Por Max Medeiros, especial para a Agência SAIBA MAIS
O mito: “De onde vem esse negócio?” Sempre foi uma questão que me vinha à cabeça quando pensava sobre o chouriço. Pensei em escrever esse texto introdutório de muitas formas, e todas elas começavam com uma ligação telefônica para a minha amiga carnaubense, cientista social e professora Maria Isabel Dantas, a maior pesquisadora do chouriço do Brasil. Maria Isabel produziu diversos artigos e ensaios acadêmicos sobre o assunto, incluindo sua tese de doutorado “O SABOR DO SANGUE: uma análise sociocultural do chouriço sertanejo”, defendida em 2008 no curso de pós-graduação de Ciências Sociais pela UFRN.

Além disso, ainda escreveu livros sobre a temática da alimentação sertaneja, incluindo o belíssimo “Comida da Terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó” em parceria com Julie Cavignac, Muirakytan Macêdo e Danycelle Silva. Logo, passou de interlocutora à entrevistada, para o engrandecimento deste artigo.
Há uma série de mitos e desencontros que rondam o surgimento do chouriço, como ocorre comumente com as comidas “anciãs” de nossa cultura gastronômica. Tenho dito em outros espaços verbais, que a gastronomia sertaneja, e aqui me atento à gastronomia sertaneja potiguar, é uma cozinha de adaptação, isso se intensifica ainda mais quando tratamos da região do Seridó. A colonização dessa região do estado foi feita inicialmente pelos ditos Cristãos novos, judeus afugentados por uma inquisição anacrônica da Península Ibérica.
Imaginem comigo o que era esse sertão do século XVIII, aquele que Oswaldo Lamartine chamou de “Sertão do nunca mais”. Terras continentais, a perder de vista, um riacho aqui outro acolá, ainda sem os açudes que catalisaram a desertificação. Um local perfeito para se ausentar dos debates carolas que sufocavam os povos não cristãos de Portugal.
Assim pensou Caetano Dantas Corrêa, um português, que veio fazer a vida por aqui nesses meados de tempo. Caetano teve uma penca de filhos, e colonizou uma grande faixa de terra na região do Seridó, talvez não imaginasse que uma de suas fazendas, a “Carnaúba” , seria no futuro uma cidade que carregaria seu sobrenome.
Caetano acertou no quesito da colonização e errou em achar que conseguiria ser esquecido pela Igreja. O arcebispo de Olinda, provavelmente Dom Francisco Xavier Aranha, sabendo que a região estava sendo colonizada por cristãos novos, solicitava que padres saíssem em uma romaria do impossível pelos sertões adentro, montados em burros, no intuito de fiscalizar as práticas religiosas dessas pessoas, obviamente esses “espiões” da igreja transmutaram as suas missões em missas, batizados e evangelizações.
Esses padres que tinham um poder quase de delegados traziam nos lombos dos jumentos um alento de integralização à civilidade bem como um medo antigo de seus julgamentos. Daí provavelmente surge o “Corre menino que lá vem a burrinha do padre!”, frase dita para deixar as crianças do sertão com medo, quase um “homem do saco” dos tempos passados. Sabendo que em breve chegaria o dito padre e sua comitiva, Caetano solicita que a cozinha da casa sirva comidas tidas como não judias, para que a sua cristandade não fosse questionada de forma alguma.
Porco e sangue são alimentos proibidos, impuros ao rito judaico. Então foi servido porco e chouriço. Diz-se que assim o chouriço foi inventado ali, na cozinha seridoense de um portugues fugido da perseguição contra os judeus da europa, com o intuito de reafirmar sua opção (obrigatória) ao cristianismo perante à igreja católica.
Mas será mesmo que foi assim? Alguém simplesmente teve uma epifania e disse no meio da conversa, provavelmente tensa que anunciara a vinda da burrinha do padre, “Já sei! Vamos misturar tudo que tem na cozinha com rapadura e sangue de porco.”? A consistência dessa versão se esvai no momento da “invenção”. Como diria Lavoisier, o francês, “Nada se cria, tudo se transforma”.
