Samara Martins: a mulher negra e da periferia de Natal que é vice na chapa à presidência da República pela Unidade Popular
Natal, RN 28 de mar 2024

Samara Martins: a mulher negra e da periferia de Natal que é vice na chapa à presidência da República pela Unidade Popular

26 de julho de 2022
14min
Samara Martins: a mulher negra e da periferia de Natal que é vice na chapa à presidência da República pela Unidade Popular

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O partido Unidade Popular (UP) terá uma chapa com duas pessoas negras para concorrer à presidência da República: Leonardo Péricles, como primeiro candidato, e Samara Martins, como vice. Assim como milhares de meninas, Samara, que hoje tem 34 anos e mora em Natal, no Rio Grande do Norte, já teve vergonha do cabelo cacheado e durante anos alisou os fios para se sentir aceita. A libertação dos “padrões” de beleza veio à custa de muita luta e leitura.

“Esse é um processo muito cruel e também passei por isso. Eu não me considerava uma mulher negra desde que nasci e a gente fica tentando se embranquecer, então alisei cabelo por muito tempo, a gente tenta esconder nossa características, se criticando, que seu nariz não é legal, que sua cor não é legal. No processo da militância que você vai entendendo que isso também é construído. Até hoje estou nesse processo de entender qual meu papel. Pode parecer besteira cortar o cabelo [para tirar a química do alisamento], mas foi um processo muito revolucionário na minha vida porque foi aceitar algo que eu neguei durante muito tempo, que era minha negritude. Tenho dedicado muito minha militância para entender nossa construção enquanto mulher negra. Uma coisa que me impactou muito foi quando uma paciente minha virou pra mãe e disse: mãe, a médica tem um cabelo igual ao meu!". 

Samara Martins na infância I Foto: cedida
Samara na infância I Foto: cedida

De origem humilde, filha de mãe professora e pai motorista, Samara é mineira de nascimento, mas tem o Rio Grande do Norte no coração e no endereço há, pelo menos, 12 anos, quando se estabeleceu em Natal para cursar Odontologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Hoje ela é militante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e do Movimento de Mulheres Olga Benário, mas também fez parte do Centro Acadêmico de Odontologia e foi Diretora de Mulheres da Direção Nacional dos Estudantes (UNE).

“A odontologia é para poucos. Fui cotista e só consegui me formar porque briguei pelo auxílio instrumental. Eles não podiam dizer que só pode ser dentista quem tinha dinheiro para pagar uma lista de instrumentos de R$ 3 mil por semestre! É muito caro e você nem pode parcelar em 12 ou 24 vezes porque no outro semestre vai ter tudo de novo! Odontologia ainda é um curso muito elitizado. A universidade pode até ser pública, mas você acaba tendo essa mensalidade. Nem em medicina, que também é um curso muito elitizado, você não têm que comprar seus próprios instrumentais. O fato é que poucas pessoas conseguem terminar o curso, apesar de conseguirem entrar. Desde pequena queria ser dentista, mas não sabia que entre o querer e o poder tinha uma grande luta”, desabafa.

Samara Martins no início da adolescência I Foto: cedida
Samara à esquerda, no início da adolescência I Foto: cedida

Depois de se formar, Samara passou em concurso público e se tornou dentista do Sistema Único de Saúde (SUS). Ela casou, teve um filho que hoje tem dois anos e nunca mais voltou para Minas Gerais. Ela também segue na luta em defesa do SUS e, apesar da estabilidade financeira proporcionada pelo trabalho, nunca saiu do Leningrado, comunidade do bairro Planalto, onde mora desde que chegou à capital potiguar. A moradia fica, exatamente, numa das moradias conquistadas pelo MLB.

