Regina Duarte e a secretaria de cultura
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Regina Duarte e a secretaria de cultura

7 de fevereiro de 2020
Regina Duarte e a secretaria de cultura

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A saída do secretário especial de Cultura Roberto Alvim do governo federal, concretizada depois do estarrecedor anúncio de um prêmio nacional de artes, em que Alvim aparece sentado a uma mesa de gabinete emitindo discurso parafraseando o nazista Goebbels, tendo como música de fundo Lohengrin, de Richard Wagner, reacendeu dois debates públicos importantes. O primeiro, sobre a enojante presença de adoradores de regimes totalitários no Brasil, mesmo no setor cultural; e o segundo, sobre o papel de uma secretaria de cultura num momento em que o conhecimento e a produção cultural estão na berlinda, não como destaque, mas como alvo de negação e censura.

Sobre este segundo debate quero dar meu pitaco. Desde 2016, quando o ex presidente Michel Temer anunciou a extinção do Ministério da Cultura - revertida nove dias depois, por pressão da classe artística e manifestações por todo o país, que incluíram, como no caso do Rio Grande do Norte, a ocupação de prédios vinculados à pasta - a administração das políticas culturais é tida como tarefa de segundo plano, no caso do governo que terminou em 2018, ou instrumento de reforço de um estado autoritário, como na atual gestão.

Tanto é que, diferentemente do que ocorreu em 2016, poucos ousaram se manifestar quando o presidente eleito Jair Bolsonaro começou o mandato extinguindo o ministério, como havia prometido. À época, foi criada uma secretaria de Cultura, alocada dentro do Ministério da Cidadania. Atualmente, a secretaria está vinculada ao Ministério do Turismo. Formalmente, a justificativa da mudança foi a reforma administrativa que está para ser feita, com enxugamento de pastas (mas o motivo, político, na verdade, foi a falta de afinidade entre o então secretário, Roberto Alvim, e o ministro da Cidadania, Osmar Terra; mais uma das decorrências da falta de habilidade política de Bolsonaro).

Poucos ousaram se manifestar em janeiro de 2019, quando o ministério foi enterrado, muito provavelmente porque pairava uma nuvem grossa e escura sobre como se daria a repressão do governo Bolsonaro a discordâncias, protestos e manifestações. E muito pouco se sabia também sobre sua postura à frente dos assuntos culturais: se de desprezo ou de destruição. A mudança em si, de ministério para secretaria, representa mais uma questão de prestígio para a pasta. Na estrutura do órgão, quase nada mudou.

Balaio de entidades - De acordo com o portal do Ministério da Cidadania (que ainda abarca o da secretaria especial), o secretário (a) Especial da Cultura assessora o ministro da Cidadania na formulação de políticas, programas, projetos e ações que promovam a cidadania por meio da cultura. Uma das ferramentas na formulação de políticas culturais é o Plano Nacional de Cultura (PNC), elaborado em parceria com a sociedade civil. O plano baseia-se na concepção de cultura articulada em três dimensões: simbólica, cidadã e econômica.

A secretaria tem em sua estrutura sete entidades, sendo três autarquias e quatro fundações: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Fundação Cultural Palmares (FCP), Fundação Nacional de Artes (Funarte) e Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Há ainda seis secretarias nacionais: Secretaria da Economia Criativa (SEC), Secretaria do Audiovisual (SaV), Secretaria de Diversidade Cultural (SDC), Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), Secretaria de Difusão e Infraestrutura Cultural (Seinfra), e a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (Sdapi).

De acordo com reportagem do jornal Correio Braziliense, o orçamento do órgão para 2020 é de R$ 2 bilhões. Desse total, estão previstos R$ 404 milhões para o Fundo Nacional da Cultura (FNC) e entidades vinculadas. O montante também inclui gastos com pessoal ativo e com custeio, como luz, aluguel e telefone.

A nova secretária - Que tipo de papel deverá exercer, então, uma secretária de cultura como Regina Duarte? Como um nome que nunca teve cargo de gestão na administração pública conseguirá implementar políticas que atendam aos anseios dos profissionais da área e contemplem as dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura? Seus antecessores, em governos que dialogavam com urbanidade com artistas, criaram estratégias e políticas de longo prazo, como o Plano Nacional de Cultura, proposto em 2008 por Gilberto Gil, instituído por meio de lei federal em 2010 e com vigência de dez anos.

Gil também criou os pontos de cultura, entidades de atuação comunitária no setor e que recebiam investimentos do governo federal, espalhadas em mais de mil municípios, nos 26 estados brasileiros e no DF. Juca Ferreira, a despeito de ter trabalhado com poucos recursos, também atuou com medidas de longo prazo, como a Política de Estado para a Música, concedendo R$ 100 milhões para o setor, sem restrições quanto a gêneros ou artistas (ao contrário do atual secretário da Funarte, que andou associando o rock´n roll ao satanismo).

Em um governo que tem pouca afinidade tem com profissionais da cultura, o principal desafio de Regina Duarte será restabelecer um diálogo entre artistas e executivos do serviço público, em primeiro lugar. Depois, cumprir uma mediação que foi difícil para seus antecessores: afastar a sombra do autoritarismo e da censura. A nova secretária já demonstrou disposição para conciliar artistas e governo numa postagem no Instagram, na qual inseriu fotos de colegas que estariam apoiando sua nomeação (alguns dos quais pediram que suas fotos fossem retiradas, é verdade).

Quanto à segunda tarefa, pouco se conhece de suas intenções. Henrique Pires, primeiro secretário da gestão Bolsonaro, deixou o órgão em agosto do ano passado após se posicionar contra medidas do governo, especialmente a de suspender um edital voltado para a TV pública que trazia uma linha dedicada à produção de séries que abordam questões LGBTI e de diversidade de gênero.

“Eu não vou fazer apologia a filtros culturais”, Pires disse ao jornal O Globo. “Para mim, isso tem nome: é censura. Se eu estiver neste cargo e me calar, vou consentir com a censura. Não vou bater palma para este tipo de coisa”, afirmou.

O secretário Alvim, que afirmava ter “alinhamento irrestrito com Bolsonaro”, cancelou a apresentação da peça “Res pública 2023”, prevista para estrear dois meses depois em um dos espaços da Funarte, alegando falta de qualidade artística e mudanças nos critérios de curadoria. O espetáculo retratava um futuro em que jovens vivem sob um governo fascista.

Regina Duarte, que já declarou que Bolsonaro tem “humor brincalhão típico dos anos 1950, que faz brincadeiras homofóbicas, mas que são da boca pra fora, coisas de uma cultura envelhecida, ultrapassada”, vai ter que ter muito jogo de cintura e habilidade política. O desrespeito à diversidade, escancarado em declarações e ações de Bolsonaro, não combinam com a diversidade cultural que é o norte do Plano Nacional de Cultura (PNC).

Se puder conciliar a simpatia que Bolsonaro lhe dedica com as palavras mágicas liberdade de expressão, criação e fruição; diversidade cultural; respeito aos direitos humanos; direito de todos à arte e à cultura; direito à informação, à comunicação e à crítica cultural; direito à memória e às tradições e democratização das instâncias de formulação das políticas culturais, princípios do PNC aprovados por lei, a secretária terá imenso sucesso. No Brasil em que vivemos, porém, os princípios descritos realmente parecem palavras mágicas de fábulas para crianças. Infelizmente.

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