Do mito ao mijo
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Do mito ao mijo

24 de março de 2019
Do mito ao mijo

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O prefixo latino ex significa ação de tirar, saída, acabamento, ação de levar, privação ou negação, reforço. Para descrevermos adequadamente a situação que vivemos no país, desde a posse de Jair Bolsonaro na presidência da República, e para descrever o comportamento do próprio presidente, devemos lançar mão desse universo de palavras que, na língua portuguesa, se iniciam por esse prefixo latino. Podemos descrever tanto a situação em que estamos, como o comandante dessa situação, como sendo, no mínimo, excêntrico, ou seja, tudo aquilo que se desvia da norma e da normalidade, tudo aquilo que é extravagante, esdrúxulo, esquisito, fora do comum. Jair Bolsonaro já iniciou sua campanha à presidência se anunciando como sendo um outsider, ou seja, uma espécie de ovelha negra no interior da classe política brasileira. Seu marketing pessoal e político sempre se baseou na construção da figura de um excêntrico, de um desajustado às normas que regem o politicamente correto. Sendo medíocre em todos os sentidos, ele cedo descobriu que a melhor forma de aparecer, de não continuar sendo fora do parlamento, o parlamentar apagado e excomungado por muitos de seus pares, desprezado e subestimado até pelos lobistas e pagadores de propina (o que terminou por lhe dar o trunfo de parecer um parlamentar desligado da corrupção), por sua completa incapacidade de articular um discurso que não seja composto de frases feitas, impropérios e bordões reacionários destinados a produzirem o choque e o incômodo, era elaborando esse personagem estranho, burlesco, que de tanto ser performatizado terminou por ser subjetivado e encarnado.

Ele foi descobrindo que milhares de pessoas nas redes sociais partilhavam com ele essa sensação de excentricidade, de serem pessoas anômalas, de serem filhos indesejados, de serem seres excepcionais, com toda a ambiguidade de sentido que essa palavra carrega em nossa língua. Muitos, como ele, estavam à espera de serem aceitos, vistos, acolhidos, representados por alguém que, como eles, fossem os patinhos feios, as ovelhas negras da família. Se vivíamos uma situação de excepcionalidade institucional, desde que as principais instituições que deveriam preservar o Estado democrático de direito e a democracia (Judiciário, Legislativo, Ministério Público, meios de comunicação), resolveram golpeá-la, ela foi o momento adequado para que muitos daqueles que se sentiam uma exceção à regra se manifestarem no sentido de colocar no poder alguém que, de tão excepcional, atingia a condição de mito. O mito goza, antes de mais nada, da condição de extemporaneidade, ele está fora e acima do tempo, do passar do tempo. Bolsonaro apareceu, para muita gente, como aquele que destoava do tempo de corrupção, violência, bandalheira, imoralidade, tempo do demoníaco, do comunismo, do tempo de muitas outras fantasias e fantasmas de maldade e degradação. Bolsonaro era uma espécie de anjo vingador que viria recolocar os tempos nos eixos. Num tempo que parecia de exceção, somente alguém exótico, alguém estranho, estrangeiro, distinto daquele tempo poderia trazer a solução. Bolsonaro fez questão de se vender como o personagem antissistêmico (fantasia que o aprisiona agora no governo e vem inviabilizando a governabilidade), como uma excrescência em relação ao sistema político brasileiro. Atolado até a alma em seus vícios, ele conseguiu navegar na onda da antipolítica alimentada pela mídia em sua cruzada para retirar o PT do poder. Numa época em que o exercício da política foi demonizado, em que ser político foi considerado necessariamente ser uma pessoa incorreta, Bolsonaro, a encarnação do politicamente incorreto, foi inflado à condição de salvador da pátria. Seus seguidores fanáticos, que se consideram e, muito são vistos e tratados, como excêntricos, se apaixonaram pelo mito que encarnava e verbalizava publicamente a raiva e a revolta de quem se considera marginalizado, desprezado, subestimado, humilhado, maltratado. Bolsonaro deu corpo e voz a todos os ressentidos, mal vistos, malditos e mal amados do país. Ele encarnou e satisfez o desejo de vingança e de revanche de muitos que se sentiam excluídos em suas famílias, em suas vidas afetivas e sexuais, no mundo do trabalho e da crença, em sua condição de gênero e étnica, em sua condição etária e política.

