O cão e a faca
Natal, RN 25 de abr 2024

O cão e a faca

10 de abril de 2022
9min
O cão e a faca

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Caminhávamos por entre a vereda estreita de velames e mata-pastos. Às minhas costas ele vinha empunhando uma lazarina carregada, feita por ele mesmo. Era muito bom nisso, fazer espingardas de soca. Todo mundo que queria uma, o procurava porque tinha certeza de que teria uma arma bem-acabada, com fechos doces e tiro fácil. Era um ferreiro conhecido em toda região também por ser especialista no conserto de armas de fogo. Temido por muita gente, já que dominava a arte de fazer armas, criou em torno de si o mito de que era também exímio atirador. Alguns até supunham que ele já havia matado gente. Aproveitava que tinha uma voz tonitruante para infundir medo naqueles que, por um ou outro motivo, o contrariava. Evangélico, conduzia sua família a laço curto não permitindo que nenhum de seus filhos e filhas subvertessem a ferrenha disciplina cristã que os impunha. Eu ia na frente, ele me seguia de tão perto que dava para sentir seu bafo em meus cabelos. Pressentia certa ameaça, como se aquilo fosse para me intimidar, mas eu também estava armado com uma faca de doze polegadas, tão afiada quanto uma navalha. Levava-a em minha cintura, enfiada numa bainha de couro. Ia pensando: “qualquer som de cão de espingarda se armando, me viro e enfio a faca no bucho desse velho”. Mas isso não ocorria. Não por enquanto. Seguíamos a passos sincopados, ele pisando no meu rastro logo que eu levantava o pé. Esse passeio no mato, tinha sido a convite dele.

− O que você está fazendo agora?

− Nada.

− Vamos comigo ver umas coisas ali no roçado.

Aceitei sabendo que por trás daquele chamado havia alguma armação. Ele deveria estar com segundas intenções. Porém não recusei o convite, um pouco por educação, um pouco para mostrar que não tinha medo dele. Fazia dois dias que estava hospedado na casa de um dos seus genros, localizada a uns trinta metros da sua. Viera para pedir a mão de sua filha em casamento e já sabia que ele era osso duro. Mas não estava intimidado, pelo contrário, estava mesmo era decidido a levá-la comigo ou pelo menos a firmar o noivado com data de casamento marcada. Tinha economizado algum dinheiro que daria para comprar o enxoval e alguns móveis indispensáveis para nossa casa: um jogo de tamborete de pereiro com tampo de couro de bode, dois potes de barro, uma cama de casal, um colchão de palha, panelas, pratos e colheres.... Enfim, o dinheiro que tinha, dava para iniciar uma vida de casado sem muito luxo, mas com o mínimo necessário para duas pessoas viverem. Ela também queria. Sua mãe fazia gosto, assim com as irmãs. Os irmãos eram indiferentes e eu recebia bastante apoio de seu cunhado, na casa de quem estava hospedado até aquele dia.

− Você é um rapaz muito bom, merece-a. Não sei porque ele implica tanto. Vocês dois parecem até que já são casados.

Isso era um exagero, evidentemente, e uma maneira de me incentivar a não desistir dela. Costumávamos nos ver muito fortuitamente, sempre aproveitando os descuidos do velho, mas eu nunca tinha sequer lhe abraçado. Até ali, só pegara uma vez em sua mão. No entanto, cá comigo, repetia “enquanto há vida, há esperança”. Já firmara convicção de que era ela com quem queria viver o resto dos meus dias, e olhe que eu só tinha vinte e dois anos. Caminhávamos então na vereda, fim de tarde, algo assim por volta das cinco horas. O sol caía vermelho por entre os galhos de jurema preta e espetava seus raios em nossas vistas. Eu mantinha o passo sincopado, só perdendo o ritmo aqui e acolá, quando tinha que me agachar para livrar um galho ou pular de uma pedra para outra, para vencer alguns buracos feitos pela chuva do dia anterior. A passarada se recolhia e a noite dava seus primeiros assobios, enquanto seguíamos em frente cortando a caatinga. Eu sem saber ainda até onde iríamos e esperando a qualquer momento um “clac” do cão da espingarda sendo puxado para trás. “Se ouvir algum barulho desses, me viro, agarro o cano da espingarda, puxo minha faca e enfio nesse velho”.

− Para onde vamos?

− Vá andando, logo você vai saber.

Ali, naquele momento, todos os meus planos de casar com sua filha, de vivermos uma vida simples, termos nossos filhos, estava por um fio. Bastava que ouvisse o “clac” do cão e tudo ruiria. Nada de noivado, nada de enxoval. Em vez disso um velório. Em vez de festa de casamento, a fuga desesperada para me livrar da cadeia. Ou, o que seria mais dramático, o meu próprio velório. Mas os dados estavam lançados. Teria que ser como teria que ser. Chegamos em um campo aberto de cujo ponto era possível ver a silhueta de coqueiros altos balançando dolentemente. À nossa frente, a vereda se delineava de forma mais horizontal e nítida, de terreno mais regular, margeada de capim-panasco pendulando, batendo suavemente em nossas pernas.

