Arrancaram minha árvore
Natal, RN 19 de abr 2024

Arrancaram minha árvore

12 de fevereiro de 2023
5min
Arrancaram minha árvore

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As áreas centrais das cidades tendem a sucumbir? O que antes era corda de gente, de lojas, de negócios, vai se esfarelando ao toque da sinfonia do salitre. Seriam as construções centrais uma espécie de idosos feitas de cimento, pedra, cal e fachadas, aos quais a sociedade não pode esconder debaixo dos tapetes dos abrigos como fazemos com os idosos de carne, osso e memória?

Esses dias tive que ir a Mossoró, como sempre às pressas. Minha analista me diz que é uma “questão” minha essas passagens “papa-léguas” que faço por minha terra natal. Dessa vez disse à mamãe que queria ir ver como estava a casa dos meus bisavós, Seu Massilon e Dona Rita, a casa a qual toda a minha família tem lembranças, tanto os que aqui estão, quanto os que aqui não estão mais.

A situação da casa e das ruas do entorno do Centro me deixou “baqueado” (não consigo verbalizar muito bem o adjetivo verdadeiro). As casas da rua da estrelinha quase todas à venda, ou abandonadas. As moradias onde antes haviam conspirações abolicionistas no século trasado, onde houveram saraus e discursos, sucumbiram, tombaram, foram ao chão e não teve cavalheiro algum que viesse ceder uma “mão”.

Algumas são só fachadas com uma placa tímida em alusão a algum revolucionário que ali morou, outras são somente estacionamento. Todas tomadas pela frequente agonia bucólica de um domingo à tarde no centro de Mossoró. Eu me mudei mais de 30 vezes (sim, verdade, e verdade também que perdi a conta), e depois de ser discípulo dos sabores ilusórios de ir morar só, cada mudança dessas foi para mais distante do Centro e da Rua da Estrelinha.

Visitar a rua em que todos nós crescemos, vê-la ali, se arrastando e lutando para ficar de pé, rachada, eviscerada, golpeada pelo tempo e pelo esquecimento, certamente me fez lembrar da minha sanha em sempre ir para mais longe.
Seriam então as lembranças dolorosas e felizes (que também se tornam dolorosas) os motivos de minhas partidas cada vez mais prolongadas e os meus retornos cada vez mais espaçados?

Em nossa família quando nascíamos, meu velho bisavô plantava uma árvore que iria crescer junto com a gente, era a “nossa árvore”, a minha curiosamente era uma mangueira (https://saibamais.jor.br/2021/04/eu-te-odeio-manga/).

Quando desci do carro, eu e mamãe calados olhamos para a casa e baixamos a cabeça, como se meus bisavós estivessem nos seus devidos locais de costume, nos esperando, como se a gente pedisse a bênção a casa. “Arrancaram minha arvore”, eu disse, e mamãe respondeu “Deu cupim, tiveram que derrubar”. Deu cupim, tiveram que derrubar. Deu cupim, tiveram que derrubar.

Vou a Mossoró sempre que necessário, ou seja, muito pouco, as visitas e reuniões familiares fazem o caminho inverso da BR-304, mas sempre que é necessário eu faço o sempre possível para não ir ao centro, as rachaduras, os estacionamentos e os cupins, os desgraçados dos cupins, fizeram questão de lembrar-me os meu motivos.

Assim como “Minas não há mais”, “Mossoró não há mais, Max, e agora?”. Um amigo, me disse que “se você esquecer Mossoró, Mossoró irá te esquecer”. A cidade, as pessoas, estão lá, segue sendo a terra de Padre Alfredo Simoneti, de Santa Luzia e também a minha cidade.
Mas você que me lê agora, entende o que eu digo? “Deu cupim, tiveram que derrubar”. Nas aulas, nas reuniões familiares, nos ritos de passagens, nos livros, não há quem ensine o que fazer com essas memórias em brasa que nos queima a cada mínima brisa ou vendaval.
Já fingi que não pensava na rua da Estrelinha e em todas as peraltices e traquinagens que eu e “os meninos” fizemos, como conhecíamos a maioria das casas do entorno, como as enchentes mudavam os nosso cotidianos.

Como a gente assombrava os sonos de depois do almoço no período junino. Como saíamos em procissão para a escola. Das brigas, dos amores, dos chaboques arrancados, das infinitas “abença?” ao passar pelas calçadas. Das descobertas adolescentes no trapiche.
“Vou na Cobal”, “Você quer que eu vá com você?”, “Não não, pode deixar”. E eu penso: “Bidú me falou que tá foda, tudo meio estranho. Ou simplesmente tivemos medo do salitre também nos consumir e fugimos? “

Quando chego dou graças aos deuses que Ceição ainda segue firme em sua banquinha, logo na entrada uma foto do morto da casa, um filho. Peço uma buchada, vejo o trânsito teimosamente frenético das pessoas formigas na cobal, me empanturro com uma cajuína. Uma buchada e uma cajuína, um clássico pessoal.

Dou um abraço em Ceição, que logo logo começa a falar do seu filho. Pago, abraço, vou embora. Tem um ônibus sem ar condicionado me esperando. Olho a mesma 304 que me trouxe, agora me levando mais uma vez, porém sem me deixar esquecer que : ”Deu cupim, tiveram que derrubar”.

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