Sempre morei na periferia, até mesmo em Minas Gerais. Sou filha de mãe professora e pai motorista. Minha mãe é nordestina, veio do interior da Bahia e saiu de casa muito cedo para tentar ter uma educação, ela morou em internato e na casa das pessoas até conseguir se formar professora. Não chegamos a ser paupérrimos, mas sempre tivemos uma vida muito simples. Minha mãe sempre fez questão de que eu e minha irmã estudássemos porque ela via na educação a forma de termos uma melhor condição de vida mais pra frente. Eu até brinco com meu esposo que minha mãe nunca me ensinou a cuidar de casa, de bebê, porque ela achava que a gente tinha que estudar, se formar e ser trabalhadora e dona da própria vida. Foi a partir dela, que é muito lutadora, é que comecei a perceber que nós mulheres tínhamos que lutar muito. Ela sempre defendeu e é apaixonada pela educação pública, fez questão que estudássemos em escolas públicas. Por conta disso, junto com a luta do meu pai, que não fez militância, mas por conta da vida sofrida sempre teve consciência de classe. Ele também sofreu muito racismo porque foi pra São Paulo para ‘tentar ganhar a vida’, como diziam. Eles sempre foram inspiração pra mim, apesar de nenhum ter tido uma militância política expressiva, foi a luta deles no dia a dia, no corre da vida, que me inspirou a seguir nessa luta”.

Samara Martins (1ª à esquerda) durante a faculdade de Odontologia, na UFRN I Foto: cedida
Durante militância estudantil I Foto: cedida

Dentista não é rico!

Essa é uma questão que temos discutido com a categoria. Nós estamos muito mais próximos de ficar pobres do que de ficar ricos! Vivemos esse momento de crise que, com certeza, abala essas pessoas que a gente chama de classe média. Não temos bens e aquele monte de dinheiro acumulado, que é o que os ricos têm. Então, quando a gente fala que a parte rica da população tem que dividir suas riquezas, esse pessoal de classe média acha que estamos falando deles! Mas a gente tá falando de quem pode passar dois anos da vida sem fazer nada, sem trabalhar, parasitando, que ainda vai ter muito dinheiro!

Apesar das vantagens conquistadas no serviço público, como a estabilidade no emprego, Samara também conta que as reformas trabalhista e previdenciária aproxima o pessoal do serviço público das classes consideradas baixa e pobre, do que dos ricos e milionários que não precisam fazer esforço para ganhar dinheiro.

Periferia

Enquanto em Minas Gerais Samara estava mais voltada para o movimento estudantil, ao chegar em Natal, ela começou a se dedicar à luta por moradia.

Minha vivência na periferia a vida inteira demonstra que não é um local de menor prestígio, como as pessoas acham, que é um lugar violento onde estão as pessoas mais perigosas do mundo. Na verdade, é o lugar onde estão as pessoas sem oportunidade, apesar do brilhantismo de muitas delas. Fica parecendo que as mentes brilhantes só saem da zona sul, o que não é verdade. Não pretendo sair da minha casa, do meu bairro. Esse povo é o meu povo. Quero que todas as pessoas desse bairro, da região da cidade e do país tenham estabilidade financeira, condições de comer e morar, é a luta que eu acredito. Não é verdade essa história que ficam propagando de que ‘ah, você não se esforçou, portanto não pode ter!’. Todo mundo tem direito de ter condições dignas de vida. Aliás, defendemos que todos tenham direito a, pelo menos, um salário mínimo. Viver de auxílios não está certo. Também é preciso ter direito a um trabalho, porque também não é verdade que não dá para ter emprego para todo mundo. O desemprego só serve ao capitalismo, para paralisar quem já tem seu emprego garantido pra dizer que não pode fazer nada, não pode questionar senão vai perder o seu. Se não tivermos a concentração de riqueza que vemos hoje, é possível termos emprego para todos. Minha luta é para que todos tenham condição de estabilidade, de estar bem, com condições dignas de vida e não que eu vire um patamar superior, garanta minhas coisas e não me importe com o resto. Como diz o poeta, não dá para ser feliz sozinho. Não dá pra eu garantir minhas coisas e da minha família e ignorar o tanto de gente infeliz que não tem sequer o que comer”, defende Samara, que conheceu Valdete Guerra, mulher que dá nome a uma das ocupações do MLB, localizada no bairro do Planalto.

 Fui visitar as ocupações e, inclusive, conheci Valdete Guerra antes de seu falecimento. Era uma mulher sensacional, de muita garra mesmo. Isso fez muito bem pra minha pessoa porque, muitas vezes, você acaba entrando num individualismo de medir o mundo pela sua régua e você começa a ver que tem outras coisas nas quais precisa prestar atenção”, revela.

