Telemarketing: a expressão do neoliberalismo em meio ao novo coronavírus
Natal, RN 20 de abr 2024

Telemarketing: a expressão do neoliberalismo em meio ao novo coronavírus

21 de março de 2020
Telemarketing: a expressão do neoliberalismo em meio ao novo coronavírus

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Por *Renata Sapucaí e **Brisa Bracchi

O novo coronavírus (SARS-COV-2), causador da doença COVID-19[1], têm deixado o mundo em alerta sobre os perigos de uma pandemia. O quadro é preocupante, apesar da baixa taxa de mortalidade: o fato de estarmos lidando com um vírus desconhecido pelo corpo humano faz com que não tenhamos anticorpos para combatê-lo e sua rápida transmissão tornam os números absolutos alarmantes - mais de 240 mil casos confirmados com cerca de 10 mil mortes[2] no mundo inteiro. A forma eficaz de evitar o contágio é o isolamento social, que influencia todas as esferas das nossas vidas.

O Rio Grande do Norte teve seu primeiro registro em 12 de março e até o dia 20 de março, o governo do Estado havia registrado 131[3] casos suspeitos, além de 6 casos confirmados[4]. Sendo uma situação inédita para as últimas gerações (e seus respectivos governos), esse cenário traz consigo uma série de reflexões sobre os nossos sistemas de saúde, seguridade social e, de um modo geral, sobre como as sociedades modernas se organizam.

Nessa perspectiva da organização contemporânea da sociedade, o chamado capitalismo de plataforma entra em cena - grandes empresas transnacionais articulam não só transportes de pessoas e alimentos (Uber, iFood) e hospedagem (AirBnb) como também entretenimento (Netflix) e diversos outras necessidades sociais que agora estão à um toque em nossos celulares. Nosso objetivo com esse texto é refletir um pouco sobre o trabalho de um dos grupos que está atrás das máquinas dos serviços que tanto recorremos, especialmente agora nesse período de isolamento social: as operadoras e os operadores de telemarketing.

Por vezes consideramos o trabalho daquilo que não vemos como algo imaterial, desconsiderando não só os sistemas de computadores e cabos, mas principalmente as pessoas que vendem suas forças de trabalho à plataformas digitais e aplicativos de prestação de serviços, além das outras diversas modalidades de trabalhadores autônomos que, sem amparo do Estado, podem vir a passar por uma série de dificuldades nas próximas semanas.

Entretanto, há modalidades de trabalho formal que põem em cheque as orientações de isolamento da OMS. Desde a reforma trabalhista implementada pelo governo de Michel Temer, o cenário de desemprego e de trabalho informal é cada vez mais crítico, dialogando com uma política global de avanço do neoliberalismo que dá aos trabalhadores duas opções: manter-se em um emprego com direitos cada vez mais escassos ou fazer parte do crescente exército de desempregados ou em situação de trabalho informal, gerando um constante sentimento de temor que desgasta os indivíduos física e psicologicamente.

Em meio a essa crise da saúde, uma coisa nos chama atenção - trabalhadores da indústria de telemarketing no mundo todo ainda estão sendo obrigados a trabalhar, com todos os perigos que isso representa: usar o transporte público para chegar no seu local de trabalho; compartilhar computadores, headsets e outros instrumentos; cumprir a carga horária em ambiente fechado e climatizado artificialmente, além de falar durante horas seguidas (espalhando gotículas de saliva pelo ambiente) e infectando suas mãos.

