Transgêneros, os invisíveis do cárcere: a anulação da liberdade e de direitos no RN
Natal, RN 29 de mar 2024

Transgêneros, os invisíveis do cárcere: a anulação da liberdade e de direitos no RN

13 de março de 2018
Transgêneros, os invisíveis do cárcere: a anulação da liberdade e de direitos no RN

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Faz pouco mais de um ano que a travesti Kelly*, presa no sistema carcerário potiguar, pediu às amigas para levar material de limpeza e higiene pessoal até a carceragem. O recado chegou a Jacqueline Brasil, transexual e presidente da Associação de Travestis Reencontrando a Vida (Atrevida), que há mais de 20 anos milita em favor da causa no Rio Grande do Norte. Após fazer uma cota na Associação e chegar à prisão para entregar os mantimentos, Kelly não foi encontrada.

Registrada no sistema prisional com seu nome civil do gênero masculino, ninguém sabia quem era Kelly. “Foi preciso o secretário da Sejuc ligar para o presídio, mandar tirarem uma foto da menina para eu poder confirmar se ela era mesmo. Depois gravaram um vídeo, com ela dizendo que estava tudo bem. Mas até que ponto aquele vídeo foi monitorado e ela induzida a dizer tudo aquilo?”, questiona Jacqueline, conhecida como “advogada” das muitas presas que já passaram pelo sistema potiguar e colecionadora de histórias degradantes e desrespeito aos direitos humanos.

A travesti Kelly* é apenas uma das tantas que já sofreram nas mãos de um sistema sucateado e despreparado para lidar com transexuais, transgêneros e travestis. Após ser presa acusada de tentar roubar um cliente durante um programa, foi levada para a ala masculina, teve seus cabelos cortados e obrigada a usar o mesmo uniforme dos encarcerados homens. Utilizando o nome civil, masculino, perdeu-se no sistema. Tornou-se invisível. Mergulhou em um limbo comum a milhares de transgêneros Brasil afora.

“Não existe nenhuma formalidade. Os direitos da população ‘trans’ dentro do sistema prisional são totalmente desrespeitados”, destaca Jacqueline, emendando que até hoje a Associação tem enorme dificuldade em identificar as travestis integrantes do sistema, exatamente pela ausência de um banco de dados.

O Rio Grande do Norte tem hoje 8.809 presos, segundo o Infopen 2016, dos quais não se sabe quantos pertencem à categoria de transgêneros e transexuais. É que o Estado começou agora, no fim do ano passado, a mapear a comunidade LGBT no sistema carcerário. Estima-se, porém, que mais de 50 pessoas, a maioria travestis, estejam inseridas atualmente nas carceragens potiguares.

Um alento veio do Supremo Tribunal Federal durante a produção desta reportagem. Em 14 de fevereiro, o ministro Luís Roberto Barroso determinou a transferência de duas travestis presas na Penitenciária de Presidente Prudente (SP) para um presídio feminino. A decisão foi baseada numa resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, segundo a qual as travestis presas têm o direito de ser chamadas pelo nome social. O ministro do STF também citou uma resolução da secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, que define que as travestis poderão usar peças íntimas conforme gênero, manter o cabelo na altura dos ombros e ter acesso a ala ou cela específica “de modo a garantir sua dignidade, individualidade e adequado alojamento”.

Luís Barroso determinou transferência de travestis para presídios femininos (foto: Carlos Moura/STF)

Mapeamento

 A coordenadora de Direitos e Minorias da Secretaria de Justiça e Cidadania, Adna Dias de Sousa Martins, confirma que não se sabe quantos presos trans existem no sistema atualmente, mas adianta que as reuniões do comitê de mapeamento, que além da Sejuc e entidades representativas envolve UFRN, UERN, Ministério Público e outros convidados, foram o primeiro passo do Rio Grande do Norte para conhecer seus presos da comunidade trans.

O mapeamento é um pleito antigo das organizações militantes da causa, assim como é a destinação de uma ala LGBT nos presídios do Estado. Este último, porém, chegou perto de se tornar realidade. Em entrevista concedida em outubro de 2017, Adna confirmou que o presídio de Ceará-Mirim, a ser inaugurado em breve, teria uma ala LGBT para abrigar tal população carcerária. Em fevereiro deste ano, entretanto, ela informou à Agência Saiba Mais que a decisão não se confirmara. “Ainda não temos certeza se isso de fato vai acontecer”, ponderou.

