A violência sanguinária é a derrota da política
Natal, RN 28 de mar 2024

A violência sanguinária é a derrota da política

22 de setembro de 2019
A violência sanguinária é a derrota da política

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A minha crítica à recepção ao filme Bacurau por parte das esquerdas gerou, como eu esperava, três tipos de reação: um bom número de pessoas concordando com a crítica feita, alguns, inclusive, confessando que se sentiam intimidados de externarem sua posição diante do clima de unanimidade forçada criada em torno do filme (o que por si mesmo já é grave e merece reflexão); um bom número de pessoas discordando, apresentando seus pontos de vista e argumentos e tratando com o devido respeito o autor e a crítica feita; e, como era de se esperar, muitos optaram pelo xingamento, pela agressão pessoal, pela tentativa de desqualificação da crítica feita através da desqualificação e deslegitimação de quem a faz. Quando escrevi o artigo, sabia em que vespeiro estava mexendo, não é de hoje que sou vítima da patrulha ideológica de setores que se dizem de esquerda, mas têm posturas e atitudes no exercício da política idênticas as da direita, que dizem combater. Infelizmente subjetividades fascistas não existem apenas entre as pessoas que se colocam à direita do espectro político, como a reação ao artigo deixou patente (se ele não servir para nada, pelo menos serviu para trazer à tona os traços autoritários, antidemocráticos, fundamentalistas, inquisitoriais de setores que se dizem de esquerda mas querem interditar o debate de ideias, que se negam a pensar, que querem viver da repetição de chavões, da alimentação cotidiana de fantasias e fantasmas que foram derrotados historicamente).

Não será com essas pessoas que dialogarei nesse artigo, até porque seria impossível dialogar com quem não se propõe a isso. Não podemos debater com Savonarolas de redes sociais, que fazem suas revoluções imaginárias escondidos por trás de telas de computador. Não podemos argumentar com quem apresenta como argumentos o xingamento, a distorção nascida do ódio e da cegueira ideológica mais primária. Não se debate com evangélicos que recitam trechos de livros como se fossem Bíblias, nem com quem adora ídolos como se fossem deuses. Não discuto com pessoas que claramente pareciam não ter visto o filme ou lido o que escrevi (o que também não é surpreendente em se tratando do Brasil). A sociedade brasileira é o que é, também por causa das forças das esquerdas que tivemos e temos, e o que fizeram e fazem historicamente. Não quero ceder à tentação da vitimização, não sou vítima de nada, pois já esperava que a reação fosse essa, e foi exatamente o que me motivou a escrever o artigo: nunca me agradou a obrigação de concordar com o que não concordo, prefiro estar do lado da tradição da dissidência, do que do enquadramento, do cerrar fileiras, do obedecer estruturas e ordens, que faz parte da tradição autoritária do funcionamento das organizações de esquerda, com algumas e raras exceções. Nunca fui vaca de presépio, nem maria vai com as outras, pois considero que o primeiro traço que define alguém como de esquerda é a capacidade de ser crítico, de dizer não, de discordar, de transgredir qualquer ordem ou estrutura, é a capacidade de se colocar no debate e modificar seus termos. Quem me conhece, sabe que dificilmente respondo qualquer crítica feita ao que escrevo ou produzo, não por não levar a crítica em conta, mas pelo contrário, por não me considerar dono da verdade, por não ter certezas absolutas sobre nada, por questionar, sempre, até mesmo o que penso, por achar que todos tem o direito democrático à discordância. É completamente entendível os motivos que levaram essas pessoas intolerantes e desrespeitosas a se identificarem e se projetarem em figuras como Lunga e o homem do teco na cabeça, elas também cortariam cabeças e se banhariam em sangue facilmente. Ver dados setores da esquerda no poder me amedronta tanto quanto ver a extrema direita no poder, cabeças rolariam como os cadáveres que vemos hoje se acumular baixo à realidade política em que vivemos.

