A morte trágica de Zé Celso Martinez Corrêa, nessa última quinta (6), em nada lembra a alegria e irreverência que ele inspirava. Em passagens por Natal nos anos de 2006 e 2012, o ator e dramaturgo deixou um rastro de conhecimento e inspiração em suas oficinas e apresentações.
Em 2006, Zé Celso foi convidado pela Fundação Cultural Capitania das Artes (Funcarte) para participar do evento alusivo ao Dia Mundial do Teatro. Já em 2012, o dramaturgo fez oficinas e palestra como parte da programação referente ao aniversário de 108 anos do Teatro Alberto Maranhão.
“Quando soube da vinda de Zé Celso para celebrar o dia do Teatro lá no comecinho dos anos 2000, fui tomado por um misto de medo e excitação. Eu, na época ainda pensando um teatro encaixotado e Zé Celso era a liberdade, a transgressão encarnada. Será que ele vai pedir pra todo mundo ficar nú? Era um pouco do que o povo de teatro comentava na época. Mas o que Zé fez foi desnudar esses limites, essas ideias colonizadas, muito antes do termo decolonial ter se popularizado. O Teatro dele era brasileiro por essência política e anti-messianico, contra colonizador. Eu o encontrei em outras oportunidades de luta política, ou ainda vendo a remontagem de Roda Viva no Teatro Municipal de São Paulo. Sempre a liberdade, a transgressão e o Teatro Vivo clamavam espaço. Um dos últimos encontros foi em Recife quando eu estava na função de relatoria crítica do Festival “Transborda Usina Teatral” promovido pelo Sesc Cais Santa Rita, e não esqueço jamais dele falando que o Teatro era impossível assim como a vida que nos tem sido imposta é impossível. A única coisa que é possível é respirar, viver. Falou ainda que o Teatro não tem potência na reprodução do drama. Claramente se referindo às formas novelescas que muitas peças assumem nas montagens contemporâneas. A força, segundo José Celso Martinez é a da tragédia, ela é a que detém a potência e ainda afirmou que nunca resistiu, mas sim reagiu. Resistir é dar crédito e vitória a quem exerce a ação de opressão. Quando se reage transmuta-se a ação opressora“, relata o também artista e dramaturgo, Henrique Fontes, que integra o Grupo Carmin de Teatro.

Genuíno e praticante da genialidade brasileira, Zé Celso defendia um teatro livre. Reinterpretou peças sob uma ótica influenciada pela Tropicália e foi, antes de tudo, um questionador, ao construir peças que expunham os “bons costumes”, o que o colocou na mira da Ditadura Militar de 1964. Zé Celso foi preso por cerca de dois meses, torturado pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) sem sequer saber de que era acusado e passou quatro anos exilado em Portugal para sobreviver aos anos de chumbo.
Uma das marcas de Zé Celso foi subverter a relação de passividade predominante entre palco e plateia ao criar o Teatro Oficina.
“Eu era muito jovem, mas foi muito marcante poder chegar perto de Zé Celso e de tudo que ele representa para o teatro brasileiro. Ouvir suas falas, sua vitalidade, um homem que à frente de seu tempo, com capacidade de transgredir o status-quo, inclusive do próprio teatro… traz toda a alegria e antropofagia da cultura brasileira para dentro do teatro”, lembra Rodrigo Bico, Professor, ator e gestor cultural.
Diretor, figurinista, ator, maquiador, cenógrafo, enfim, um artista apaixonado pelo teatro, João Marcelino teve alguns encontros com Zé Celso, que reconheceu no potiguar a entrega ao teatro.
“Nossos encontros foram sempre auspiciosos e rodeados de muito carinho. No Recife, no Festival Janeiro dos Grandes Espetáculos, com nossas peças na programação. Em Natal, celebrando o Dia Mundial do Teatro, no Teatro Sandoval Wanderley. E no Teatro Oficina, quando estudávamos a possibilidade da minha criação dos trajes de cena para o terceiro movimento de Os Sertões. Entre uma taça e outro de vinho, celebrando Baco e as nossas vidas pelo mundo, nos reconhecemos como homens nascidos para o teatro. Zé é uma inspiração para todos nós artistas brasileiros e continuará sendo um farol, lançando luz para novas rotas teatrais. Viva Zé! Evoé!”, exaltou João Marcelino ao saber da morte de Zé Celso.
O Teatro Oficina Uzyna Uzona, em São Paulo, reconhecido mundialmente pela sua importância para a arte, é a sede da Companhia de Teatro Oficina, fundada por Zé Celso em 1958, se tornando uma das mais longevas do Brasil e ainda em atividade.