Hoje, tanto transgêneros homens quanto mulheres cumprem suas penas em meio ao sexo feminino e masculino, respectivamente. Após muita militância de associações como a Atrevida, veio a primeira conquista: após a triagem padrão seguida à prisão, trans passaram a ser encaminhados para um local específico, no caso o Centro de Detenção Provisória da Ribeira. No entanto, com o fechamento do CDP, atualmente durante a triagem é perguntado se elas preferem, ou não, ficar em celas separadas dos demais presos. Em caso afirmativo, são enviadas às carceragens para celas específicas.

Saiba Mais: Empregadas de presos, escudo humano em rebeliões e mulas do tráfico: a escória da cadeira

“As condições estão longe do ideal”, admite coordenadora de Minorias da Sejuc

A coordenadora reconhece que as condições estão longe do ideal. Mas alguns avanços já foram registrados. Em Caicó, por exemplo, houve um casamento entre duas lésbicas no presídio. No Pavilhão 5 de Alcaçuz, foi permitido que uma travesti pudesse conviver com seu parceiro dentro da mesma cela, depois de consultada a opinião dos outros presidiários. “Antes não havia essa permissão. Quando se tomava conhecimento, a primeira providência era separar esses casais”, destaca.

A ausência de um banco de dados no sistema dificulta ainda mais. Mas o maior empecilho ainda é a falta de visão das pessoas que gerem o sistema. “É um grau de complexidade muito grande, principalmente em um sistema onde tem uma dominação masculina e as pessoas ainda têm a visão de que isso não existe, fecham os olhos e não aceitam essa mudança. A gente não tem essa visão e precisamos começar. Dentro da própria casa, que é o sistema penitenciário, com os gestores, diretores, agentes. Não podemos mais fechar os olhos para isso”, pondera.

Essa mudança de visão tão necessária não passa por aulas de capacitação e treinamento, na visão da coordenadora. Segundo ela, ao invés da pressão, a gestão vai evoluir quando mostrar a realidade existente aos que estão diretamente envolvidos na administração do sistema e priorizando o diálogo.

“Às vezes você pressiona e na sua frente fazem de uma forma, mas quando você sai e fecham as grades, a realidade é outra. Em vez de melhorar, você acaba criando um problema ainda mais sério para o trans encarcerado. Porque se antes ele estava invisível, quando você mostra a cara dele, se torna espelho para uma futura agressão. Vira um alvo, tanto dos próprios colegas detentos quanto dos agentes penitenciários e da direção da unidade”, detalha.

Mesmo com decreto estadual de 2012 determinando que o nome social seja reconhecido, administração pública ainda ignora direito

Apesar do decreto estadual nº 22.331, de 12 de agosto de 2011, que determina o reconhecimento do nome social em todos os órgãos da administração pública, a Sejuc admite que o procedimento ainda não se tornou um padrão nos presídios. Além do fato de os agentes públicos não estarem cumprindo a lei, existe o dificultador que na Justiça ainda não há espaço para o nome social nos processos. Conforme a coordenadora, esta é uma das metas do Comitê Estadual de LGBTfobia: dialogar com o Judiciário para que o nome social seja incluído não só nos processos que os trans respondem, mas também em todos os seus documentos.

Um passo importante neste sentido foi dado dia 1º de março deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal autorizou que transexuais e transgêneros podem alterar seus nomes no registro civil sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo. A maioria da Corte também decidiu que o transsexual não precisa mais de autorização da Justiça para alterar o documento, o que pode ser feito em cartório.

A maioria dos transgêneros custodiados no RN responde por crimes de tráfico de drogas, furto ou roubo. Para Martins, tais crimes estão diretamente ligados à baixa escolaridade encontrada maciçamente nesta categoria de detentos. Muitas travestis sequer terminam o Ensino Fundamental, poucas chegam ao Ensino Médio e raras são as que galgam o Ensino Superior e Pós-Graduação. O baixo nível de escolaridade faz com que a maioria se insira no submundo da prostituição, que as levam quase que automaticamente ao consumo e, posteriormente, tráfico de drogas.

