O proibicionismo não acaba com a demanda da cannabis no Brasil, mas, sim, tira o direito à saúde de milhares de pessoas. Muitos dependem dos remédios produzidos a partir das substâncias extraídas da maconha para ter melhor qualidade de vida. Com a atual legislação do Brasil, os custos desse tratamento são muito altos. No Rio Grande do Norte, estima-se que cerca de 700 pessoas façam uso da planta para tratamentos, mas apenas 23 famílias conseguiram na Justiça, por meio de habeas corpus, o direito ao cultivo.
A informação é da Associação Reconstruir Cannabis Medicinal, ONG que orienta pacientes e familiares sobre questões jurídicas e médicas que envolvem cultivo, produção e extração do óleo.
O grupo potiguar tem contato permanente com ao menos 14 dos produtores legais, que usam a erva em seus tratamentos de autismo, epilepsia, dor crônica, depressão, câncer, ansiedade, Parkinson, Alzheimer e enxaqueca.
Quem não tem o direito de plantar pode comprar os óleos importados ou produzidos no Brasil e ainda tem aqueles que plantam ilegalmente, praticando desobediência civil. Aliás, foi assim que a ONG começou, plantando para fornecer a pacientes. Acontece que eles tiveram que destruir a sede de cultivo em 2019 e aguardam autorização judicial para continuar ajudando ainda mais aos pacientes, de forma segura. A intenção é fornecer o fitoterápico a um valor justo, beneficiando famílias pobres e fomentando a pesquisa, que já tem parceria consolidada com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e o Instituto do Cérebro.
Atualmente apenas três associações podem plantar e fornecer derivados, a Abrace Esperança, em João Pessoa; a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), do Rio de Janeiro; e Cultive – Associação de Cannabis e Saúde, em São Paulo; além da ONG Canapsi, que cultiva para pesquisas.
Pela legalização
A Câmara Federal pautou o projeto de lei (PL 399) que pode autorizar a liberação do cultivo de cannabis para fins científicos, medicinais, veterinários e industriais. Apresentado em 2015 pelo deputado Luciano Ducci (PSB-PR), a discussão expõe o reacionarismo dos conservadores e a luta pelo direito à saúde.
Em entrevista ao Programa Balbúrdia, no dia 24 de maio, o neurocientista Sidarta Ribeiro alertou que o debate atual no país não é a legalização, pois desde 2019 é possível comprar o óleo nas farmácias. O avanço da discussão é para o acesso.
“O que aconteceu com a maconha foi uma politização, uma ideologização de uma planta que era um produto. Isso aconteceu por interesses econômicos. Por interesse econômico do algodão, que tirou o cânhamo da jogada, depois do nylon; pelo interesse das farmacêuticas e empresas de substâncias lícitas recreativas como álcool”, contextualizou o cientista.



Sidarta é contra a proibição de qualquer substância. Ele explica que todas têm usos, precisam de bula e de prazo de validade: “A guerra às drogas – colocando que algumas substâncias são horríveis, do demônio, e outras ótimas – levou à proibição de várias substâncias, como o álcool nos anos 20 e a maconha. Se fosse assim não se vendia gasolina e veneno de barata, porque podem matar. As resoluções têm que ser compatíveis com os riscos e benefícios”.
Com o PL 399 sendo discutido em meio ao negacionismo científico e retrocessos sociais, Ribeiro acredita que essa seja uma das poucas pautas que avançaram nos últimos anos. Para ele, essa demanda conta com três poderosas forças: os familiares dos pacientes que precisam e querem o tratamento; a ciência, que há muito tempo já comprovou os benefícios da planta; e o dinheiro, o mercado.
O neurocientista acredita que todas as pessoas que são contra a maconha medicinal mudam de ideia rapidamente se ficarem doentes, se tiverem uma filha ou filho com epilepsia, o pai ou a mãe com patologia que tenha indicação do remédio. “Quem tá doente, fica inteligente, corajoso e perde preconceitos”, resume.
Sidarta ainda defende que com a legalização haja reparação de danos causados pela política proibicionista nas comunidades periféricas. A ideia seria estimular a criação de microempresas relacionadas ao setor nas favelas.
Tratamentos têm alto custo
Além da legislação e de todos os tabus que envolvem o uso da erva, os valores dos produtos medicinais são grande obstáculo para quem almeja o tratamento.
De acordo com o diretor da Associação Reconstruir Cannabis Medicinal, Felipe Farias, o frasco do remédio para um mês custa em torno de R$ 2.500 nas farmácias brasileiras, enquanto os importados, aproximadamente R$ 1.200. Nos Estados Unidos, é vendido nos supermercados porque é considerado suplemento alimentar.