Mas, como disse, vou dialogar com pessoas a quem respeito, que apresentaram discordâncias, que não concordaram com a crítica que fiz, não visando repor uma verdade que não possuo, mas visando aclarar o meu posicionamento, ou seja, deixar mais claro de onde eu falo e porque desse lugar. Continuo afirmando que a recepção que o filme está tendo me parece um desserviço à necessária reflexão sobre mais uma derrota histórica das esquerdas no país e a necessária busca da construção de um novo imaginário, de um novo ideário para a esquerda ocidental. Continuo achando que a recepção acrítica (que por si mesma já é problemática) que o filme está recebendo, essa recepção catártica e emocional, não favorece ao debate de ideias muito necessário no interior de uma esquerda, em grande medida, paralisada, perplexa, aprisionada em suas próprias fantasias e desejos. Assim como vimos ocorrer após a derrota de 1964, os setores da classe média identificados com a esquerda apodam de resistência o ir ao cinema e assistir uma carnificina gratuita e sem sentido. Assim como aconteceu naqueles anos diante de filmes como Os Fuzis, a esquerda derrotada vai as manifestações culturais sublimar as suas frustrações e coçar as suas pisaduras. O simples fato de que uma crítica a um filme gere tamanha reação emocional e despropositada, mostra como muita gente anda perdida, buscando algo para se agarrar desesperadamente.

Algumas pessoas disseram ter visto outro filme (não vou citar os nomes das pessoas porque não me autorizaram a fazê-lo). Não há nenhuma dúvida que viram outro filme, ninguém vê uma obra de arte da mesma maneira. Como afirmava no texto (parecem não ter se dado conta) as imagens são ambíguas, são passíveis de várias leituras, dependendo de quem as lê, dependendo das referências e dos lugares de leitura de quem realiza a interpretação. Sei que cinema é alegoria, como alguns me lembraram, o que não significa que leituras não possam ser feitas e interpretações divergentes não possam existir. Tentei no artigo, justamente, mostrar o explícito e os possíveis sentidos implícitos presentes nas cenas, as várias camadas de significação que se encontravam em algumas cenas do filme e como elas permitiam leituras outras que iam na contramão da leitura que se queria unanime em torno da película. Justamente por ser alegórico é que o filme dá margem a recepções muito perigosas, no meu entender. Quando cobrei uma história melhor contada não era por ignorar o caráter alegórico do filme, uma distopia não pode ser realista, mas ela pode ser verossímil, podemos contar uma invasão de marcianos fazendo ela ser crível e motivada. Por isso vou tentar aclarar o meu lugar de leitura para que fique claro para essas pessoas porque li o filme como o fiz, sem com isso querer desautorizar os lugares de onde realizaram as suas leituras.

Não li o filme do lugar de especialista, mas de espectador, de plateia. Alguém disse que eu não entendia de cinema. Essa afirmação merece uma explicação: o que é entender de cinema? Só entende de cinema quem faz cinema? Só entende de cinema o crítico de cinema, quem fez um curso superior em cinema? Nesse caso é melhor esvaziar as plateias. Se quem vai ao cinema não entende o que vai assistir, é melhor ficar em casa. É preciso ter conhecimento técnico de cinema para falar do que viu na tela, comentar, discordar? Estamos diante do mesmo argumento do lateral do São Paulo, Daniel Alves, de que só quem entende de futebol é quem joga futebol. Bem, se é assim, esvaziemos os estádios. Esse tipo de argumento esconde o desejo de interditar o debate, de proibir que um outro considerado não digno, não especialista, emita opinião sobre algo. É mais sutil o argumento, mas esconde o mesmo desejo daqueles que pretenderam me calar me xingando e me desqualificando (não vão conseguir, nunca me calei e me amedrontei diante da violência, embora não tenha apenas “nojinho” por ela, como disse um dos comentadores, mas tenho horror a ela, não considero violência de qualquer tipo construtiva de nada, que dirá transformadora, voltarei a isso mais adiante). Fiz questão de deixar claro que estava tratando do filme a partir de sua recepção, hora nenhuma pretendi tratá-lo a partir de sua produção ou feitura. Seria desonesto pois não tenho dados para isso. Em momento algum do artigo eu atribuo qualquer coisa a intenções deliberadas de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Não os entrevistei, não tive acesso ao roteiro, não entrevistei outros participantes da produção. O artigo todo gira em torno de como os setores de esquerda estavam lendo o filme e a discordâncias que tenho em relação a essa leitura, pois para isso eu tinha lido as criticas feitas, acompanhado o entusiasmo derramado nas redes sociais, tinha visto a reação espantosa da plateia quando assisti o filme, etc (foi interessante que alguém que parece ter percebido que eu tratava da recepção ao filme, resolveu também impedir que eu comentasse isso, me aconselhando a assistir o filme num cinema vazio e sem plateia. Acho uma bela solução para que não se critique as esquerdas ou as direitas do país, esvaziar todos os lugares aonde a gente vá nesse país conflagrado pelo ódio, pelo ressentimento, pela intolerância, pela violência física e simbólica). O texto está cheio de interrogações sobre as intenções e sentidos que os autores tentaram dar as cenas, não afirmei nunca nada a esse respeito, apenas levantei possíveis alternativas. O que me chocou foi a forma entusiasta e acrítica que as plateias receberam o filme.

