Reflexões sobre o trabalho e a precarização do SUS
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Reflexões sobre o trabalho e a precarização do SUS

9 de julho de 2022
7min
Reflexões sobre o trabalho e a precarização do SUS

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“Dizer que os homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa”

Paulo Freire

As mudanças no mundo do trabalho e suas repercussões sociais, que perpassa desde o surgimento dos movimentos fabris baseados em estruturas, inicialmente, dominantes, Fordista e Taylorista, ao contemporâneo avanço tecnológico que, por sua vez, auxilia no desenvolvimento de novas formas de exploração no campo do trabalho, refletem também no setor saúde.

O capitalismo que se entranha em todos os compartimentos da vida humana constrói e corrói os caminhos de identificação e independência dos trabalhadores nos seus ambientes laborais. Apesar da saúde pública ter um histórico de grandes lutas e conquistas para a classe trabalhadora do Sistema Único de Saúde, observamos com uma preocupante frequência o desgaste e adoecimento dos trabalhadores da saúde ao longo do tempo.

As transformações impostas pelo capitalismo propuseram experiências norteadas em diversas teorias, muitas das quais continuam presentes revestidas na seda da “flexibilidade”. A manipulação da classe trabalhadora ocorre, via de regra, pelo poder alienante dos discursos neoliberais, e desse modo, temos o trabalho como usurpador do homem, ao passo de deixar de ser uma fonte de realização, e se tornar um mero recurso de sobrevivência do qual ele se sente cada vez menos pertencente.

Uma faceta estruturante trazida por Wanderley Codo é o cerne do sistema capitalista sustentado pelas carências e necessidades, quando se busca atender parcialmente as necessidades, para que haja uma retroalimentação da sua demanda, uma vez que o atendimento à sua totalidade ameaçaria sua vitalidade.

O sociólogo Ricardo Antunes acrescenta o sentimento da massa trabalhadora: “Daí que o trabalhador só se sinta junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho” provocando a reflexão do aprisionamento de seu eu durante o trabalho. A coisificação do homem no contexto laboral no que se refere a manipulação das suas necessidades, o torna cada vez mais preso ao estranhamento, e isso faz sentido para esse poderoso sistema. É latente como estamos atravessados por estas estruturas alienantes tanto na condição de trabalhador, quanto na condição de consumidor de serviços de saúde, logo, somos o produto ao quadrado.

Além disso, o excesso de positividade visto hoje no campo do trabalho é a mostra do insucesso da massa trabalhadora em resistir a novas formas de escravidão. O estímulo constante ao fazer dar certo que quase sempre rasga o espírito humano é difundido para o consumo sem restrições daqueles que não detém os meios de produção e serviços. O trabalhador que antes era dominado pelo empregador sob rígidas regras, obediente aos tempos e movimentos, passa a ser considerado livre e capaz de trilhar seu próprio caminho profissional.

O fortalecimento das narrativas de superprodutividade e super desempenho na atualidade amplificam para a massa trabalhadora a noção de que não são mais explorados, desencapsulando, convenientemente, a grande massa quando sua consciência continua escrava desse sistema.

Para Han, em seu livro Sociedade do Cansaço, o sujeito de desempenho, aquele que não se sente mais explorado e acredita que não há mais a quem obedecer e submeter-se, se auto entende como liberto, no entanto, essa tal liberdade não é genuína, o trabalhador passa a confundir liberdade com coerção, onde ele próprio se torna seu algoz.

Como apresentado, o capital engenhosamente se oxigena através de manobras cujo propósito é manter-se lucrativo. Há décadas a classe trabalhadora tem sido experimentada em ensaios de massa sem sequer se dar conta. O termo precarização vem sendo amplamente discutido na gestão do trabalho em saúde, embora não seja novidade, existe uma preocupação com os excessos.