A ousadia do modelo de teatro criado por Zé Celso esteve presente tanto em sua dinâmica arquitetônica quanto no conteúdo exibido em seu palco.
“E que teatro é esse? O que propõe, o que quer fazer? Começa com o edifício teatral propriamente dito do Teatro Oficina que não é um teatro tradicional, modelo italiano, com plateia, camarotes, palco e cortina, como 90% das pessoas pensam que são todos os teatros existentes. O Oficina, a rigor, é um corredor de trinta metros de comprimento, com seis metros de largura, e uma altura total de uns dez a doze metros. Encostados às paredes mais compridas, bancos de madeira, com um balcão acima deles onde cabem mais bancos, tudo com um metro de largura, o que reduz o espaço cênico a um corredor comprido, de trinta metros por três. Os atores se deslocam acima e abaixo desse corredor, com piso de terra, que tem uma parte em declive. Há ainda uma fonte, com água corrente, lugar para os músicos num pequeno palco e todos os espaços podem e são utilizados pelos atores e pela cena”, descreve a escritora Clotilde Tavares, que acrescenta sobre a estrutura fora dos “padrões”:
“Mas não pense que é um teatro tosco. Os espetáculos dispõem de moderníssimos aparatos tecnológicos, som perfeito, luzes espetaculares, projeção digital, e uma das paredes dessa estrutura, num trecho de uns dez metros, é de vidro, mostrando por transparência os prédios de São Paulo. Uma árvore imensa, com seus 15 metros de altura, também cresce no local e foi incorporada à estrutura do teatro. Mais do que o espaço, porém, é o que se passa ali dentro, colocando José Celso Martinez Correia na galeria dos grandes nomes do teatro brasileiro, com um poder quase metaplásico de renovação, de crescimento, de surpresa, de novidade”.

Zé Celso tinha 86 anos de idade e a energia que nos lembra a infância. Ele estava internado na UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo, desde a última terça (4) e faleceu na manhã da quinta (6) em decorrência de um incêndio em seu apartamento. O ator e dramaturgo teve 53% do corpo queimado. Uma perda para quem vive, admira, escreve e ensina teatro.
“Uma tristeza imensa se lança sobre todo povo do Teatro, mas nada que se compare a dor do seu marido, familiares, colegas do Teatro Oficina e amigos mais próximos, para quem se voltam nossos sentimentos de apoio, condolências e todo acolhimento que o nosso amor pelo Zé possa lhes oferecer como consolo. Sobre o Zé, ainda o sentimos forte e presente como sempre esteve, rindo de tudo e refletindo com perspicácia acerca de tudo, equilibrando Apolo e Dionizio com uma sabedoria poucas vezes vistas numa pessoa de teatro. O Zé, sendo o Zé, saberia compreender a dimensão trágica de sua morte como uma perda incomensurável para o Teatro Brasileiro, bem como, saberia reconhecer alguma potência cômica na irônica circunstância que o levou à morte: um incêndio! Sim, deuses, também, morrem pelo fogo! De nós, para além das recordações pessoais que levaremos conosco, resta a celebração de sua memória ao longo de todo do fatídico dia de hoje, 06/07/2023, e sua lembrança será sempre evocada, em todos os dias solenes que em se celebra a importância do Teatro para o mundo. Viva Zé Celso Martinez Corrêa!”, comentou Sávio Araújo, Coordenador do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