Desde que na minha juventude me engajei na construção do Partido dos Trabalhadores, que sou um crítico da tradição revolucionária leninista e stalinista. O PT nasceu fazendo a crítica ao socialismo real, às sociedades autoritárias, burocráticas, repressivas que surgiram das chamadas revoluções socialistas. A chamada nova esquerda buscava romper com toda a tradição de apoio à tese da ditadura do proletariado, que deu origem a ditaduras sanguinárias como a do Khmer Vermelho, no Cambodja, e assumir um compromisso verdadeiro com a democracia, não a utilizando como mero recurso tático. Estava implícito nessa tomada de posição não a renúncia a reconhecer a realidade da luta de classes, como alguns me acusaram de fazer, mas a recusa de acreditar que a luta de classes deve desembocar, necessariamente, em um episódio violento e sanguinário. Ao contrário de considerar a violência como uma arma da política, pensar a política como aquela atividade que busca evitar a violência sanguinária. Que em dados momentos a violência se torne inevitável, não implica em dizer que nesse momento está se exercitando a política, mas é o momento em que ela fracassa. A política é a arte de resistir, mas também de transigir, negociar, dialogar, buscar a formação de consensos e hegemonias.

Um querido colega disse que não se tratava no filme de tradição jacobina, mas de uma comunidade sob ataque se defendendo. A reação a meu artigo por amplos setores identificados com a tradição jacobina, revolucionária, stalinista (houve quem assumisse com orgulho o seu ser stalinista, o que é bom que a gente fique sabendo da existência para nos precaver) mostra que sim, a recepção do filme foi, em grande medida, feita a partir desse imaginário da revolução, do imaginário que alimentou as várias revoluções socialistas e a formação das sociedades autoritárias e repressivas que lhes seguiram. Uma comunidade sob ataque tem o direito à legitima defesa, isso é um fato até juridicamente reconhecido, o que não justifica que após os inimigos serem mortos seus corpos sejam vilipendiados, que se realize em torno deles um verdadeiro festim macabro de sangue e cabeças cortadas, que se empilhem cabeças numa escadaria de igreja (se no passado e no presente nossas classes dominantes são capazes da realização de tais barbaridades, é os imitando que vamos mudar o mundo, transformar a realidade?). Como não se sabe os motivos do ataque, não podemos vislumbrar se ele não podia ter sido evitado pelo verdadeiro exercício da política, com negociação, até com intimidação, sem que se deixe a realidade chegar ao confronto sanguinário onde perdem todos. Gozar com um banho de sangue, festejar cabeças explodidas, não me parece um verdadeiro exercício da política. Se a violência, em dado momento, pode até ser justa, o problema é o depois dela. Partir do pressuposto que a violência do opressor é injusta e do oprimido é justa, é esquecer que, historicamente, o oprimido de ontem, que alcançou o poder com o uso da violência sanguinária, tornou-se o opressor do amanhã. Em que Lunga continuaria exercitando o seu desejo de cortar cabeças a facão.

A violência às vezes se coloca como única forma de ação, mas até o inimigo deve ter reconhecida a sua condição de humano. Enterrar alguém vivo não me parece um bom exemplo de ação política que reconhece a humanidade do outro, que sequer teve direito a um julgamento. A execução sumária de alguém que está preso e dominado, por mais bárbaro que o outro seja, faz aquele que antes era vítima se equiparar ao algoz. Sabemos que a história das revoluções está cheia de execuções sumárias, da eliminação pura e simples do inimigo político, por isso mesmo elas pouco significaram de transformação das relações entre os humanos. Stalin executou uma boa parte daqueles que fizeram com ele a revolução, através da calúnia, da farsa de tribunais de exceção, iguais a esses que a direita pilota no Brasil. Mandou enterrar uma machadinha na cabeça de Trotsky, tudo em nome do poder desabrido, e não da transformação do mundo. Como a reação a meu artigo mostrou, há muita gente na esquerda e na direita brasileiras com enorme vontade de brandir machadinhas nas cabeças que pensam diferente, que não partilham de seus dogmas e certezas eternas (depois criticam os fundamentalistas religiosos). O desejo ou a pulsão de morte, que habita todo o filme, foi o que também levou muita gente a aderir a ele de forma acrítica. A ideia de que o derramamento de sangue regenera, renova, constitui uma camada profunda da cultura ocidental, que tem como um dos seus lastros a crucificação sanguinária de Cristo (há alguma dúvida que boa parte da esquerda brasileira foi educada no imaginário sacrificial cristão?). É inegável que, muitas vezes, diante da realidade social brasileira, do que são nossas elites, alimentamos fantasias homicidas, temos desejos de vingança, mas as fantasias devem ser controladas pelo superego, dar passagem a elas, mesmo através da catarse cinematográfica, me parece lesivo para uma atividade de racionalização do mundo como deve ser a atividade política. O problema é que o Brasil é, hoje, um país sem superego (o presidente da República parece não ter nenhum), forças políticas de todos os matizes ideológicos expõem em público seus desejos mais perversos e obscuros. O maniqueísmo não é uma boa forma de exercitar a política e o filme é, em muitos momentos, maniqueísta e simplificador.

