Sobre centros históricos e déficit habitacional urbano
Natal, RN 19 de abr 2024

Sobre centros históricos e déficit habitacional urbano

3 de maio de 2018
Sobre centros históricos e déficit habitacional urbano

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Essa semana o país se chocou com a cena do desabamento do prédio na região central da cidade de São Paulo não só pelo trágico acontecimento em si, mas também pelas circunstâncias no qual ocorreu. Tratava-se de um espaço mapeado pelos serviços públicos municipais com direito a laudos e perícias dos bombeiros alardeando os riscos estruturais e de incêndio a que estava submetido  o edifício em questão. Portanto, é chocante constatar a inércia do poder municipal paulista nesse caso, uma vez que o executivo municipal não pode alegar ignorância dos fatos relatados, muito ao contrário: existia não só ciência como me arriscaria dizer desprezo pela condição de tais pessoas numa cidade que tem avançado a passos largo na xenofobia, apesar de dever o dinamismo da sua economia  e a grandiosidade de sua estrutura urbana justamente à mão de obra barata que sempre representaram os imigrantes em São Paulo, sejam do Nordeste e Norte do Brasil, seja mesmo estrangeiros provenientes da América Latina, África ou mesmo Filipinas.

Aliás, recentemente, o Ministério Publico do Trabalho de São Paulo liberou de condições de trabalho análogas a escravidão dezenas de filipinas e bolivianas que trabalhavam como babás em condições de cárcere privado, em condomínios de luxo da capital paulista.

Os julgamentos sociais e a absoluta falta de empatia de grande parte das pessoas que custam em ver na tragédia de pessoas pobres algo com o qual se identificar e, sem dúvida, a dimensão mais cruel de todo esse processo. Os habitantes da ocupação, além do trauma psíquico da situação de quase morte, além de perder todos os seus parcos pertences materiais pessoais – muitas vezes uma tv, um som que eram o lazer e a conexão de tais pessoas com o mundo comprados a tanto sacrifício, luta e resignação, além de tudo isso ainda têm que lidar com a culpabilização de suas práticas. Não faltam bocas pra dizer coisas tais como: “também, olha só onde foram morar, queriam o quê? ”, como se houvesse sido para aquelas pessoas uma simples opção  estar ali, como se elas tivessem condição de estar num ambiente salubre e lá estavam por pura acomodação à fácil e cruel máxima coxinha de que quem vive nas ruas ou em ocupações é vagabundo desocupado.

Desconheço um ser humano que deliberadamente de posse de todas as suas faculdades cognitivas prefira viver na precariedade e no risco de morte iminente do que estar numa habitação regular, segura e confortável.  De modo que acho de uma estupidez e insensibilidades gritantes me deparar com pessoas que emitam opiniões como: “não dá pra ter pena dos que morreram no desabamento, pois estavam cometendo um crime”. Mesmo que fosse verdade que estivessem cometendo um crime, me pergunto qual o nível de humanidade de uma sociedade que reduz a luta pela vida, a busca pela dignidade humana, à máximas grosseiras falseadoras da realidade como o são as opiniões que reduzem a humanidade dos outros à frases tão simples e cruéis, como as que elenquei aqui.

Para mim choca também a falta de vontade política em resolver o grave déficit habitacional que é uma constante das grandes cidades brasileiras, que comungam quase todas de um problema comum: a degradação dos centros antigos, históricos.

Após o desabamento em São Paulo, inúmeras vozes lúcidas e conscientes já falaram sobre uma excelente solução pra essas situações: a reforma e recuperação de prédios públicos abandonados que poderiam ser adaptados para serem moradias populares. Diversos problemas se resolveriam assim. Tanto o déficit habitacional seria minimizado quanto o patrimônio público não se perderia indo pelo ralo, contribuindo assim não só para a preservação do Centro Histórico, como sua revitalização, visto que a imensa maioria das pesquisas sobre centros históricos nos mostra que sua revitalização não é só uma questão de restauração de casarios e prédios históricos. Acima de tudo, o que de fato revitaliza e preserva um lugar é o fato dele ser habitado, dele ser praticado cotidianamente por habitantes que ali vivem, que encaram aquele lugar como sua casa.

Porém, a conhecida máxima de que o Brasil é um país sem memória não poderia ser mais verdadeira no que diz respeito aos centros históricos, ao patrimônio histórico em geral. Se o Brasil é sem memoria, o que dizer então de Natal e do Rio Grande do Norte, que assistem passivamente o descaso e abandono do centro histórico de Natal pelos poderes competentes (ou seria melhor dizer poderes incompetentes?).

Semana passada, citei a situação da praça André de Albuquerque Maranhão, marco zero de Natal e pontapé da colonização da antiga capitania do Rio Grande que está absolutamente abandonada ao lixo e aos vândalos, mas quem dera se tratar somente de uma situação isolada. Ali próximo tanto à belíssima Casa do Estudante está praticamente em ruínas (o que é muito grave, visto que estudantes ainda vivem no espaço hoje ameaçado). O antigo Memorial Câmara Cascudo vai no mesmo ritmo, completamente inutilizado depois que a família do celebre folclorista fundou o memorial privado em sua antiga casa. O Palácio da Cultura não sabe o que é fazer jus ao nome há muito tempo, enquanto o belíssimo teatro Alberto Maranhão já vai chegando a 6 anos fechado.

A situação da Fortaleza dos Reis Magos, então, é de chorar. Aquela que já foi a mais bem preservada das fortalezas do litoral brasileiro hoje sofre com o descaso a ponto de estar inviabilizado como destino turístico: é lixo e entulho no pátio principal, é descaracterização de estruturas, remoção do acervo, numa obra que se arrasta há quase dez anos. Tudo isso numa cidade turística que foi eleita patrimônio histórico brasileiro pelo IPHAN há 8 anos.

Finalizo minha coluna de hoje com esse protesto e com uma cobrança: sinto muita falta de ver o departamento de Historia da UFRN engajado na luta pelo patrimônio histórico potiguar. Sabemos que em termos de poder de ação o DEHIS pouco poderia fazer, mas creio ser sintomático o silêncio guardado por uma instituição com esse prestígio e que em tese tem também a função de estudar e proteger (no mínimo, fiscalizando-o e exercendo a fundamental critica desse processo) o nosso patrimônio. A gente lê um monte de textos sobre como se fez a preservação do patrimônio histórico francês e português ao passo que assistimos passivamente o desmonte do nosso. Até quando ?

Intelectuais e poder público precisam urgente se unir para recuperar o Centro Histórico de Natal e finalmente convencer o turista que não temos somente praias. Para isso, precisamos de mais engajamento e de  mais consciência cidadã. Os Centros Históricos podem ser lugares incríveis: esteticamente belos, funcionais  e turísticos, basta que tenhamos mais consciência e responsabilidade com o planejamento urbano.

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