Cledivânia Pereira: Minha primeira foto com Chico Buarque e o dia da minha maior “incompetência” jornalística
Natal, RN 26 de abr 2024

Cledivânia Pereira: Minha primeira foto com Chico Buarque e o dia da minha maior "incompetência" jornalística

30 de abril de 2023
10min
Cledivânia Pereira: Minha primeira foto com Chico Buarque e o dia da minha maior

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Estava perdida em um palácio, uma porta se abriu e Chico Buarque apareceu. Poderia ser a descrição de um sonho bobo de fã, mas esta cena ocorreu mesmo comigo. Na entrega do Prêmio Camões - no dia 24 de abril de 2023, no Palácio de Queluz, em Portugal - Chico não deu entrevistas para a imprensa. Três dias antes, na reunião de esclarecimento do evento, já havia sido dito a nós, jornalistas, que não poderíamos tietar Chico. Fui ao evento sem a mínima expectativa de conseguir chegar perto do cantor que é autor da lei que eu mais gosto de seguir: a que nos obriga a ser feliz!

Estava impactada com o discursos de Chico: ele falou do pai, do Brasil, do amor pela língua portuguesa, da Ditadura, do fosso político recente do Brasil, do sangue do açoitado e do açoitador que traz nas veias (como a imensa maioria dos brasileiros), da primeira visita a Lisboa com a peça Morte e Vida Severina (que musicou para João Cabral de Melo Neto), da Liberdade, de cheirinho de alecrim e da beleza dos cravos…

Na plateia atenta, Mia Couto (Escritor moçambicano), Carminho (Cantora Portuguesa), Pilar Del Rio (Viúva de Saramago), presidentes do Brasil (Lula) e Portugal (Marcelo Rebelo), primeiro- ministro de Portugal (António Costa), ministros, jornalistas e eu (que naquele momento era apenas uma fã - travestida de jornalista - incrédula de estar vivendo aquele momento).

Tenho vivido os últimos 10 anos ligando pontos. Nesta cerimônia de Camões - enquanto via a plateia ovacionando o artista brasileiro - liguei rapidamente três momentos importantes que vivi com Chico Buarque. Esses pontos passados me fizeram decidir rápido entre pedir uma foto de fã ou uma entrevista quando fui "encontrada por Chico nos corredores de um palácio".

A primeira foto que tenho com Chico Buarque não foi nesse encontro em Portugal e por 30 anos eu nem sabia que essa existia. Voltemos a um mesmo mês de abril, mas em 1976. Era dia 27 e eu completava seis anos, morava em uma casa num bairro pobre no município de São Bento na Paraíba (divisa com o Seridó do RN, perto da Serra de Brejo do Cruz - famosa terra de Zé Ramalho). Naquele dia, minha mãe fez um almoço especial. Galinha torrada, salada com maionese, creme de três camadas para a sobremesa e refrigerante de dois litros (era a mesa mais festiva que conhecia até então… ter uma galinha torrada à mesa era sinônimo de festa). Eu estava vestindo roupa nova - feita para o Natal do ano anterior (única época do ano em que comprávamos uma roupa nova). O vestido era copiado dos modelos do catálogo das bonecas da Estrela e tinha um avental de cambraia bordada vermelha por cima (lembrando um pouco do destino de cuidadora das mulheres).

Estava feliz. Para imortalizar o momento, uma fotografia. Ter um fotógrafo para registrar a imagem era coisa de luxo. Naquela época, havia apenas um fotógrafo na pequena São Bento… chamá-lo para uma festa era um artigo de luxo que minha mãe (dona de casa) e meu pai (vendedor de rede) não teriam dinheiro para pagar. Por sorte, o fotógrafo era meu avô… e - ao contrário das minhas amigas do pobre bairro da Sudene - eu tive toda minha infância registrada pelas lentes de Eliakim Ramalho. Nessa época, ele já estava separado da minha avó, Celita Pereira. Eu era a neta preferida dela (e ela não escondia isso). Tanto, que foi à festa-almoço, mesmo com meu avô presente - mas não se deixou fotografar por ele. Quando ela se separou, dizia que nunca mais falaria com ele. Cumpriu essa promessa pessoal.

Duas fotos eram as mais importantes nesse tipo de "reportagem": a da família em torno da mesa arrumada e a da aniversariante sentada na cama exibindo os presentes. Ganhei nesse dia a primeira boneca da Estrela. Chris… vestia calças e me despertou o desejo de não usar mais vestido de boneca. A vida me mostraria que isso pode ser definitivo na vida de uma menina. Também ganhei muitas panelinhas, um fogão elétrico (presentes bem comuns nessa época quando se esperava das meninas boas habilidades para cuidar "do lar"). Esses apelos de roupa de boneca, panelinhas e fogãozinho não funcionaram comigo.

Neste momento da vida, ainda era filha única (meu único irmão só nasceu dois anos depois). Ser filha única era uma raridade ao meu redor, onde as famílias eram numerosas. Na casa ao lado, de Comadre Rita e Chico Timbú, já havia oito crianças (meu companheiros de infância e descobertas do mágico universo dos quintais). Por ser filha única, tinha o meu próprio quarto e, de presente de aniversário, papai me deu uma cama, um guarda-roupa e uma penteadeira. Quando os móveis chegaram - na véspera da festa - , mainha decorou o cômodo com o que tinha de mais moderno: comprou revistas de fotonovela e recortou cuidadosamente os pôsteres das páginas finais impressos em papel brilhante colorido. As fotos de atores e atrizes das novelas das TVs Globo e Tupi e cantores da época foram parar nas paredes do meu palácio infantil.