Como alguém que dedicou toda a sua vida a fazer uma crítica do imaginário em torno da região Nordeste, o filme é insuportável de assistir pela reposição de lugares comuns, de clichês, de estereótipos, de imagens e enunciados que repõe a região nesse lugar de selvageria, de barbárie, um espaço anacrônico mesmo quando distópico. Antes que eu assistisse o filme, outras pessoas que dedicam sua vida a problematizar o lugar que a região Nordeste tem no imaginário nacional, já haviam saído decepcionados e perplexos do cinema. O regionalismo nordestino, em sua versão de esquerda, que agora se rejubila na ideia de que a região é resistência ao governo da extrema-direita, por ser o espaço onde a esquerda ganhou as eleições, simplifica a complexidade da realidade política regional e entra no jogo maniqueísta e regionalista de acusações contra o restante do país que seria reacionário, quando a região está cheia de reacionários de todos os matizes ideológicos (chega-se a vibrar com a eliminação a sangue frio dos sulistas. Isso é fazer política, isso é construir consensos, isso é viabilizar projetos coletivos, isso é aproximar posições, isso é combater preconceitos, objetivos da política?).

A reposição da mitologia em torno do cangaço, para um estudioso das masculinidades no Nordeste, é difícil de engolir. Ver colegas que se dedicam aos estudos de gênero, que são feministas, incensando um filme em que a masculinidade mais violenta é heroicizada, é desesperador. Fazer do cangaceiro resistência, fazer do matador de aluguel resistência política é ter em muita baixa conta o que é o exercício dessa arte difícil e sofisticada que é o exercício da política, vilipendiada e ridicularizada pelo filme, reduzida e encarnada por um prefeito farsesco e fantoche. Me causa espanto que pessoas ligadas a um movimento que nunca fez uma revolução armada e sanguinária, mas que através da transgressão, da astucia, da reivindicação, da luta pacifica, da desobediência civil e cotidiana, da criatividade artística, da produção de conhecimento, do enfrentamento por meios jurídicos da violência sanguinária, mudou o mundo, como o feminismo, ainda adiram a esse imaginário da revolução jacobina. As mulheres e homossexuais mudaram o mundo não porque mimetizaram a violência machista, patriarcal, misógina, homofóbica, mas porque mostraram na prática que o mundo, que as relações podem ser diferentes, mesmo que muitas mortes ocorram por isso. A transgressão, ao violar a ordem, já está criando uma nova ordem, mesmo quando essa parece se restabelecer. A violência sanguinária serve para destruir, mas não garante a construção de nada novo. Sabemos que essas revoluções e os regimes a que deram origem espetacularizaram uma hipermasculinidade de guerrilheiros militarizados como Fidel Castro, que usou uma grande barba e uniforme militar a vida toda. Sabemos o tratamento que foi dado aos homossexuais e outras minorias sexuais (lugar de onde também falo) e de outra ordem nessas sociedades (basta que se leia o livro de memórias de Reinaldo Arenas para sabermos os intestinos podres da revolução cubana). Imagina o que uma sociedade dominada por Lunga não faria com as bichas e com as mulheres? O mundo não muda quando usamos as mesmas práticas dos inimigos, ele estaciona no mesmo. Um comentador me lembrou que o movimento pacifista de Gandhi não levou ao fim da sociedade de castas, e não poderia levar mesmo porque esse nunca foi um objetivo do movimento, até porque seus realizadores eram partidários desse sistema, o que se propôs e realizou foi a independência da Índia do domínio inglês.

