Microclima particular
Natal, RN 25 de abr 2024

Microclima particular

4 de fevereiro de 2023
4min
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 Continuando na linha tênue da paz inquieta de minha nova década e no desafio de encontrar lacunas temporais para fazer essa coluna acontecer, estava eu dirigindo entre uma agenda e outra, para te buscar entre uma agenda e outra. Quando de repente, como um raio, me dou conta de você, sim, de você.

Será que serei brega, clichê, enjoado demais, em escrever sobre você ou sobre nós mais uma vez? Claro que me importo com quem me lê, claro que espero que as pessoas gostem do que estou escrevendo. Mas, roubando um pouco de Caetano,  “escrever a que será que se destina?” Não aprendi a bela arte de escrever coisas que não sejam sobre o que eu vivo. Então, os adjetivos empregados no jugo dessa crônica são consequentemente sobre mim, cronista de mim mesmo.

Dou graças três vezes ao universo que insiste em me lembrar que o nosso encontro é arteiro e artístico, do tipo que não mede esforços em compartilhar os dias, os discos, cinemas e artes visuais, mesmo quando estamos a centenas de léguas de distância.

Provável que isso alimente o motor que nos move cotidianamente. O combustível energético que nos une em cada instante, seja de sabores ou de dissabores, nas descobertas, nos perdões, toques, emoções e gestos, que me fazem perceber que dividir a vida com alguém consiste em edificar um microambiente do reino fungi que deve ser cuidado com muitíssimo esmero e equilíbrio. Fungi pelo fato de ser belo, pelo fato de ser vida, complexo que se prolifera e se reinventa, que pode alimentar, entorpecer, consumir e castigar.

Nesse tempo em que nossos olhares se entendem mesmo que mudos, nesse tempo em que escolhemos dividir a conta da Cosern, há imagens que meu espírito fez questão de tatuar em seu existir ectoplasmático.

Como no dia em que nos despedimos em Confins, onde nossos corpos quase não se despregavam um do outro, mesmo com minha mala de mão pesando uma tonelada por causa daquelas pedras-sabão que me abestalhei em trazer para nossa casa. Como no dia em que Vovoinha te ensinou a receita misteriosa, cobiçada e secreta do pão-de-mel dela. Como nos olhares de carinho que você tem com o menino Miguel.

Como no dia que você chorou copiosamente em nosso sofá vendo Milton Nascimento frágil cantando Mercedes Sosa no último show dele. Como no dia que vimos Chico cantando “Meu guri" e eu chorei copiosamente, e você só segurou minha mão. Como no dia em que nós dois choramos copiosamente pela fome açoite e pelos povos originários açoitados. Como no dia em que descobrimos Cláudia Andujar,  Miguel Rio Branco e Hélio Oiticica.

Como naquele abraço forte de dez minutos que demos, eu, você, Débora e Terceiro, em nossa sala, no dia que Lula ganhou a eleição. Engraçado como poderíamos escolher sermos alheios, mas há algo poderoso que nos puxa para o “se importar”. Talvez seja aquela mesma força da gente que “insiste em ter fé na vida” como diz-no Bituca, ou a fala de Seu Fernando que nos disse que “acredita mesmo é na força do amor”.

Quartos de hotéis e noites de trabalho sempre me trazem lembretes de como eu torço para chegar logo em casa e ver seu sorriso farto para rirmos juntos dos carcarás que nos acham tolos, ou para ver suas marmotas (como você segurando a plaquinha com meu nome no aeroporto me matando de vergonha), para ver suas cerâmicas, seus pães, bolos e todas as suas satisfações.

Se um dia, os caminhos de nossas existências disserem que vão seguir por lados opostos, tudo bem, por que eu guardarei todos nossos dias em uma caixa dentro de meu corpo que terá escrito:“ Os dias mais felizes dessa vida”. Até lá sigo aqui, dançando, me embebedando  e me alimentando de nosso microclima fungi. 

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