Quando o racismo vem de dentro de casa

Ryan Kevin é um jovem, negro, independente, de 22 anos, com emprego fixo, carteira assinada, um companheiro de vida e um lar para morar.
Isso pode parecer muito para alguém tão jovem, mas é extraordinário para quem fugiu de casa por causa das agressões que sofria da ‘família’, foi entregue pela mãe ao Conselho Tutelar e morou na rua e durante anos em uma Casa de Passagem, uma espécie de abrigo da prefeitura para acolher crianças e jovens.
“Eu morei com minha avó, que é mãe do meu pai, até os 10 anos, quando ela foi para São Paulo fazer uma cirurgia, encaminhada pelos médicos daqui. Ela tinha muitos problemas de saúde e acabou morrendo lá no hospital. Não tiro nunca da minha cabeça que ela foi a única a me aceitar. Quando me contaram, eu fiquei um mês em depressão, com crises de ansiedade. Hoje, dedico a ela tudo o que conquisto”, conta.
Sem o único porto seguro que conhecia no mundo, o menino foi levado para a casa da avó materna, mas acabou fugindo de lá porque não aguentava mais as agressões que sofria. As poucas memórias que ele ainda guarda da infância é de apanhar muito de um tio, irmão de sua mãe, e das confusões constantes dentro de casa.
Ryan acabou sendo entregue, aos 13 anos, pela própria mãe ao Conselho Tutelar, que conseguiu para ele uma vaga na Casa de Passagem, onde permaneceu por um bom tempo, até quase completar 18 anos. Foi lá que ele foi vacinado e matriculado na escola.
“Eu fui obrigado a sair antes [dos 18 anos] por causa de um processo iniciado pela minha própria família para me tirar de lá. Voltei para a casa da minha avó, mas meu tio continuava implicando comigo. Notei preconceito algumas vezes, quando estava com o cabelo maiorzinho, cacheado, e quando estava de turbante, que é aquele acessório para o cabelo que a maioria dos negros usam, aí ele disse: e agora é macumbeiro? Tá repreendido, vá pro inferno!”, relembra.
“Fiz um boletim de ocorrência, não abaixei a cabeça e segui em frente com a minha vida. Hoje, nem tenho contato com eles”, acrescenta Ryan.

Ao perceber que continuaria sendo vítima de perseguição e violência na casa da avó materna, Ryan pediu ajuda a uma tia, irmã de sua mãe. Mas, a estadia durou pouco tempo.
“Minha família começou a fazer confusão e pressionar minha tia a me expulsar de lá. Pedi ajuda ao meu pai e morei com ele por um ano, mas depois ele arranjou uma mulher que também não gostava de mim e chegou a avançar para me bater e voltei, de novo, para casa da minha tia, onde fiquei um tempo escondido”, relata Ryan sobre a difícil relação com a família.
Ainda sem um lugar certo para morar, foi a diretora da Escola Estadual Felipe Camarão, onde ele estudava na turma de Educação para Jovens e Adultos (EJA), que apresentou ao jovem o Centro Municipal de Cidadania LGBT.
“Depois de dois meses eles conseguiram uma vaga para mim no abrigo para as pessoas em situação de rua”.
Foi no período no qual ficou no abrigo que Ryan teve contato, pela 1ª vez, com tintas, pincéis e um quadro em branco, que ele descobriu que poderia ser utilizado como forma de expressão, como arte.
“Eu não sabia que arte existia! Quando vi aquilo, as tintas, o quadro... perguntei o que era, nunca tinha visto. As assistentes sociais da Casa me incentivaram muito para que eu não desistisse. Elas acharam meus quadros lindos, o pessoal ficou louco. O primeiro foi uma paisagem do Morro do Careca, depois continuei desenvolvendo a criatividade. Já me chamaram para feiras e para uma exposição no Centro de Convenções”, conta sorridente.

Foi também na escola que Ryan aprendeu o que era cidadania, que tinha direito a benefícios sociais e fez a matrícula no CadÚnico. Atualmente, aos 22 anos, ele trabalha no setor de confeitaria de uma rede de supermercados de Natal. O jovem dorme todos os dias por volta das 18h30 e acorda às 3h para bater o ponto às 6h, sem falta.

O sofrimento que precisou superar ao longo da vida é, hoje, inspiração para ele e para as muitas pessoas que já ouviram suas palestras, nas quais Ryan explica que a vida não está perdida e que é preciso conhecer os grupos e redes de apoio.
“Hoje tenho a oportunidade de lutar, de falar. As pessoas precisam sabe que essas coisas existem! Me envolvi muito como o pessoal do Pop Rua e até já participei de um Congresso em Maceió para falar do período que estive na rua”, revela.
Ryan, que já foi até acorrentado pela família na infância e era obrigado a ficar em silêncio para que os vizinhos não percebessem seu sofrimento, conta que não tem mais contato com os parentes, com a exceção da tia que o acolheu.
Apesar de nunca ter descoberto o porquê da perseguição da família, se é pelo fato de ser negro (seus parentes também o são) ou uma pessoa LGBT, Ryan acredita que eles sequer têm consciência do preconceito que exercem.
“Eles não sabem o que é racismo, nunca falaram a palavra, mas dá para sentir o ódio que eles têm. Via nos jornais as matérias sobre intolerância religiosa e eles diziam: acho é pouco. Eles não se enxergam como negros”, lamenta Ryan, que também é PCD (Pessoa com Deficiência), restando-lhe 70% da audição no ouvido esquerdo e quase nada no direito.
Ryan tem o semblante sereno, é muito sorridente, tem uma fala pausada e tranquila e nem de longe lembra os horrores pelos quais passou, Os planos é continuar galgando degraus na escadinha da vida. Recentemente, ele foi promovido no trabalho e, sempre que pode, viaja para descobrir novas cores e formas de continuar inspirando vidas.