Alguém disse que sempre jogo a criança fora com a água da bacia. Se a criança é o imaginário da revolução, tal como se constituiu a partir das revoluções burguesas, deve ser mesmo jogada fora, pois essa criança está morta e só fica empesteando as práticas políticas das esquerdas. Todas as traumáticas experiências históricas que esse imaginário produziu, faz com que ele não tenha mais nenhuma possibilidade de vir a empolgar coletividades e a levar a transformações históricas efetivas. Pode ser o consolo, o ganha pão ou a fixação de pequenos grupos, mas não tem viabilidade política de se efetivar. Um historiador deve analisar as condições históricas concretas em que um dado evento ocorreu ou pode vir a ocorrer. Num mundo globalizado e militarizado nuclearmente a possibilidade de que movimentos revolucionários de modelo jacobino possam ser vitoriosos, é diminuta. Muito sangue se derramou em nome desse imaginário para o mundo mudar tão pouco. Sociedades como a angolana, que viveu um calvário de décadas de banhos de sangue em nome da independência e da revolução, é um país cheio de cicatrizes nos corpos, nas memórias, na história. Angola, como a Nicarágua, continua um país subalterno, de população paupérrima e pilhado pelos interesses internacionais, embora o partido no poder tenha sido o que fez a revolução. Eu jogo fora sim essa água estagnada de um imaginário que precisa ser reavaliado e modificado. Toda vez que se vem com essa história de jogar criança fora com a água da bacia é porque não se quer que alguém pense fora dessa bacia ou fora da caixa. É porque se quer nos aprisionar nessa bacia de água estagnada e putrefata pela criança morta dentro dela que o imaginário jacobino da revolução. Só há mudança quando jogamos fora algo que antes queríamos preservar. É preciso que as esquerdas rompam com os limites das bacias em que estão metidas, para pensar outros modos de fazer política que sejam efetivos na construção de mudanças, mesmo que não sejam bombásticas e espetaculares. A tentativa de acelerar a história resultou em carnificinas humanas insuportáveis de ainda se glorificar e defender. Que as classes dominantes de todos os tempos, que as elites, que as direitas tenham usado e abusado da violência sanguinária para preservar poder e privilégios, para mim, já deixa patente que não é por aí que vamos mudar efetivamente a realidade, nos tornarmos cúmplices das mesmas práticas não me parece transformador. Se somos partidários de se matar o adversário político, ou o adversário de classe, como vamos denunciar a morte de Marielle Franco, de Chico Mendes, de Margarida Maria Alves? Não posso concordar com esse relativismo ético (depois relativista sou eu), para mim só há um valor absoluto: é valor da vida. Afirmar, sobretudo, a vida diante de qualquer imaginário da mortificação me parece essencial. Afirmar a preciosidade, o valor da vida humana, seja ela qual for, mesmo a dos nossos desafetos, é uma boa maneira de se iniciar o exercício da política. Cada vez que o sangue corre, é a derrota de nossa capacidade de exercer a arte da negociação, da pressão, da luta, da resistência verdadeira, a resistência da vida apesar de tudo.

Aquele homem de 73 anos, encarcerado injustamente, que se entregou para evitar qualquer derramamento de sangue; que dentro da prisão amedronta seus algozes por sua lucidez, por sua honradez, por sua dignidade; que mesmo lá ama seu povo e seu país, ama uma mulher, que afirma o valor do amor, da amizade e do companheirismo; que recebe a solidariedade de meio mundo e reafirma o valor dela; que levanta palavras de protesto contra seus encarceradores, mas que é incapaz de sugerir qualquer ataque sanguinário a eles; que reafirma seu respeito e sua fé nas instituições, que reafirma em toda entrevista o valor da política; que continua lendo, se informando, dialogando, articulando, escrevendo, pensando; que continua denunciando a fome, a miséria, a desigualdade social, defendendo a educação; que continua denunciando o imperialismo, as relações internacionais desiguais e espoliativas, ele é a encarnação da arte da política. Ele ficará na história e na memória não porque matou alguém, mas porque em seu governo deu vida a muitos. Ele ficará na história porque fez mudanças, até modestas, mas as possíveis em seu tempo. Ele errou, como todos erramos, por isso nunca se colocou na posição de dono da verdade, ele exerce a escuta do outro, essa arte eminentemente política. Ah, mas ele é um derrotado, está preso. Não, ele nunca esteve tão presente em cada dia da política brasileira, ele já é vitorioso sobre aqueles que o tentaram destruir e caluniar, ele continua de pé e se engrandece cada vez mais. Assassinos como Stalin, Ceausesco (executado da mesma forma que executava. Depois de tanto sangue derramado a Romênia é o que é, um país dominado por forças políticas de direita) é que serão enterrados pela história. Na liderança de Lula eu me inspiro, na de Lunga, nunca!

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