Assumindo o governo ele se cercou de ministros que também se notabilizam pela excentricidade, pela bizarrice, pelo fora do comum e do lugar. Bolsonaro e seus filhos excepcionais sabem que se o pai se normalizar, se ele se conformar, se ele se tornar um presidente comum, ele irá desaparecer, ele irá deixar cair todas as suas máscaras e fantasias, o rei estará nu e sua mediocridade ficará explicitada. Continuar agindo de modo excepcional é a única maneira de dar alguma marca e distinção a um governo sem projeto claro para o país, sem capacidade de articulação política, sem gosto pelo cotidiano da vida pública. Bolsonaro sempre foi um parlamentar enfastiado com o dia a dia da política, sempre teve preguiça da liturgia dos cargos que ocupou. Ser um presidente que foge de todas as normas e regras que preside o cargo é a única coisa que garante que ele vai continuar no centro dos holofotes. Como vai disputar notoriedade com o juiz Moro, o queridinho da grande mídia, um homem com notória sede de poder e notoriedade, em quem forças poderosas investem suas expectativas de futuro? Como vai, em sua ignorância completa em administrar e gerir a economia (e qualquer coisa) fazer sombra para o ai Jesus do mercado, o paladino do neoliberalismo, Paulo Guedes, o vendilhão do país e o assaltante dos direitos dos trabalhadores e dos aposentados? Tem que continuar fazendo barulho, produzindo eventos, mesmo os mais constrangedores possíveis. Tem que, inclusive, dar caneladas e cotoveladas periódicas em seus ministros estrelas ( e até mesmo na insignificante Damares, como ele fez questão de lembrar) para mostrar quem manda na tropa, quem é que dá as ordens. Seu autoritarismo de formação não permite que preste reverência ou homenagem a ninguém, a não ser a seus ídolos políticos e intelectuais, Donald Trump e Olavo de Carvalho, que por estarem distantes, fora do país, não ameaçam tomar o seu pirulito, tão duramente conquistado. Foi às custas de muita humilhação, de muito desprestigio, de muito desprezo, que conseguiu chegar onde chegou, sabendo transformar estupidez em sabedoria, ignorância em informação, preconceito em conceitos, malcriação em atitude política, violência em marketing político.

Ele sabe que é um presidente extraordinário, não no sentido de ser acima da média, mas de ser alguém que chegou lá de maneira excepcional, que conseguiu se eleger graças a somatória de um conjunto improvável de circunstâncias, que é um presidente fora do ordinário, fora da ordem. O fato de ter sido eleito pela conjunção de eventos improváveis, faz com que ele julgue que só deve a ele, a seus excepcionais filhotes e a seus seguidores nas redes, essa vitória e, portanto, só a eles deve dar satisfação. Ele não faz ideia de que agora governa até para aqueles que nele não votou (que foi a maioria), que ele agora chefia um Estado. Ele continua achando que governa uma família, um clã ou no máximo um grupo de seguidores nas redes sociais. Sua retórica e ações belicosas contra todos aqueles que não vê como família ou seguidores, inclusive contra os aliados de última hora, que sabe terem se aproveitado de sua popularidade, é resultado dessa incompreensão de que agora ocupa um outro lugar, que não o permite agir como um pai de família ou como um jovenzinho que se diverte sentado no chão com seu celular. Durante a campanha ele parecia um moleque rebelde a fazer traquinagens, brincando de fazer arminha com os dedos com adolescentes e crianças, transformando o tripé de uma câmara fotográfica numa arma para trucidar a petralhada, dando o bolo em todos os debates, levando a cola explícita nas mãos para a sabatina do professor Bonner, contando a mentira mais deslavada, inventando kit gays e mamadeiras de pirocas, caçando o fantasma do comunismo em todo lugar. Na presidência continua contando petas, brincando com fogo e armas, adorando seus ídolos de direita, disparando suas abobrinhas nas redes sociais. Como uma criança mimada não mede as consequências do que diz e do que faz e, assim vai improvisando uma administração que trata de satisfazer apenas, da maneira mais desabrida, suas convicções pessoais e ideológicas. O programa de governo é ele e suas idiossincrasias. Não importa que, simular uma briga com os comunistas chineses, possa levar ao cancelamento de investimentos de milhões de dólares no país, que possa significar a queda nas exportações de produtos agrícolas; não importa que transferir a embaixada brasileira para Jerusalém possa afastar os países árabes de nosso comércio exterior. Na sua arrogância de menino birrento, não importa que suas atitudes de subserviência explícita ao imperialismo norte-americano possa levar o país a perder prestígio no mundo e afetar a relação com nossos vizinhos, comprometendo, inclusive, a segurança nacional. Como ele mesmo diz, ele não segue o script de um presidente da República comum e normal, que é alguém que se esforça para construir algo que deixe a sua marca no país, ele veio para destruir. Seu rancor, ressentimento e ódio a toda uma realidade, a todo uma sistema que o rechaçou e rejeitou, por muito tempo, que o condenou a viver de rachadinha de salário de funcionários e das conexões com zonas sombrias do mundo da contravenção e do crime, o faz um presidente da destruição, ele veio para destruir muita coisa. Seu ódio antipetista alimenta seu governo. Ele foi entronizado, mesmo que por um acaso, no lugar do anti- Lula, por grande parte de nossas elites, e isso é que dá norte e sentido a tudo o que faz. Como para muita gente da nossa direita, Lula é a obsessão, é o que não sai da sua cabeça. Desmanchar, acabar, destruir tudo o que Lula e o PT criaram é a única coisa que dá sentido a cada uma de suas ações de governo. Se Lula participou da criação dos BRICS, ele o destrói. Se Lula foi a alma da Unasul, ele a destrói. Se Lula investiu e criou várias universidades, ele as hostiliza e delas retira cargos e recursos. Trata-se do desmonte sistemático da herança do lulopetismo, que faz seu guru da Virgínia espumar de ódio. Ele pouco está se importando com reforma da Previdência, pelo seu gosto não a fazia, como confessou candidamente. Isso Lula também fez e mesmo assim não agradou o mercado, que sempre quer mais. Só tem graça acabar com o que o PT construiu: os ministérios, as conselhos nacionais, a legislação trabalhista e sindical, as políticas sociais. Atacar os movimentos sociais, entregar as empresas e bancos públicos, reforçadas e valorizadas na administração do PT. Por isso mesmo se dizendo um patriota, um homem nacionalista, entrega a nação porque o PT foi nacionalista e não ser diferente não tem graça. Trata-se de ódio partidário, ideológico, de classe, ódio de medíocres contra governos que contou com muita gente brilhante e capaz. É a revolta dos extremamente fora de lugar.

