.

Eu acredito muito que agora a gente vai ter uma evolução nos trabalhos de busca, trabalhos de arquivos e de resgate dessa memória, da verdade e da justiça. Eu aposto muito nesse tempo novo que nós lutamos tanto para reconquistar”, assegura.

Ao novo momento político vivido pelo país, Sônia ressalta a importância da garantia de continuidade dessa busca por memória e justiça pelas novas gerações.

"Eu vejo que a gente conseguiu manter a luta até agora e ela começa a se expandir".

Haas cita a importância das pessoas que conheceu nessa procura em diversos locais do país, como São Paulo, Brasília e Porto Alegre, a exemplo de Margarida Bulhões Pedreira Genevois, que durante 25 anos atuou na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, tendo assumido a presidência por três vezes.

"É uma grande amiga e me deu uma sensação muito confortável nessa luta. No início dos anos 90, foi conosco para o Araguaia e sempre me apoiou", lembra Sônia.

Ela lembrou diversos outros nomes que a faz continuar essa luta, como Édila Pires, prima de Cilon da Cunha Brum, o Simão do Araguaia, e Helena Pereira, mãe do Miguel Prreira dos Santos, também guerrilheiro do Araguaia.

Ao elencar nomes que encorajam a continuidade de sua luta, Sônia lembra da sua mãe.

"Vou tentando aliviar a dor dela, que não conseguiu sepultar o filho. Ela pediu para eu comprar um espaço no cemitério de São Leopoldo para que o dia que eu encontrasse o João, e nós compramos, eu e minhas irmãs. Está lá".

Audiência

No próximo dia 28 de março, os familiares de mortos e desaparecidos terão uma audiência com o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida. Na pauta, a importância da retomada dos trabalhos da comissão especial de mortos e desaparecidos políticos. No dia 29 será a vez de um grupo de anistiados políticos tratarem das atividades da Comissão de Anistia que foram prejudicadas a partir do golpe de 2016.

Desde o governo de Michel Temer, a composição da Comissão de Anistia, que julga desde 2002 analisa pedidos de reparação de perseguidos políticos pelo Estado (entre os anos de 1946 e 1988) foi alterada e algumas decisões de procedência dos pedidos de reparação passaram a ser revistos.

Entre 2019 e 2022, a interferência política foi ainda mais ostensiva, com a nomeação de militares que faziam a defesa do regime militar e da prática de tortura. Sob a gestão de Jair Bolsonaro, a comissão julgou 4.285 pedidos de anistia e indeferiu 4.081 — ou seja, 95%. Entre os negados está o pedido da ex-presidenta Dilma Rousseff, torturada e presa por mais de três anos, na década de 1970. As agressões geraram problemas dentários, e a perseguição resultou em condenação, perda de emprego e afastamento dos estudos na universidade.

Depois de seis anos de desmonte, o governo de Luíz Inácio Lula da Silva aponta para um caminho de reconstrução das políticas de Memória no Brasil, com a nomeação de uma nova Comissão de Anistia. A lista inclui ex-perseguidos da ditadura, estudiosos do assunto e volta a ter o objetivo de fazer reparações históricas. Além disso, foram excluídos todos os militares da comissão.

Com informações do Memorial da Resistência de São Paulo

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