…mas faltava qualquer coisa,
qualquer coisa importante
que me fizesse voltar a ser o mesmo,
talvez a acreditar nas pessoas,
na bondade delas…
José Mauro de Vasconcelos
Meu filho caçula frequenta com bolsa de estudos, uma escola suíça que cobra mensalidade de 3 mil reais. Entre as sete da manhã e as quatro da tarde, ele aprende, entre outras coisas, inglês, francês e música. Pelo seu ótimo desempenho nesse ano, a instituição resolveu bancar um prestigiado exame de proficiência em inglês, que poderá abrir-lhe portas para que continue os estudos fora do Brasil. O exame custa 800 reais.
Você pode pensar que nossa vida vai muito bem, obrigada, e preciso reconhecer que esses são privilégios que poucos têm no país. Mas do modo como vejo, enquanto existirem jovens da idade dele sem acesso à educação, aos cuidados em saúde, ao lazer, sofrendo com a violência, sendo vítimas de preconceito racial, de gênero etc., enquanto isso estiver acontecendo, não podemos sentir que a vida caminha bem.
Fui criada em um lar protegido. Sendo filha de uma professora primária e de um vendedor de livros, era natural que o conhecimento fosse incentivado, disponibilizado e monitorado. Então, muito cedo, a literatura me ofertou o aprendizado essencial a um viver ético.
Lembro de chorar junto com o personagem Zezé (do livro O meu Pé de Laranja Lima), uma criança que vivia a primeira infância sob o jugo da pobreza, do alcoolismo paterno e do abandono do Estado. Em Oliver Twist, de Charles Dickens, foi a vez de testemunhar o contexto da orfandade, da rua, da corrupção religiosa e, mais uma vez, do abandono do poder público. Carolina Maria de Jesus me mostrou, quando eu tinha dezenove anos, a tragédia da fome e do preconceito. Não havia como ser alienada do que é esse país, após tantas e significativas leituras. Por isso a opção por Psicologia Social.
Há poucos dias aconteceu em nove capitais do país, manifestações que ocuparam os espaços internos dos supermercados buscando chamar atenção para os que vivem a situação da fome. Isso irritou parte da sociedade que considera instituições privadas espaços indevassáveis. Interessante observar que a entrada desses grupos nos supermercados choca, afronta, provoca os que se entendem civilizados, mas a situação da fome, não.
É como se a bolha das pessoas que se alimentam todos os dias, as impedisse de enxergar a fome dos demais. Sabemos que a fome existe e é óbvio que as pessoas têm pressa. Ainda assim, nos revoltamos com quem não se cala.
Talvez consideremos que os famintos devam sofrer calados dentro das suas casas para que uma pretensa ordem social seja mantida. E agora recordo de um filme sobre a Grande Fome ocorrida na Irlanda no século XIX, quando as plantações de batatas morreram por causa de uma praga. Muitas famílias de agricultores, envergonhados por sua miséria, fecharam as portas de suas casas para morrerem longe dos olhos de quem tinha seu pão. Estima-se que um milhão de irlandeses tenha morrido de fome entre os anos 1845 e 1849.
Ninguém pensa em se juntar à luta por comida, assim como o padre Júlio Lancelot faz, em um exemplo de verdadeira cristandade. De repente, podíamos escrever cartas aos supermercados afirmando que, como clientes, exigimos que tenham programas de armazenamento racional dos seus produtos (segundo a ABRAS, os supermercados brasileiros desperdiçam cerca de 3,6 bilhões de reais em alimentos, por ano. Os principais produtos desperdiçados são frutas, legumes, verduras, produtos de padaria e açougue) e que esperamos que esses alimentos cheguem às famílias de baixa renda antes que se tornem impróprios para o consumo.
Ao invés de nos juntarmos a essa luta justa, preferimos criticar quem não se cala, quem grita sua angústia. Nossa versão de “E daí, eu não sou coveiro!” é a irritação contra os movimentos sociais que dão sua cara a bater nos grandes centros urbanos.
Bem, se parte da sociedade civil não se importa com um assunto tão urgente quanto a fome, só posso considerar que essa porção da sociedade está morta e anda como um zumbi pelas ruas do país. Por fora está bem-vestida, perfumada e anda em carros de luxo. Por dentro está desfigurada e sua decrepitude é semelhante à dos alimentos enterrados pelo capitalismo selvagem que roubou sua alma (agora você pode me chamar de comunista).
Não acho que esse texto mudará sua opinião sobre a fome. Sou como Clarice Lispector: “Escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera nada”. Como ela, “sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens”. Então “escrevo porque sou um desesperado e estou cansado…”.
E agora, que propositalmente repeti a palavra fome tantas vezes nesse texto, desejo a todos um Feliz Natal!