Volto à questão da cozinha de adaptação, Maria Isabel me diz no telefone que a provável “ancestral” do chouriço são as “papas de moado” e não a morcella, como afirma Câmara Cascudo. Aqui há uma confusão sinonímia, semântica, que incidiu sobre a história da origem do doce. Morcella é um embutido de sangue de porco, que em algumas regiões é conhecido como chouriço, por isso no sul provavelmente se te oferecem chouriço, virão com uma linguiça escura feita de sangue e especiarias. A morcella pode ser produzida salgada e também doce, ou servida com mel.
A região de Figueira da Foz foi um centro de navegação nos séculos da colonização e é de lá que vem as papas de moado, um doce preparado com farinha de trigo, açúcar, especiarias, nozes, banha e sangue de porco e tradicionalmente servida no natal. Era feita a muitas mãos, geralmente por criadores de porcos e distribuída entre a comunidade.
Então, o velho Câmara Cascudo que me perdoe, mas tenho que concordar com Maria Isabel, faz muito mais sentido que o português Caetano Dantas e seus criados tenham adaptado às “papas de moado” para a realidade local e aí sim foi concebido o chouriço doce. Nesse exercício histórico, como diria o saudoso Muirakytan Macêdo, podemos dizer que o nome vem de um canto e a inspiração gastronômica de outro.
A partir daqui, trago os relatos da entrevista exclusiva que fiz com Maria Isabel sobre o porco, o abate, o sangue, a receita, a partilha, os símbolos e o futuro do chouriço.
O PORCO
O porco, “é um animal de criação familiar que traz consigo uma série de preconceitos históricos, creio que devido à sua posição na dieta judaica que não permitia o seu consumo, porém, mesmo se tendo também essa ancestralidade no sertão é relativamente comum o consumo da carne suína. Como no sertão a escassez de alimentos é uma realidade, nada se estraga, então a própria criação do porco é algo comunitário. O lixo do sertão é seco, tendo em vista que o lixo orgânico é geralmente recolhido nas casas para a “lavagem” (comida) dos porcos de algum vizinho criador. O que também influencia na sociabilidade de um futuro e provável chouriço. Sempre se guarda uma latinha para aquela família que contribuiu com a alimentação do porco”, comenta Maria Isabel.
O ABATE
O abate do porco escolhido, quando criado em casa, segue um rito quase de consagração do animal, esse é o momento em que tradição, vida e morte, se tornam praticamente simbióticas. A divisão de tarefas envolve um grupo considerável de pessoas.
“A ética do abate é levada a sério no sertão. Para isso, as facas devem estar devidamente amoladas e prontas para trabalharem. Primeiro uma machadada na têmpora do animal o deixará insensibilizado (desmaiado), depois o carrasco do bicho, experiente, enfia a faca no pescoço de forma a chegar no coração, para que o sangue não se perca de forma alguma e de fato leve o porco a óbito, assim se dá o expurgo do sangue e da vida. Em seguida, alguém que seja da confiança da mestra do chouriço é o responsável por aparar o sangue. É feito dessa forma, com o machado porque com tiro o sangue do animal se espalha na carne e muda o sabor totalmente. O estresse influencia nisso”, me conta Maria Isabel.
O SANGUE
O sangue, parte fundamental do feitio do chouriço, é “extremamente perigoso, ele que determina o que tá vivo ou não. A presença do sangue no chouriço é a transformação da natureza em cultura, como já escreveu Lévi-Strauss. O temor e o respeito em relação ao sangue talvez traga consigo o nosso medo e respeito em relação a nossa falibilidade” me diz Maria Isabel, e continua “ antigamente se fazia o chouriço geralmente nas casas que havia criação de porcos, então o sangue vinha dos porcos do terreiro. Hoje em dia geralmente se consegue com um marchante de confiança, pois assim sabemos a procedência do sangue, não deve-se confiar em qualquer pessoa, pois a escolha certa determina o sucesso do doce. Posso dizer que há hoje em dia uma terceirização do sangue, principalmente devido ao êxodo rural, que desligou as famílias das criações do quintal”, conclui.
