Observar os ventos que balançam os oitis da Jundiaí é um dos prazeres sutis do meu cotidiano das últimas semanas. Os ventos que afastam as brumas invisíveis, mas não menos densas. Os mesmos ventos já anunciam as águas de março que finalmente fecharão o verão e lavarão as calçadas, calhas, telhados, canalhas, garagens e corredores.
Estava eu, nesse momento de deleite quando me aparece Terto dizendo que vai vender um quadro de Ivo Maia a uma pessoa qualquer. Eu, olhando e ouvindo de soslaio, logo digo “Ome, se você esperar até o final do mês, eu quero ficar com o quadro”. Não teve outra.
Vou saindo com o “bicho” na mão e uma figura me aborda e pergunta “O que é isso?”, “Um quadro de Ivo Maia”, “ Vixe, uma viagem. É a mente dele?”, eu penso com meus botões e acho que não há definição melhor para um quadro psicodélico de Ivo, “sim é a mente dele”, eu respondo.
Ivo foi um dos ventos que rondavam a Jundiaí e que foi assolado pela pandemia. Ivo e sua mente inquieta, tão inquieta que tinha que ser impressa, desenhada, verbalizada, pintada em caleidoscópios e mandalas coloridas perfeitamente simétricas. Um abraço, Ivo.
Chego em casa e Bruna me pergunta onde vou colocar mais um quadro, e eu realmente não sei, mas ainda tem parede, ainda mais para um Ivo Maia descansar. Sento no sofá e fico olhando para aquela tela de 2008, a mente de um artista potiguar está dançando para os meus olhos. “Como uma pessoa consegue fazer um negócio desses?” , me pergunto.
Me lembrei da cena final do filme “O menú” de Mark Mylod, em que chefes de cozinha de saco cheio em fazer arte e vê-las virarem gases, excrementos e arrogância, transformam o salão em um grande prato montado onde os clientes são parte do cardápio (para mim, que sou suspeito, é o melhor filme de 2022).
A montagem do prato é uma espécie do pedaço da mente de quem o faz? Eu acho que sim. Aqui em casa, no meu laboratório, sempre capricho na montagem dos pratos que minhas cobaias comem, e o meu eu só coloco em uma cumbuca e como de qualquer jeito. Vejam bem, são as mesmas comidas, uma delicadamente montada e outra (a que eu como) simplesmente estão ali.
A mente nos prega peças e nos arma ciladas, isso é fato, mas não é minha especialidade. Sim, também há o clichê de que a gente “come com os olhos”. Sim, é verdade, inclusive é uma defesa ancestral de nosso cérebro que diz “Ei, essa comida tá feia, CORRA!”. Mas eu estou cada vez mais convencido que o amor que todos falam sobre o feitio das comidas também mora na sutil arte da montagem dos pratos. Assim como os quadros de Ivo, de Miró, de Dalí, de Masson, a montagem é a mente de quem faz o prato.
E aqui eu não falo somente de montagens complexas, acadêmicas e cheias de pompa, que também têm seu valor. Mas, eu falo da beleza que mora em galinhas ou carneiros torrados finalizados com os salpiques de cheiro verde, ou então aquela belíssima cioba frita da beira de praia que vem na caminha de cebola e tomate em rodelas distribuídas igualmente em toda a travessa, ou em um arrumadinho com todos aqueles charques, calabresas e tripas sequinhos e cortados de forma pequena, delicada e singular.
Minha gente, aquilo também é arte, a comida é viva, inquieta, materna, e sua ausência é austera e dolorosa. Nós e nossa complexa psique se traduz alí também, nesse ato de comer, de fazer comida e até do prazer em ver outrem se alimentando. Um dos maiores prazeres de quem cozinha é ver o outro comendo a comida que este fez. Com a comida tudo pode acontecer, sem ela, travamos e o padecimento é certo.
Da próxima vez que chegar à sua frente pratos montados, bem postos, mesmo que seja aquela flor de tomate meio brega, se lembre que ali está impressa a personalidade, a vontade, o desejo de servir a você algo, alí tá a mente e as mãos de um ou uma artista.