O plantio barateia o acesso, segundo ele. “O mais caro é comprar a semente, que custa cerca de 6 dólares, ou seja, de 30 a 40 reais. A maioria das pessoas tem de 6 a 10 plantas florindo, já que o óleo é extraído apenas da planta fêmea e ela precisa ser morta após a colheita. Algumas autorizações limitam a quantidade de mudas”, conta Felipe, ao explicar detalhes do cultivo que requer mais habilidade, como a criação de clones das plantas a partir de galhos cortados.
“Para a extração também há maneiras mais rebuscadas e mais artesanais. Ela pode ser feita com equipamento de laboratório, um agitador magnético, ou em banho maria; vai depender do paciente”, ensina.
Felipe Farias também explica que cada genética ou cepa da planta pode ser mais adequada para determinadas patologias: “Para dor crônica é com mais THC. Se for para ansiedade, escolho com mais CBD, juntos os compostos formam efeito comitiva”.
Quem prescreve
Para ter acesso legal aos remédios é preciso antes ter prescrição médica, de qualquer especialidade. As consultas também podem custar muito para quem busca ajuda, variando de R$ 200 a R$ 1.200. Além disso, são poucos os profissionais que têm intimidade com o tema.
A Reconstruir conhece ao menos 40 médicos de Natal que estão abertos ao assunto. Desses, pouco mais de 20 prescrevem a droga, todos em consultórios particulares.
A psiquiatra Mariana Muniz está entre esses profissionais. Ela trabalha com o uso de cannabis no tratamento da Síndrome Pós-Traumática, um conceito amplo.



“O estresse pós-traumático é um conceito que fala sobre como a gente lida com o medo agudo, situações limite e o que isso desperta. Trata-se de um quadro muito polimorfo. É um sentimento visceral que tem essa camada da experiência humana na sintomatologia traz uma diversidade muito grande”, esclarece, citando o que está acontecendo na pandemia às pessoas.
De acordo com Mariana, o trauma do terror coletivo, da proximidade da própria morte e de pessoas queridas é um gatilho que atingiu a todos e terá continuidade em cada um.
“O tempo que os adolescentes ficaram dentro de casa, vai demorar um tempo até que se recuperem de tudo isso; um estado distópico, misturado com o outro contexto que está vivendo, isso tem um efeito na psique, que é do medo, do não familiar”.
Ela concorda com a visão de Sidarta sobre a narrativa criada em torno da maconha e até de seus componentes, ao falarem que apenas o canabidiol é positivo.
“A maconha tem muitos compostos e eles agem como uma comitiva. Se der um isolado não tem o mesmo efeito terapêutico (melhora do paciente e quanto tempo ela dura), isolado tem uma tolerância. Precisamos sair do binarismo, que passa pela molécula do bem e do mal”, aponta.
A médica explica ainda que o corpo humano conta com o sistema endocanabinóide, de regulação de funções. Os fitocanabinoides, moléculas da maconha, partilham estrutura molecular similar com os endocanabinoides. A ativação dos receptores influencia vários processos fisiológicos.
Quando questionada se é favorável ao uso recreativo, a psiquiatra pergunta “Quem tocou o sinal do recreio?”: “Inventam esses conceitos para atrasar uma coisa que é científica e humanística. As vítimas do tráfico são um problema muito maior do que o remédio que não pode ser comercializado”.
Fórum realizado no RN busca democratizar ciência
Neste mês de junho, será realizada a sexta edição do Delta 9, fórum considerado um dos maiores sobre cannabis no Brasil. O evento online está marcado para os dias 7, 8 e 9, recebendo palestras de especialistas brasileiros e internacionais. A realização é da ONG Reconstruir e as inscrições podem ser feitas gratuitamente pelo site do evento, delta9brasil.com.
“A gente vive hoje um negacionismo da ciência. O Brasil está 20 anos atrasado em relação à cannabis medicinal. O evento visa fomentar a formação científica e fornecer informação para sociedade em geral”, explica Felipe Farias.
Serão abordados temas como regulamentação, aspectos sociais e históricos, efeitos da cannabis em pacientes com doenças crônicas, psiquiátricas, Alzheimer, Parkinson, câncer e no tratamento de sequelas da covid-19.
A programação inclui palestras de autoridades no assunto, como o neurocientista e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, Sidarta Ribeiro; a médica Paula Dall’Stella, uma das pioneiras da prescrição de cannabis medicinal no Brasil; a psiquiatra Mariana Muniz e o médico e professor pernambucano Helio Mororó.
O evento também terá palestras da chef de cozinha Débora Sá (Cannabis na cozinha); a representante da Liga Canábica Sheila Geriz (Associativismo no futuro da Cannabis); o neurocientista Dráulio Araújo (Ahayuska e depressão); o médico Mikhael Marques (Fitoterapia Canábica), o médico Pedro Melo (Cannabis no esporte); o médico veterinário Tarcísio Barreto (cannabis na epilepsia veterinária) e as advogadas Gabriela Arima e Marcela Sanches (Regulamentação da Cannabis).
Muito bom quando se encontra mesmo que sem querer
conteudos como deste blog e o artigo aqui, gostei muito do
que lí aqui… Valeu!
Ótima entrevista Isaaa! Pessoal da REConstruir representa muito! Tem outros atores de peso nessa linha em Natal, influenciando forte essa cultura em todo estado, emanando da Zona Norte, a região mais populosa da cidade. Conheço um cara gente fina maior figura encarou até prisão por causa da planta, tem muita história pra contar! tive a oportunidade de conversar e história e humildade nao falta, é o @cogollogrowshop E sim, em Natal RN existe uma associação autorizada pela justiça! seria legal também buscar entrevista-los!