O CHOURIÇO
O chouriço “é um processo complexo. Depois de aparar o sangue do porco, tem que esfria-lo mexendo, algumas mestras do chouriço colocam pregos ou algodão no intuito de não talhar o sangue. Tem que ter resfriamento do sangue, por que daí se tira a vida dele, não pode colocá-lo quente com vida dentro da panela” comenta Maria Isabel. A sua mãe, Dona Angelina Dantas, de 85 anos, nascida e criada em Carnaúba dos Dantas, é mestra de chouriço e o produz há 50 anos, e é dela a complexa lista de ingredientes que apresento a seguir: 4 litros de sangue de porco em estado líquido; 4 litros de banha de porco em estado líquido; 100 rapaduras de cor escura de 500 gramas cada; 100 xícaras de farinha de mandioca peneiradas; Leite (coado) de 20 cocos maduros de tamanho médio; 8 quilos de castanha de caju assadas e moída;, 1 quilo de canela moída; 600 gramas de cravo moido; 1 quilo de erva-doce moída; 400 gramas de pimenta-do-reino moída; 1 quilo de gengibre moído; 30 gramas de sal e 20 litros de água potável para fazer a garapa (em média).
Como pode se observar, tudo que ronda e envolve a preparação desse doce é muito singular. Sobre essas singularidades, Maria Isabel comenta: “É uma atividade predominantemente feminina, as mulheres se fazem mestras do chouriço depois de muito tempo de acompanhamento de outras mestras. Há uma divisão sexual e de gênero no preparo do chouriço, também há trabalho cooperado. Se percebe claramente a divisão de tarefas.”
“Geralmente o homem abate o porco, encontra a lenha e mexe o chouriço, embora a mestra tenha um controle da colher de pau. Há ainda o tabu da menstruação, as mulheres se estiverem menstruadas não podem mexer. Acredita-se que a menstruação é um elemento contaminante, e ao ser colocado em algo delicado como a comida pode ser tido como poder destruidor ou maléfico. O que reforça a ideia de enraizamento do machismo dentro da sociedade sertaneja.”
Maria Isabel ainda comenta que: “levam dias para fazer um chouriço, preparar temperos, compras, moer temperos, antes teria que assar a castanha, existiam permutas dos ingredientes. Um dava castanha, um dava coco, um dava rapadura. uma espécie de cozinha de comunhão, por exemplo, durante muito tempo a minha mãe tomava o tacho emprestado. É um tacho específico. Não se encontra fácil. Poucas pessoas possuíam esse utensílio. As pessoas tomam emprestado e devolvem por agrado um pouco de chouriço. Havia um planejamento. A lenha de jurema seca é a mais indicada pois tem brasa boa e pouca fumaça. O chouriço é uma ciência. “
O FUTURO
Por fim, sobre o futuro do Chouriço, Maria Isabel me fala que: “Bem complicado, por dois motivos, à priori, o alto custo da produção, é uma comida que requer uma quantidade significativa de ingredientes que hoje são em sua maioria comprados, tirando o sangue. As secas e a desertificação acabaram com os cajueiros do sertão, o que deixou a castanha muito cara. Um segundo ponto é que a educação patrimonial não vem sendo feita, tendo em vista a simbologia e o imaginário que vem crescendo em relação ao sangue.
No sertão é comestível com restrições. As novas gerações vão criando um imaginário de distanciamento, que possibilitam uma reflexividade sobre as comidas. Elementos da sanitariedade também mexe com o imaginário. Penso que uma educação patrimonial não vem sendo implementada por falta de interesse por parte de estado, sociedade, escola e sociedade civil. Problemas de comportamento alimentar surgidos sobretudo com os processos de reflexividade como o que envolve o consumo de sangue vem contribuindo para a rejeição do chouriço pelas novas gerações.Os discursos dietéticos também tem impactado negativamente na preservação do chouriço uma vez que ditam ser ruim o consumo de doce.”.
A comida é um ato que a muito se perdeu da exclusividade de manutenção fisiológica. A cultura alimentar de uma sociedade é o alicerce desta e suas simbologias sustentam as relações sociais dos indivíduos que estão inseridos nesta sociedade. Assim é morcella ibérica. Assim são as papas de moado da Figueira da Foz. Assim é o chouriço de Carnaúba dos Dantas.