Daí porque o fato de postar uma foto escatológica nas redes sociais não deveria causar tanto espanto. Estamos diante de um governo de gente que, durante muito tempo, se sentiu uma excrescência, um resto, uma sobra, um erro, uma abjeção. Qual a surpresa de que essas pessoas sintam atração pelo dejeto, pelo excremento, pelo bizarro? Seja quem for que tenha encontrado e enviado ao presidente aquela cena, buscando com ela resumir o que seria o carnaval, os blocos carnavalescos, que vinham mandando sistematicamente o presidente se utilizar do orifício por onde sai as fezes, é inegável que deseja e goza com a visualização de tais práticas sexuais. O presidente ferido no lugar que parece mais o preocupar, dada a sua obsessiva retórica homofóbica, (orifício que também não sai da boca de seu guru, especialista em cunilíngua), partilhou numa rede social oficial da presidência a cena, simbólica do que é seu governo, uma cena escatológica e de mal gosto. Num país sério, num país não carnavalesco e não carnavalizado, esse gesto teria lhe custado o cargo, por absoluta falta de decoro e respeito pelo lugar que ocupa. Mas se falta de decoro fosse motivo de alguém estar fora da vida pública, o deputado Jair Bolsonaro há muito teria sido cassado pelos pares e condenado pela Justiça. Que surpresa pode haver no fato de que alguém que fez da falta de decoro seu ganha pão de fama e notoriedade, partilhar imagens indecorosas? Se Bolsonaro chegou a ser o mito tendo comportamentos imorais e abjetos em toda sua carreira, qual a surpresa do mito fazer do mijo sua mensagem de reinado de Momo? Do mito ao mijo não houve assim tão grande transformação. Que espanto pode causar uma excrescência veicular em nível nacional um ato de excreção? Se mais de um terço da população do país foi às urnas para depositar seu vômito de raiva, ressentimento de classe, de raça, de gênero, de condição sexual e religiosa, se fizeram da hora de votar um momento de dejeção de seus desejos de morte, de violência, de vingança, de domínio, de exploração, de escravização, de distinção, qual o espanto que aquele que elegeram faça do dejeto a sua mensagem e efígie pública? O detalhe da ignorância sobre o significado da expressão “golden shower” ainda torna mais simbólica a cena partilhada de um governo que não só pratica mas comemora a ignorância e a desinformação. A chuva ou o banho dourado caiu como uma luva para exprimir o envolvimento do mandatário da nação com coisas muito mais aparentadas do submundo, do esgoto da sociedade: suspeita de ligação com as milícias, vínculos com os matadores de Marielle Franco, envolvimento no laranjal do PSL, uso de caixa de dois na campanha eleitoral, uso de uma rede internacional de difamação contra adversários, montagem de grupos de extrema-direita armados, etc.

Estamos vivendo um momento de privação, de inexistência, de negação do que é ter um governo, uma administração, do que é ser um presidente da República. Todas as ações de governo se regem pelo acabar, tirar, destruir, diminuir, cortar, extinguir, impedir, estamos no governo em que imperam os conceitos e palavras iniciadas pelo prefixo ex. Um governo que tudo o que promete é a privação, a negação, a inexistência, um paraíso para aqueles que dele não precisa, um inferno para aqueles que dele dependem. No governo da excomunhão dos que não rezam por suas crenças ideológicas e teológicas, teremos ao final um país esgotado, uma população exangue, de onde se precisará exumar a alma e o corpo destruídos por esse ataque das forças da extinção e da morte. É preciso que as forças vivas e da vida resistam e se coloquem no caminho de todo esse excremento que ameaça nos afogar e naufragar. Não podemos deixar que reduzam esse imenso país à condição de latrina dos grandes interesses do capital internacional e de seus agentes indecorosos.

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