Representante do Governo do Estado reconhece que direitos das transgêneros são desrepeitados

“Elas vivem nas ruas e convivem com um universo de pessoas no qual muitas delas não são bem intencionadas. Muitas travestis infelizmente utilizam de furtos e roubos para se manter na noite e, às vezes, se pede um valor pelo programa e aquele parceiro não paga, eles roubam ou furtam mesmo. Não podemos esconder isso”, revela a coordenadora.

Há ainda um dado alarmante: segundo o Infopen 2014, 71% dos presos potiguares permanecem sem acesso à justiça, o que coloca o Rio Grande do Norte em primeiro lugar no ranking brasileiro.

Os trans, infelizmente, constituem boa parte deste número. A ausência do contraditório e ampla defesa desde o início do processo, com a prisão, tem como primeira justificativa a falta de recursos financeiros para bancar um advogado.

Em segundo lugar, aparece o desconhecimento da existência da Defensoria Pública, com advogados gratuitos para atendê-los. Por último, a distância da família – muitos saíram de casa cedo para viver nas ruas e perderam o contato com os parentes – os deixa abandonados à própria sorte. A invisibilidade que protagonizam – proporcionada na maioria das vezes pela ausência do nome social no registro prisional ou pela não declaração de ser transgênero – fecha o cenário desolador.

“Quando o trans vai para o processo de triagem em Natal, passa pela audiência de custódia e se não tiver advogado o juiz nomeia um dativo na hora e ali ele tem a primeira defesa. Se este não quiser continuar no processo, ele perde o advogado. E aí só vai ter assistência jurídica quando for para a primeira audiência na Justiça, que pode demorar dez dias, seis meses, um ano, dois. No interior é ainda pior porque não existe a audiência de custódia. O trans fica no sistema esquecido, sem defesa, ocupando uma vaga muitas vezes por um crime insignificante, enquanto quem cometeu estupro, latrocínio, homicídio, é liberado pela Justiça por falta de vagas. O sistema é injusto. Se tivéssemos um diálogo e trabalhássemos de uma forma mais engrenada, abriríamos vagas e ficariam no sistema só aqueles que realmente precisam cumprir uma pena”, detalha Adna.

Além da falta de assistência jurídica e das condições subumanas a que são submetidos, os trans não contam com atividades de lazer nem trabalho interno para ocupar seu tempo. A ociosidade integra as vinte e quatro horas de seu dia. De acordo com a Sejuc, somente em Apodi os detentos preparam a própria alimentação. Em Natal, as unidades que possuíam padarias e cozinhas foram destruídas nas rebeliões de 2015, 2016 e 2017. A ideia, porém, é realizar parcerias com Tribunal de Justiça, Ministério Público, Sistema S e universidades para capacitar os presidiários a trabalharem como pedreiros, marceneiros, encanadores e aproveitar seus serviços na reforma das próprias unidades prisionais.

De fato, segundo o último Infopen divulgado (2016), apenas 2% dos presos potiguares estão envolvidos em atividades educacionais e somente 1% trabalha, seja interna ou externamente. “Queremos capacitá-los em profissões para que, ao sair do sistema, eles consigam empregabilidade ou possam até mesmo trabalhar como autônomos. O que eu acho mais importante é que essas pessoas, ao saírem do sistema, não voltem. Os convênios já estão sendo assinados e iremos começar a capacitar nossos presos o mais breve possível”, acrescenta.

Mais de 70% dos presos no RN não têm acesso à Justiça

O Rio Grande do Norte também foi campeão em uma categoria inglória: é a unidade da Federação em que 71,38% das pessoas que estão cumprindo sentença não possuem assistência jurídica, o maior índice do país (INFOPEN, 2014). Os transgêneros e travestis são boa parte deste universo. A baixa escolaridade e renda, além da distância da família – muitos deixam suas casas para viver nas ruas e perdem o contato com os parentes – dificultam o exercício do direito de defesa e acesso à justiça.

* A reportagem "Transgêneros, os invisíveis do cárcere" foi uma das vencedoras da 1ª edição do Mais Repórter, iniciativa pioneira no Rio Grande do Norte financiada exclusivamente pelos leitores assinantes da Agência Saiba Mais. Contribua para que outras reportagens inéditas, como a produzida pela repórter Louise Aguiar, continuem dando visibilidade às narrativas silenciadas da sociedade. Apoie o jornalismo independente: www.saibamais.jor.br/assine.  

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