Gentileza e gente lesa
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Gentileza e gente lesa

11 de abril de 2018
Gentileza e gente lesa

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Um amigo pedalava pela Via Costeira no espaço reservado para ciclistas que fica sobre a calçada. Nenhuma possibilidade de desviar de um obstáculo que se interpusesse entre ele e o seu caminho sem que fosse preciso descer para o asfalto, por onde passam veículos em alta velocidade, ainda mais se este obstáculo fosse justamente um carro atravessado por toda a extensão da calçada. O ciclista parou sua bicicleta e, ao perceber que haviam duas pessoas dentro do veículo, argumentou: “Olá. Você poderia tirar o seu carro da ciclovia? Preciso passar e o tráfego está muito intenso para que eu possa ir pelo asfalto. É perigoso pra mim.”

O ocupante do veículo respondeu, mas não no mesmo tom de voz, preferiu gritar de volta palavras que, apesar de proferidas em altos brados, ele não conseguiu distinguir. Para não transformar aquele fortuito acontecimento numa discussão e, pior, numa briga, meu amigo procurou manter o mesmo tom de voz e seguiu argumentando racionalmente: “Veja bem. Eu não quero lhe prejudicar. Só quero que você saia da ciclovia. Você não pode parar o carro aí.” O motorista respondeu novamente, de forma ainda mais colérica, vociferando, gesticulando muito e intensamente. O homem sobre duas rodas, por estar soprando uma forte ventania, novamente não distinguiu bem as palavras que o interlocutor dizia, mas pôde vê-lo melhor e percebeu que era um sujeito de uns 30 e poucos anos e que a seu lado estava uma mulher, provavelmente casada com ele ou noiva ou talvez namorada. Em meio à gritaria conseguiu escutar algo que lhe pareceu a palavra “quebrado”. Então, resolveu perguntar: “Seu carro está quebrado? É isso? Quer que eu ajude a empurrar pra ver se ele pega?”

Foi então que aquele com as mãos ao volante fez um ensurdecedor silêncio. Olhava sério e intrigado para o outro, o estranho, o desconhecido que, em que pese o flagrante e crescentemente agressivo conflito entre eles, lhe ofereceu prontamente ajuda. Com um semblante incrédulo, após encarar o emissor da proposta e a situação por alguns segundos, sinalizou positivamente com a cabeça. Quis dizer a palavra “quero”, mas provavelmente não conseguiu devido ao choque.

A mulher que estava no banco do passageiro assumiu a direção. Os dois homens empurraram o carro enquanto ela dava a partida. Sem que fosse preciso muitas tentativas, o veículo pegou rapidinho. O motorista sorriu amarelo e agradeceu. A mulher/noiva/namorada lançou sobre ele uma expressão de enorme reprovação. Na verdade, ao que parece, ela queria matá-lo mesmo.

O meu amigo, sobre a bicicleta, seguiu seu caminho até o trabalho. Na garupa, levava a certeza de que tinha feito a coisa certa e evitado um desentendimento que poderia ter evoluído para ofensas mútuas ou, pior, agressão física em razão de um motivo banal que poderia, e foi, contornado com uma boa e conciliadora conversa entre as partes.

Quanto ao motorista, espero que tenha aprendido uma valiosa lição. É de bom tom conversar, explicar, buscar o entendimento, antes de partir para o caminho do confronto. Uma disputa pautada pelo nervosismo poderia até lhe favorecer no final, mas certamente lhe causaria danos, fosse o rancor das agressões sofridas ou marcas físicas de uma eventual luta corporal. Encontrar o equilíbrio mental numa situação de pressão extrema é o que separa a gentileza da gente lesa.

***

Outra vez foi uma amiga que vivenciou um caso inusitado. Ela estava no interior de um ônibus, a caminho da escola onde dá aula, quando o coletivo foi trancado no trânsito por um veículo de passeio qualquer. O motorista do busão fez cara de que não tinha gostado, torceu a boca contrariado e balançou a cabeça de um lado a outro em flagrante desaprovação do ocorrido. Levar uma fechada no trânsito, afinal de contas, é uma das mais desagradáveis experiências de quem conduz. É demonstração da mais absoluta falta de respeito e de consideração ao espaço alheio, ao direito do outro, é uma agressão sobre quatro (ou duas) rodas, uma falta de educação extrema, de imprudência, ou até de imperícia que seja, mas uma coisa é certa: nunca é legal de levar.

O ônibus continuou seu percurso e, alguns quilômetros mais à frente, parou num ponto cheio de passageiros que levariam alguns minutos para embarcar, bem como muitos também desceriam em razão da localização estratégica daquela parada. Para surpresa do motorista e de alguns passageiros, o carro que o havia trancado havia pouco parou também, logo à sua frente. Dele, desceu um homem que veio caminhando sério e a passos firmes em direção ao ônibus. Parou ao lado da janela do motorista e o condutor do coletivo já veio esperando algumas palavras ásperas que revelassem alguma manobra do ônibus que o tenha irritado a ponto de ele ter ido à forra trancando o veículo e agora estava ali para dizer o porquê de tê-lo feito, além de complementar seu discurso com um vasto vocabulário de baixo calão direcionado ao motorista e a familiares próximos.

Porém, não foi o que aconteceu. Quando o homem que estava à janela falou, disse: “O senhor desculpe, viu? Eu fechei seu carro ali atrás. Entrei na pista sem olhar direito, calculei mal e acabei trancando o senhor. Desculpe mesmo. Tenha um bom dia e bom trabalho, viu?” E saiu.

O motorista ficou mudo de estupefação. O burburinho entre os passageiros foi intenso. Minha amiga perguntou ao motorista se aquilo já havia ocorrido com ele alguma vez. Respondeu que não, que ele tinha quase 30 anos de profissão e que nunca passara por nada sequer parecido. O homem do carro de passeio cometeu uma leseira no trânsito, mas teve a gentileza de reconhecer o erro.

***

Em comum, estes dois casos têm a expectativa pela violência (verbal ou efetiva) que sempre esperamos em situações de disputa no trânsito. É como se, quando no comando de um automóvel, cada indivíduo exteriorizasse uma personalidade mais agressiva do que o normal, defendendo seu espaço ferozmente, lutando pela sobrevivência ou por seu território instintivamente. É o gene egoísta que, ao agir sobre nós, torna-nos menos sociáveis e mais violentos. A conclusão que se pode tirar disso tudo é que a diferença entre gentileza e gente lesa pode estar por trás um volante, sentado no banco do motorista.

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