Essa é a realidade de cerca de 15 mil trabalhadores no estado do Rio Grande do Norte, segundo a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do RN (SINTTEL-RN). Em Natal e nos municípios vizinhos, as duas maiores empresas de telecomunicação (Teleperformance e Contact Center Riachuelo) são responsáveis por cerca de 7,5 mil empregos diretos. Apesar da redução do fluxo de funcionários (através de férias coletivas e utilização de banco de horas), ainda há um número considerável de pessoas dividindo o mesmo espaço, desrespeitando as orientações da OMS. As empresas orientam os trabalhadores acerca de cuidados de higiene e de controle da doença mas optam por não fazer o que diversos relatos vindos da Europa colocam como mais importante (e que teria salvado muitas pessoas por lá): colocar a vida em primeiro lugar e readequar as atividades das empresas para o home office. A diretoria do Sindicato ainda aponta o receio de que a paralisação das atividades presenciais signifique um processo de demissão temporária em massa - cenário nem um pouco absurdo de se imaginar, tendo em vista a alta rotatividade do setor.

Em tempos de extrema delicadeza, em que a responsabilidade coletiva e pública acerca da saúde e do cuidado tomam proporções inéditas a nós, se escancara a incompatibilidade do neoliberalismo como um sistema que põe o lucro em primeiro lugar e ainda se propõe a prezar pela saúde e pelo bem-estar das pessoas. Se escancara também o papel do Estado para lidar com o que de fato é público, coletivo e necessário à vida.

O Brasil ainda vive na pele o que é ter como chefe de Estado Jair Bolsonaro, uma pessoa irresponsável e tragicamente juvenil que, por ironia do destino, se orgulha de uma carreira militar que em tese, teria preparado-o para situações de crise. Além de criar uma narrativa de descaso sobre os riscos do COVID-19, viajar para os EUA e participar de atos inconstitucionais pelo fechamento do STF e do Congresso sob suspeita de infecção, Jair Bolsonaro ainda articula MP que visa diminuir a carga horária dos trabalhadores para diminuir seus salários, como se as despesas que os trabalhadores têm para sobreviver fossem diminuir também. Além disso, cortou nesta quinta-feira (19) 158 mil beneficiários do programa Bolsa Família, sendo 61% da região Nordeste, deixando famílias pobres ainda mais vulneráveis, sem uma renda que pode significar o impedimento dos procedimentos de prevenção e consequentemente põe a vida destas em risco.

Neste momento, defender os direitos de cada trabalhador e trabalhadora é defender suas vidas, sem sentido figurado.   Esperamos agora que o mesmo se faça valer às empresas de telemarketing. Até lá é dever de cada cidadão se somar a esse grito exigindo e pressionando pela liberação dos 15 mil trabalhadores potiguares deste ramo, assim como todos demais que estejam em situações que ameaçam a integridade de suas saúdes. Se proteger, cuidar dos seus, defender o SUS e os nossos direitos: todos e todas devemos ter o acesso à quarentena e à condições de passar por ela com dignidade.

* Renata Sapucaí é Cientista Social (UFRN), integra a equipe técnica do Centro Feminista 8 de Março (CF8) e trabalhou por 18 meses como agente de teleatendimento em Natal.

* *Brisa Bracchi é estudante de História (UFRN), militante da Marcha Mundial das Mulheres e do Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras (PT).

[1] Tudo o que você precisa saber sobre o novo coronavírus Sars-CoV-2. Folha de São Paulo, 22 jan. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2J2CwHv. Acesso em: 20 mar. 2020.

[2] MOTA, Camilla; BARIFOUSE, Rafael; MAGENTA, Matheus. Coronavírus: 29 perguntas e respostas para entender tudo que importa sobre a doença. BBC Brasil, 28 fev. 2020. Disponível em: https://bbc.in/2WDzwJs. Acesso em: 20 mar. 2020.

[3] Rio Grande do Norte tem 131 casos suspeitos e um confirmado de coronavírus. Tribuna do Norte, 20 mar. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3ajXPR3. Acesso em: 20 mar. 2020.

[4] Sobe para 6 o número de casos confirmados de coronavírus no RN, diz Sesap. G1, 20 mar. 2020. Disponível em: https://glo.bo/2wqenYK. Acesso em: 20 mar. 2020.

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