A paisagem da Ponta
Natal, RN 19 de abr 2024

A paisagem da Ponta

23 de maio de 2022
7min
A paisagem da Ponta

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Quando o ônibus chegou no topo da suave ladeira que começa nas imediações do Praia Shopping, tomei um grande susto ao descortinar à minha frente o Morro do Careca e toda a vasta enseada que é o mar ali em Ponta Negra. Era 1983 e sair do centro da cidade, tomar um ônibus da empresa Transflor para ir aos domingos à Ponta Negra, ainda não era algo muito usual pelos moradores da Cidade Alta. Isso porque as praias mais frequentadas eram a Praia dos Artistas, Praia do Meio e praia do Forte e, para a população da Zona Norte, a praia da Redinha.

Fui com alguns amigos de Natal e do interior, estes últimos moradores da Casa do Estudante, como eu. Ponta Negra começava a ser assediada para além dos moradores da Vila, do Conjunto e dos donos das casas de veraneio sitiadas ao longo da orla mais ao norte da enseada, já onde o mar se torna aberto e bravio, onde hoje existem dezenas de restaurantes, bares e pousadas e para onde o calçadão se expandiu na década de 1990.

Meu susto foi porque nunca havia visto algo tão belo, tão soberbamente belo, tão pujante, como aquele pedaço da Cidade. Foi algo tão impactante em mim que pensei estar em um sonho e, imediatamente, pensei também que, se quisesse descrever aquela experiência não conseguiria, tal era a profundidade do que sentia naquele momento, pois como já diz Camus não se pode criar experiência, é preciso passar por ela para sabê-la.

Naquela época não havia ali nenhum edifício que extrapolasse mais de dois andares e a maior parte do espaço que ficava entre o nível mais alto da avenida Engenheiro Roberto Freire e a beira-mar só era ocupada por uma nesga de construções baixas de alguns residentes privilegiados, casas de veraneio, alguns bares e pousadas. Porém, nenhuma dessas construções se interpunha entre a minha visão e a beira da praia. Ali se espalhavam barracas simples, quase todas de propriedades de nativos moradores da Vila, vinculados às famílias de pescadores ou eles próprios, pescadores. Para lá, mais tarde, levaria todos os fins de semana meus filhos em deliciosos encontros com outros amigos e amigas com seus filhos de mesma idade.

No dia em que conheci Ponta Negra, subimos o Morro do Careca e fomos acampar do outro lado, onde fica a Praia de Alagamar, reserva da Força Aérea Brasileira, considerada parte do parque marítimo da Barreira do Inferno. A cada metro de subida, voltava meu olhar para a enseada e via a paisagem diminuir de escala, ao mesmo tempo em que aumentava a acuidade para o imenso mundo que eram as praias da Via Costeira, ainda sem os hotéis, e o asfalto serpenteando o Parque das Dunas. Essa experiência nunca saiu de mim, como uma das mais felizes e marcantes, talvez só comparada à outra, quando sobrevoei por mais de quatro vezes o litoral potiguar em um monomotor.

Tempos depois estabeleci uma experiência bem diferenciada da primeira, aproximei-me mais do lugar e da comunidade, sobretudo quando morei na Vila durante um ano e meio no final da década de 1990, quando ainda haviam alguns resquícios do que era essa praia em 1983.

Hoje Ponta Negra mudou muito, tanto o bairro quanto a praia. A explosão demográfica e o avanço da indústria do turismo predatório provocaram uma brutal modificação da paisagem. Não que Ponta Negra tenha perdido totalmente sua beleza, nada disso. Mas, reconheçamos, as interferências sofridas desde então para atender a máquina de moer paisagens naturais do turismo predatório, a transformaram num absurdo exemplo de como não se deve tratar um paraíso.

Recentemente andei, num final de tarde, no passeio à beira-mar, andei não, “fiz uma trilha”, sempre atento para os obstáculos erguidos e a turba de “trilheiros” como eu. Além dos vendedores espalhados ao longo do passeio, quiosques, banheiros públicos malcheirosos, estreitamentos, carrinhos de bebidas, havia uma confusão de sons emitidos dos mais variados pontos, que tornavam a comunicação entre duas pessoas separadas por dois metros quase impossível. O barulho do mar, então, desapareceu ante aquela zoada infernal. Em alguns momentos, tive que me esgueirar para conseguir passar entre um trambolho e metralhas de parte do calçadão destruído pela força da maré.

A praia sumiu, quando a maré alta batia no muro de arrimo de pedras de extremo mau-gosto e tão mal dimensionado, tornando a parte baixa estreita e perigosa. Não sei porque (e sei), lembrei de Hebert Marcuse em seu clássico A Sociedade Industrial: o homem unidimensional, quando ele trata das ditas necessidades falsas criadas pela sociedade do consumo, de como elas transformam a natureza em mero apêndice do mercado e de suas necessidades de produção. A paisagem, inclusive, vira algo a ser contemplado como um quadro à parte, distanciado do homem e mero objeto de comercialização.

Lembrei também de Jane Jacobs, em Morte e Vida nas Grandes Cidades, quando fala que as “cidades têm a capacidade de fornecer algo para todos, só porque, e somente quando, são criados por todos." E veja que aqui nem me refiro ao explosivo crescimento de arranha-céus na parte superior do bairro, já meio que considerando isso parte irrefreável do avanço do capital imobiliário especulativo, da grana que, como diz o poeta, “ergue e destrói coisas belas. ” Me atenho às deformações da orla.

Como cidadão apaixonado por Natal, acredito que somente o mínimo de bom senso e de compromisso democrático de quem gerencia essas malfadadas iniciativas que desmontam paisagens e erguem outras a partir do que consideram imprescindível para o progresso, é que virá a outra paisagem da Ponta Negra que, assim como eu, muitos sonham. Enquanto isso não acontecer, conviveremos com as justificativas amareladas de que há necessidades – as falsas necessidades. E, sem considerar que a satisfação do resultado só virá quando a mudança for enfim criada por todos, nunca teremos a cidade que sonhamos como lugar para viver e morrer.

De minha estupefata experiência em 1983 com essa parte do paradisíaco litoral potiguar, penso que essa musa que inspira até hoje banhistas, turistas, moradores e é tão fotografada como plano de fundo para pessoas sorridentes e felizes − de tão inumeráveis ângulos, em tão diversificadas luzes − ou como primeiro plano para alimentar nossa alma com o que ainda é possível extrair de belo de seu traçado natural, deveria ser mais respeitada no que tem de mais natural. Isso porque, mesmo estando exposta à sanha devoradora da indústria do turismo, mesmo tendo sua natureza violentada pela espalhafatosa e degradante rede de sujeira visual nas suas franjas, deve, com certeza, causar espanto para quem pela primeira vez a descortina quando chega na cabeça da suave ladeira que começa nas imediações do Praia Shopping. Até quando isso será possível, não sabemos.

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