− E agora?

− Vamos até aqueles coqueiros.

Nesse momento percebi que ele já tinha tudo planejado. Me levaria até os coqueiros, me faria subir em um deles sob o pretexto de tirar alguns cocos. Quando eu subisse, armaria o cão da espingarda, “clac”, tranquilamente, apontaria para cima, mirava em minhas costas e dispararia. “Pronto. Não tenho saída. Tenho que escolher. Me nego a subir, colido com sua arrogância e está posta a pendenga. Ele arma a espingarda, aponta para mim, eu puxo a faca da bainha, parto para cima dele e agarro o cano da espingarda. Se ele conseguir atirar antes, morro, se não, corto ele de faca e fujo. Ou, concordo com ele, subo no coqueiro e lhe dou a vantagem de não correr nenhum risco. Basta um tiro e despenco lá de cima. Depois, não sei mais. Vou estar morto. Ele é quem vai ter que assumir o ônus de matar outro homem covardemente, sem possibilidade de defesa. Chegamos ao coqueiral.

– Sabe subir em coqueiro?

– Sei, sim.

– Então, suba e derrube dois cachos, aqueles ali, ó!

– Certo.

O coqueiro não era dos mais altos e estava bem carregado de cocos verdes, mas a haste era muito íngreme, quase uma linha reta, na vertical. E subir em coqueiros muito altos ou de hastes muito retas, é sempre muito perigoso. Naquele momento, em especial, era mais desafiador ainda, pois eu estava com os nervos à flor da pele. Já havia subido em muitos coqueiros e isso não era problema para mim, porém, naquela circunstância, em que poderia levar um tiro e despencar lá de cima, a tarefa se convertia em algo bem mais amargo e difícil. “O que esse velho quer mesmo? Me matar? Me meter medo? Pensa que tenho medo dele? Quer saber se sou homem mesmo? Se mereço casar com sua filha? E se eu subir, tirar os cocos descer e nada acontecer, o que vai ser depois? O que ele me dirá? Que dará a mão da filha e consentirá o casamento? Ora, se eu não morrer dessa, não me interessa mais sua permissão, roubo-a, levo-a comigo, independente de sua autorização. Ele que vá pros diabos, com essa arrogância toda. ” Decidi subir. Tirei o chapéu.

– Vou subir.

– E essa faca, vai levar?

– Vou sim, tenho que cortar o cacho, não é?

– Pois, suba!

Comecei a escalada, cheguei na metade do coqueiro, olhei para baixo, vi que não estava muito alto ainda. Vi também que ele olhava para cima e detinha a espingarda em repouso, na horizontal, segurando-a na altura da cintura, de modo que a cinta ficava balançando mais ou menos no meio de duas pernas. Olhei para cima e continuei a subida. Cheguei na copa do coqueiro, olhei novamente para baixo, ele não havia mudado de posição. Pensei: “vai esperar que eu esteja entretido tirando os cocos, aproveitar e atirar. Se der tempo, corto um cacho e atiro em cima dele. Ainda que ele dispare a arma, boa parte do chumbo vai para o cacho. De quebra, o cacho cai na sua cabeça e aí, de qualquer modo, não teremos casamento, mas velório. Nesse caso não preciso fugir, posso alegar que agi em minha defesa. O problema é que também posso ser morto pelos filhos. Melhor fugir”. Sento nas palhas, saco a faca e começo a cortar o cacho. Quando a faca rompe a haste aviso:

– Lá vai um!

Ele dá um salto para trás e o cacho cai estrondando exatamente no lugar onde estava. Noto que ele volta a ficar impassível e não muda a posição da arma. Corto o segundo cacho e aviso novamente. Dessa vez ele não se move e o cacho cai do outro lado do coqueiro fazendo um barulho seco.

– Tiro mais?

– Não, não precisa. Pode descer.

Recoloco a faca na bainha e começo então a descida pensando que ainda seria alvo fácil. Haveria ainda chance de ser fuzilado. Desço devagar, evitando ferir muito o peito, olhando sempre para baixo. Noto que ele permanece inerte, agora está mais relaxado e já mira o horizonte, nem olha mais para mim, parece ter perdido totalmente o interesse. Chego finalmente no chão e me recomponho. Ponho o chapéu de volta na cabeça, olho para ele e pergunto:

– E agora?

– Vamos para casa.

– E os cocos?

– Deixe-os aí.

Natal, 30/03/2022

Artemilson Lima é professor de História do IFRN.

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