A uma semana do Dia da Consciência Negra: reflexões sobre necropolítica e violência
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A uma semana do Dia da Consciência Negra: reflexões sobre necropolítica e violência

16 de novembro de 2019
A uma semana do Dia da Consciência Negra: reflexões sobre necropolítica e violência

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Por Júlia Nepomuceno* 

Certa vez, no seio da reflexão de um de seus escritos, o professor camaronês Achille Mbembe declarou que “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, de modo que, para ele, “Exercitar a soberania é”, fundamentalmente, “exercer o controle sobre a mortalidade”.[1]

As palavras do filósofo e cientista político africano reverberam, mais do que nunca, na realidade sócio-política brasileira, que tem se valido, cada vez mais, da morte como mecanismo de controle social – É o que Michel Foucault chamou de biopoder e o que Mbembe denominou, com algumas divergências teóricas, de necropolítica. No caso brasileiro, o controle sobre os corpos e a subjugação da vida ao poder da morte tem implicado em consequências trágicas, especialmente quando falamos de minorias sociais e de segurança pública. A máxima da segurança através da violência, propalada pelo Estado como solução às disfunções do atual sistema de segurança pública, tem sido um – dos muitos – tiro(s) no pé daqueles que anseiam pela pacificação social.

É neste cenário que ganha especial relevância os dados estatísticos divulgados dia 13 de novembro, a uma semana do Dia Nacional da Consciência Negra, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a respeito da violência sofrida por pessoas pretas ou pardas, em comparação àquela sofrida pela população branca. O estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”[2] demonstrou que pretos ou pardos têm 2,7 vezes mais chances de serem vítimas de homicídios do que brancos. Com efeito, a taxa de homicídios de pessoas negras ou pardas, que possuem entre 15 a 29 anos, foi de 98,5, contra 34,0 para brancos na mesma faixa etária. O recorte de um subgrupo específico – o de jovens pretos ou pardos, do sexo masculino – retornou resultados ainda mais preocupantes: uma taxa de 185,0.

Segundo o estudo, em que pese o recrudescimento das taxas de homicídios tenha ocorrido de modo geral, é dizer, a despeito de cor e gênero, insta destacar que a diferença com que se apresenta é alarmante: em seis anos, os índices migraram de 37,2 para 43,4 mortes a cada 100 mil habitantes no caso de pretos ou pardos, ao passo que, entre brancos, as taxas ficaram estáveis, variando levemente entre 15,3 e 16.

Ao indagarmos a que se deve o elevado número de mortes de jovens negros, alguns aspectos centrais sobre o problema merecem ser relembrados. De um lado, (i) tem-se um sem número de jovens periféricos, em sua maioria negros, estigmatizados pelos mecanismos de controle; e, de outro, (ii) um Estado empenhado em criar discursos de emergência e de exceção com o fim de legitimar o exercício de necropolíticas – fundamentalmente, do direito de matar – e, com isso, exercer o controle sobre determinados grupos.

Assim, a sensação de insegurança e o recrudescimento da criminalidade constituíram, em conjunto, o pontapé inicial para um discurso, exaustivamente propalado pelo senso comum e pelas instâncias políticas de poder, de que o direito penal e suas instituições punitivas, nos moldes em que se afiguram hoje, não reprimem suficientemente o crime. A fim de alcançar tais objetivos, exclama-se erroneamente, deve-se punir mais.

Diante desse cenário, tem-se observado, para além do aumento na taxa de homicídios de jovens negros, demonstrada pelos dados estatísticos, o fortalecimento dos discursos de expansão do sistema penal como ideologia de controle: é a falácia da expansão punitiva como solução ao crime. As ideias de defesa social, os excessos de um direito penal de emergência e as ilegalidades perpetradas por um direito penal do inimigo, por exemplo, têm marcado os discursos penais e criminológicos do imaginário coletivo, que anseiam por movimentos de tolerância zero, numa perspectiva de Lei e Ordem.

Nessa linha, o racismo, já dizia Foucault, tem atuado como regulador na “distribuição de mortes”, servindo como critério para delimitar as barreiras entre aqueles que estão sob a égide da proteção estatal e aqueles que se encontram à sua margem: quem é descartável, para o Estado, e quem não é[3]. Por isso mesmo, os dados levantados pelo IBGE representam apenas a ponta do iceberg de um problema que há anos vem fincando suas raízes na estrutura do tecido social brasileiro: está no estigma da cor e da condição socioeconômica, posta antes mesmo do nascer; na punição seletiva; no processo penal autoritário; na normalização da tortura, dos discursos de ódio e da violência policial; na mortalidade infanto-juvenil por balas perdidas, no endeusamento das prisões e, enfim, em última instância, da morte como solução à anomia social.

Ao cabo, diante desse cenário de necropolítica como estratégia de extermínio dos corpos negros, que os gritos de resistência por mortes como as de Ágatha Félix, Kauan Peixoto, Kauã Rozário, Kauê Ribeiro, Jenifer Silene, Marielle Franco, Marighella – e tantos outros gritos negros que os microfascismos do dia a dia tenham abafado – possam, a partir desta reflexão, na semana que antecede o Dia da Consciência Negra, fazer-se mais altos que o estopim dos tiros que os condenaram à morte, e mais altos que o estopim dos malhetes do estado-juiz-burocrata – no sentido arendtiano do termo – que, corrobora, diuturnamente, para que jovens negros e periféricos integrem as estatísticas.

[1] MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 32, 2016, p. 123.

[2] Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25999-taxa-de-homicidio-de-pretos-ou-pardos-e-quase-tres-vezes-maior-que-a-de-brancos>, acesso em 14.11.19

[3] FOUCAULT, Il faut défendre la société : Cours au Collège de France, 1975-1976. Paris : Seuil, 1997, p. 228.

Júlia Nepomuceno é membro do coletivo O Contraditário

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