Olhe com atenção a foto da cama dos presentes. Na parede, ao lado da cama, uma foto de uma pessoa - que na época - eu nem imaginava quem era. Era Chico Buarque. Naquele ano (1976), ele lançou a Ópera do Malandro… Mas as músicas de Chico - de protesto social - não conseguiam penetrar no universo de pessoas como minha mãe que travava lutas mais imediatas que a ditadura: ela lutava para criar uma filha e contra o alcoolismo do meu pai - que já dava sinais fortes de que essa guerra duraria toda a vida. Não tenho memória afetiva de músicas de Chico em minha infância… o máximo que lembro é ouvir uma música bem animadinha que falava de uma banda que passava na rua e uma moça sorria na janela… Mais tarde, toquei em uma banda marcial (na antiga ETFRN) e sempre gostei de abrir janelas para o mundo. Mas não posso dizer que isso é por inspiração de Chico (mas talvez seja).

Vim reconhecer Chico naquela foto mais de 30 anos depois… as imagens do meu aniversário de seis anos ficaram guardadas e esquecidas durante esse tempo em que fui descobrindo Chico pela vida… Quando comecei a estudar em Natal, os professores de Português e História fizeram muitas ligações das matérias com músicas de Chico (sim, tive sorte com os professores). As métricas de Construção me fizeram entender de palavras proparoxítonas; Cálice foi usada em uma aula sobre interpretação de texto e de história, a professora explicou sobre a burrice da censura dos militares, "enganada" pela genialidade de Chico. A música foi liberada. "Eles não sabiam interpretar", resumiam as professoras (em tom quase vingativo). Enfim, não tenho uma história de paixão pelo cantor Chico Buarque… tenho uma história de amor construída música a música… Posso falar que Chico é meu tradutor de Brasil. Ele resume em música um livro todo de história, sociologia e antropologia.

O segundo ponto importante da minha vida com Chico remete a uma sensação de ressurreição. Após uma cirurgia delicada - 28 dias no hospital, 10 dias sem comer ou beber água - vi que Chico faria show em Natal. Seria o primeiro encontro com aquele cantor que me fez descobrir o Brasil. Eu ainda estava de licença médica e nem poderia ter contato com muitas pessoas. Decidi, sem avisar ao médico, e fui ao primeiro "date imaginário" com Chico. Chorei do início ao fim do show. Não porque estava enlouquecida por Chico... mas porque me senti viva novamente… um sentimento de ressurreição. Estava grata pela vida, por ver meu filho crescer, por ver Chico e - principalmente - por entender o Brasil que Chico mostrava.

Nessa época, tinha a letra de "Futuros Amantes" no roda teto da sala. Queria que os meus amigos saíssem de casa com boas melodias… também já escrevi na parede a letra de "Bom Conselho". Era Chico por todos os lados… sem fazer barulho… sem fazer alarde!

O terceiro ponto dessa história que nunca vai ter fim está ocorrendo aqui em Portugal. Chico também me traduz em música a ditadura portuguesa que acabou com uma festa de "cravos" um ano após eu nascer (25 de abril de 1974) e é festejada a cada ano. "Tanto Mar" e "Fado Tropical" estão no topo da playlist da minha vida em terras lusitanas.

Ter presenciado o Prêmio Camões é uma costura de todos esses pontos de contato de uma fã com a obra de um artista. Por isso tudo, não me envergonho em dizer que pedir a foto a Chico quando o encontrei naquele corredor vazio me fez mais feliz do que ter feito uma pergunta para uma reportagem. Que eu lembre, nunca tinha deixado que os meus desejos pessoais fossem maiores que as minhas convicções jornalísticas. Deixei isso ocorrer no encontro com Chico. Até pensei rapidamente: peço uma foto ou faço uma pergunta? Pedi a foto e saí feliz!

A tão aguardada e desejada foto de Cleo com Chico / foto: Cledivânia Pereira

E a culpa é dele… me obriga a tentar ser feliz; ir para a praça começar a dançar; atravessar o mar; dançar com chocalho amarrado na canela; dar piruetas, pois o espetáculo não pode parar; me revoltar com quem joga pedra na Geni; lembrar que sempre há homens que podem me amar melhor que outros; que tudo passa; que amanhã é sempre outro dia… e ele até atualiza alguns versos lembrando que o amanhã, no Brasil, já é hoje!

E para não dizer que eu não falei sobre Bolsonaro, que se recusou a assinar o Prêmio anunciado em 2019, vou voltar ao discurso de Chico. Ele é um artista tão especial que conseguiu escrever com sentido uma frase unindo o nome de Bolsonaro à palavra fineza… só mesmo Chico. E se você não entende/gosta de Chico Buarque, você não entende nada de português, de gente e do Brasil! Há, também, no discurso dele a piada da gravata - a imprensa portuguesa não entendeu, mas os brasileiros, sim!

Obrigado, Chico, pela foto. Tive e terei (ou não) outras oportunidades de ser uma jornalista mais competente! Mas tenho certeza que, sobre você, nunca poderia ser tão boa jornalista quanto eu sou boa fã. E estou muito feliz com este lugar!

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