Samara Martins I Foto: cedida
Samara Martins em momento atual durante a Convenção Nacional Eleitoral da Unidade Popular I Foto: cedida

Chapa antirracista pela Unidade Popular (UP)

Enquanto a maioria dos partidos fazem suas convenções em grandes centros urbanos e econômicos, como São Paulo e Rio de Janeiro, a Unidade Popular (UP) optou por realizar seu evento no Nordeste, mais especificamente, numa unidade do Sesc em Natal nesse último domingo (24). A maioria das candidaturas será composta por mulheres, negros e negras, além de representantes de áreas ribeirinhas do norte do país, das periferias, favelas e indígenas, inclusive, com representante da etnia potiguara, do Rio Grande do Norte.

“Fizemos questão que a chapa fosse formada por pessoas negras, nessa perspectiva de denúncia do racismo. No Brasil são raríssimas as vezes em que negros e negras se candidatas ao cargo máximo, que é a presidência. Em algum momento acabam sendo nas proporcionais, nas majoritárias em alguns estados. Nesse momento de aumento de ataques nas periferias, de chacinas em operações nas favelas, avaliamos que seria importante trazermos esse elemento novo durante as eleições, de questionarmos por que não temos negros nesses postos e como o estado é mais letal, perigoso e violento para a população negra".

Chapa antiracista pela Unidade Popular I Foto: cedida
Chapa antirracista pela Unidade Popular I Foto: cedida

Propostas

A chapa do partido Unidade Popular para concorrer à presidência da República é formada por Leonardo Péricles, como primeiro candidato, e Samara Martins, como vice. A chapa será a única nas eleições de 2022 formada por pessoas negras. Samara contou quais as principais propostas:

“Auditoria da dívida pública, a defesa do SUS, educação pública e uma coisa que acredito que apenas nossa chapa esteja trazendo, que é o direito à memória, verdade e justiça com a apuração dos crimes da Ditadura Militar, tendo em vista que temos tido várias ameaças de golpe militar no país, inclusive, pelo presidente que é candidato à reeleição. Mesmo em sua convenção eleitoral, ele questiona as eleições. Temos que fazer uma luta gigante nas ruas, não podemos esperar pelo 2 de outubro pra barrar o golpe no nosso país e dizer que eles não têm espaço para ficar até 2035 através de golpe, independente da vontade do povo. Se o brasileiro tem tão pouco espaço nessa democracia, que se resume a votar nas eleições, que pelo menos esse direito seja respeitado. Querem participar do processo eleitoral, mas não respeitam. Se você acha que aquele regimento eleitoral não te representa, você nem se inscreve né?!”.

Péricles e samara I Foto: reprodução
Péricles e Samara I Foto: reprodução

7 de setembro

No mesmo dia em que ocorrem os desfiles de Sete de Setembro, em várias cidades do país também é realizado o “Grito dos Excluídos”, manifestação de denúncia às desigualdades sociais no país. Para 2022, a convocação da população já foi feita, inclusive, enquanto instrumento de denúncia das tentativas de golpe.

Estamos convocando as pessoas para que participem do Grito dos Excluídos, na mesma perspectiva do ano passado, quando disseram que iam dar um golpe. Esse momento não é só de voto, mas de mobilização de rua, de luta”.

Dicas de leitura

A conversa com Samara aconteceu por telefone nesta segunda (25), Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha e, também, no Dia Nacional de Tereza de Benguela. Pra dar uma descontraída, ela deu duas dicas de leitura pra gente. Olha só:

Por um feminismo afro-latino-americano, de Lélia Gonzalez

"Na Unidade Popular fizemos esse debate sobre onde estão as mulheres negras na política e Lélia Gonzalez, Angela Davis, têm sido as escritoras que tenho lido bastante para me empoderar mais, não me considero construída, acabada, ainda estou entendo o meu papel, o que tenho que fazer", indica.

”.

Memorial do Paquiderme, de Natanael Sarmento

Fala sobre a história do Rio Grande do Norte sob a perspectiva de desconstrução de quem são os heróis potiguares. Muito legal e é uma leitura muito boa! Não consegui fugir da política né?”, se despede Samara, rindo.

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