Neste sentido, cabe alertar os efeitos da precarização no setor saúde, onde se têm diversas formas de contratação. Como exemplo, vale o exercício pensarmos que numa unidade hospitalar pública no Brasil podemos encontrar inúmeros tipos de vínculos na composição da mesma equipe de trabalho, tais quais: servidores estatutários, servidores contratados temporariamente, contratados por empresas terceirizadas, cooperativas médicas, organizações sociais, vínculos celetistas, entre outros.

A priori, todos os colaboradores deste hospital fazem o serviço funcionar, embora, com um olhar mais atento, seja possível constatar diferenças de valores de remuneração, cargas-horárias, direitos trabalhistas, capacitações para o exercício da função e etc. para as mesmas categorias profissionais. Com um olhar ainda mais atento, é possível identificar, ainda, trabalhadores exaustos devido ao acúmulo de vínculos para conseguir sobreviver, trabalhadores com tempo de aposentadoria mas que não podem fazer gozo, trabalhadoras mulheres com jornadas ininterruptas revezando-se entre as atividades remuneradas e do trabalho reprodutivo doméstico.

Não obstante, no mesmo hospital podemos encontrar algum profissional que esteja alheio às situações precarizadas acima exemplificadas, apesar de que, é quase sempre raro achá-lo, especialmente quando buscamos nas categorias profissionais não médicas.

Evidente que a remuneração e a garantia de direitos essenciais para o trabalhador poder viver com o trabalho e não para o trabalho, tem um peso significativo na sua humanização. Todavia, a precarização não ocorre apenas com base na fragilidade dos vínculos de contratação, outros elementos contribuem para o enfraquecimento das relações de trabalho na área da saúde, a exemplo de ambientes de trabalho que não estimulam a criatividade e a iniciativa do trabalhador, a ausência de colegiados e espaços democráticos de gestão que possam ouvir as demandas dos trabalhadores, processos de trabalho mal definidos e ausência de planejamento estratégico, pressão por cumprimento de metas inexequíveis, entre outros.

O mundo do trabalho atravessa todas as pessoas, independente de idade, gênero, identificação sexual, cor, ideologia. Cabe aqui um parênteses sobre a difícil inserção e/ou manutenção no mercado de trabalho daqueles das pessoas pretas, pobres, lgbtquia+, com necessidades especiais, de povos ciganos e de comunidades tradicionais, que lutam por espaço e qualificação para ocupar funções e terem remuneração justa oriunda de seu próprio trabalho.

Precisamos pensar sobre o contexto histórico e político da evolução do trabalho, sendo estes essenciais para a compreensão dos formatos postos. A proposição de mudanças estruturais só ocorrerá se houver interesse da coletividade, o chão de fábrica precisa resistir e reexistir. O debate do trabalho é inesgotável, são muitas nuances e influências presentes dentro e fora dos muros institucionais, e o que são esses muros senão os nossos lares? A gente não é só trabalho, a gente precisa ser gente, como canta Caetano Veloso “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

No campo do trabalho em saúde, analisar os cenários requer uma cautela ainda maior, considerando os ataques que o Sistema Único de Saúde vêm sofrendo, seja no congelamento de recursos públicos, desde o golpe presidencial de 2016, à aprovação da reforma trabalhista que retira direitos e garantias dos trabalhadores. Em cinco anos assistimos uma regressão sem precedentes na história do Brasil.

Se este impensável cenário que estamos hoje se mantiver, como estará a saúde dos trabalhadores da saúde nos próximos anos? Como garantir a manutenção e ampliação dos serviços públicos de saúde vendo os direitos dos trabalhadores escorrendo pelo ralo? Como daremos conta de múltiplos vínculos e jornadas de trabalho para ter o mínimo?

São perguntas que eu não sei responder, provocações inquietantes que trago para vocês hoje.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no Mundo do Trabalho - 11° Edição, 2006, Unicamp.

ANTUNES, Ricardo. A Rebeldia do Trabalho. Trabalho e Estranhamento - 2º Edição, 1996, Unicamp.

ANTUNES, Ricardo. Século XXI: Nova Era da Precarização Estrutural do Trabalho. Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008.

CODO, Wanderley - O que é Alienação, Editora Brasiliense, 1991.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

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