De Gaducha a Maradona
Natal, RN 25 de abr 2024

De Gaducha a Maradona

9 de dezembro de 2020
De Gaducha a Maradona

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25 novembro de 2020 marcou um dia triste para todos aqueles que apreciam o futebol, e tem no drible uma verdadeira fascinação, o mundo da bola, perdeu para eternidade um dos maiores gênios do futebol espetáculo e da arte do drible. Estamos falando do genial jogador Argentino, Diego Armando Maradona. A cidade de Napoli, na Itália, e Buenos Aires na Argentina demonstraram, na despedida do craque Argentino, o quanto a canhota fantástica de um dos mais talentosos, polêmicos, amados e odiados jogadores de futebol de todos os tempos vai deixar saudades, principalmente pelas vitórias, títulos e jogadas surreais com os quais Dom Diego foi capaz de presentear o povo napolitano e os nossos Hermanos Argentinos.

Nascido em 30 de outubro de 1960, em Lanús, na província de Buenos Aires, “El Pibe” cresceu em Villa Fiorito, um bairro muito pobre da periferia da capital Portenha. Aos 15 anos, o garoto prodígio começou a sua trajetória profissional no Argentino Juniors, depois passou pelo Boca Juniors, Barcelona, Napoli e seleção argentina, colecionando dias de luta, dias de glória, polêmicas e toda a trajetória vitoriosa como jogador de futebol, que todos conhecem. E quem não conhecia pode conhecer nesses dias, após a cobertura dos programas de televisão e das notícias nas redes sociais, em decorrência da sua passagem para outro plano.

Sendo assim, Maradona foi, para muitos, um gênio que tinha alegria nas pernas e levava alegria ao povo, através dos seus dribles; para alguns, um irresponsável; para outros, um engajado em causas sociais ou alguém que poderia ter usado a sua imagem para fazer mais por outros “El Pibes” argentinos. Neste momento, porém, não entrarei na polêmica se Maradona foi melhor que Pelé, se ele era um engajado ou não, nem vou discutir a respeito do caráter do craque argentino, trago-o para discutir uma problemática que anualmente é responsável por milhares de mortes no mundo como um todo, uma doença que, muitas vezes, começa silenciosa e agride desde as famílias que moram do Lago Sul - região nobre de Brasília, onde moram muitos políticos, com renda mensal média declarada de 23 mil reais - e se estende aos bairros mais pobres do país, em que a miséria é sinônimo de fome e que carece de um lugar decente para se viver.

No mundo do futebol, temos inúmeros exemplos de atletas que tiveram suas vidas abreviadas pelo o uso de álcool. Os casos mais emblemáticos para mim são os do bicampeão mundial de futebol, o jogador Garrincha, o anjo das pernas tortas, que morreu em consequência do álcool em 1983, e, recentemente, o Dr. Sócrates da democracia Corintiana, um dos maiores jogadores da seleção de 1982/ 1986, além do potiguar Marinho Chagas, eleito o melhor lateral esquerdo do mundo na Copa de futebol de 1974, com passagens pelo ABC, Botafogo/RJ, São Paulo e Cosmos de Nova Iorque. O álcool, segundo o Relatório global status report alcohol and health (2018), foi responsável pela morte de três milhões de pessoas ao redor do mundo, sendo 28% por lesões, vítimas de acidentes e outras mortes violentas, 21% distúrbios digestivos e 19% doenças cardiovasculares.

Nas categorias de base, o álcool e as drogas ilícitas, muitas vezes, apresentaram-se para mim de uma forma despretensiosa. Ainda nas categorias de base, lembro de alguns atletas veteranos que diziam: “Quem não bebe, não joga”. Ainda adolescente, depois das partidas do famoso matutão, ao final dos jogos, os freezers cheios de cerveja ou uma “branquinha” sempre nos esperava após a peleja. Espero que essa triste realidade tenha se modificado. Lembro de um folclórico goleiro da minha juventude, nas categorias de base do América que, naquela época, já era usuário de droga, um cara engraçado, que não fazia mal a ninguém, morava em uma região periférica da cidade de Natal, assim como eu. Depois que ele atingiu a idade limite para as categorias de base, nunca mais o encontrei nos gramados, mas, no início dos anos 2000, enquanto eu me deslocava para o trabalho, ao passar pela avenida Bernardo Vieira, encontrava sempre aquela figura que fazia todos nós rirem durante os treinos, com suas brincadeiras, gestos e palavras, muitas vezes, desconexas e fora de sentido. Naquele momento, o nosso goleiro assumiu a aparência de um zumbi, sempre descalço, esquelético, sem camisa, com uma bermuda jeans suja e muito surrada. Subitamente, nunca mais tive notícias do nosso goleiro. Um dia, fiquei sabendo por outro colega que ele era usuário de crack e, num momento de loucura, o nosso goleiro morreu eletrocutado, ao tentar roubar fios para trocar por crack, mais um “EL pibe” que parte precocemente pela ausência do estado e por um mal que, só em 2017, segundo relatório da ONU, o uso de drogas ilícitas foi responsável pela morte de 585 mil pessoas. O nosso goleiro partiu, não com o glamour de Dom Diego, mas no anonimato que, a cada dia, de forma quase silenciosa ou de forma sensacionalista, estampa os telejornais mostrando a barbárie que alimenta o nosso país permeado de ódio.

Portanto, como disse o ex-jogador Casagrande, não dá para relativizar esse problema: o usuário existe, o alcoólatra existe. O alcoolismo e a dependência química de outras drogas não são só um problema de saúde pública. O cigarro, uma das drogas lícitas, é responsável direto por 8 milhões de mortes por ano. A sociedade precisa trazer essa temática para o centro do debate; precisamos acolher as pessoas que necessitam de ajuda. Não dá para negligenciá-las, assim como tentamos invisibilizar as crianças, os adultos, jovens e idosos que morrem de fome ou pela ausência de atendimento da rede pública de saúde por falta de investimentos. Não podemos continuar a criminalizar as pessoas e acreditar que essa realidade não existe dentro das quatro linhas, nas quadras, nas piscinas, nos condomínios de luxo ou nos casebres nas periferias. Esse mal pode estar mais perto do que você imagina, os dribles de Maradona não conseguiram suplantar esse adversário silencioso, e o nosso goleiro não conseguiu fazer a defesa mais espetacular da sua vida, superar os males desse problema que, muitas vezes, se apresentam de forma quase imperceptível no início é o nosso grande desafio, quantos El pibe haverão de morrer ainda?

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