O SUS Poético e o SUS Pragmático: o modelo e os seus desafios
Natal, RN 27 de abr 2024

O SUS Poético e o SUS Pragmático: o modelo e os seus desafios

4 de maio de 2023
10min
O SUS Poético e o SUS Pragmático: o modelo e os seus desafios

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Por Ricardo Valentim e Thaisa Santos Lima*

O Sistema Único de Saúde do Brasil, internacionalmente conhecido como SUS, desde a grande reforma sanitária, que resultou na universalidade do direito à saúde, oficializado com a Constituição Federal de 1988, vem sendo pensado, discutido, reconstruído, reestruturado, planejado, fortalecido e executado. Durante todo esse tempo, observou-se, no SUS, o movimento de luta pela garantia do acesso à saúde pública e de qualidade para todos os brasileiros, uma saúde universal e integral. Essa é a luta do SUS poético. Todavia, essa luta não isenta a necessidade de pensar o SUS na perspectiva do orçamento – do "pé no chão", da eficiência, da eficácia, mais do que isso, o SUS da efetividade. Pensa-se em um SUS pragmático, que tem de observar e negociar os custos, olhar para a qualidade dos gastos com a saúde pública, para a relação custo-efetividade das políticas públicas de saúde e dos seus programas. Esse SUS Pragmático é o que responde pela economia da saúde, pelo controle, pela regulação do acesso aos serviços de saúde, pelo monitoramento, pela avaliação, pela governança – é o que sabe dizer não.

A pandemia de covid-19 trouxe à tona as discrepâncias e as convergências entre o SUS poético e o SUS pragmático. Ela mostrou como o SUS foi importante para garantir o acesso à saúde da população brasileira. Ainda que de forma muitas vezes precária, a população teve o acesso garantido aos serviços de saúde durante a pandemia. O modelo descentralizado do SUS se mostrou consistente e efetivo em um país como o Brasil, que esteve parcialmente envolvido por correntes reacionárias do negacionismo, do terraplanismo e do movimento anticiência. Não fosse o modelo do SUS, certamente, a tragédia brasileira teria sido ainda pior do que as 701.494 mortes por covid-19, muitas delas, evitáveis. É preciso, infelizmente, lembrar que, entre 2020 e 2022, tivemos uma liderança nacional que pregava tudo o que ia na contramão da ciência, era antimáscara, antivacina, promovia aglomerações, fazia pouco caso da vida dos milhares de brasileiros mortos pelo vírus nefasto, buscava promover arruaça na saúde pública – sendo, algumas vezes, até chamada de genocida. Pior ainda, essa liderança nacional defendia, aberta e publicamente, sem qualquer evidência científica, sem aprovação alguma de agência reguladora da área de saúde no mundo – ao menos das mais importantes, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o FDA Americano (Food and Drug Administration) –, o uso de medicamentos que eram utilizados para o tratamento de verminoses (como a famosa Ivermectina) contra a covid-19. A Ivermectina foi o bastião ideológico da loucura, do fanatismo, do movimento anticiência contra a covid-19, a porção mágica da ilusão contra a maior crise sanitária do século. Somente os fanáticos, ou os de boa fé, ou os ignorantes poderiam crer na palavra de mistificadores e charlatões que pregavam (verdadeiros propagandistas) que esse medicamento seria a salvação para conter a pandemia de covid-19.

O Brasil foi ridicularizado pela baixa qualidade do seu péssimo líder nacional, tanto que foi chamado de pária internacional. Todavia, o SUS se mostrou resiliente e responsivo, justamente por ser descentralizado. Caso contrário, o Brasil poderia ter adotado o uso de medicamentos para o controle de vermes em humanos no combate à covid-19. Caso o SUS não tivesse reagido, a Ivermectina teria sido adotada como a mais importante medida sanitária do país, o que poderia resultar em um colapso sem precedentes do sistema de saúde do Brasil, como foi visto no estado do Amazonas – que, no início, optou por seguir o negacionismo anticientífico, cravado pelas ideologias estúpidas da má-fé, da ignorância e da politicagem insana. Essa liderança adotou a Fake News como ferramenta de combate à ciência e à saúde pública, posicionando-se contra a vida. Inclusive, sem qualquer pudor e compaixão, imitava pacientes morrendo com falta de ar durante as suas lives semanais.

Existe um SUS que funciona SIM. Ele é poético, mas também pragmático. Para aqueles que não acreditavam, para aqueles que falavam que o SUS só funcionava no papel, a pandemia deixou bem clara ou bem evidente a afirmação de que o SUS não deixa ninguém para trás. O SUS poético foi o que impulsionou a luta para que todos tivessem acesso à saúde durante essa que foi a maior crise de saúde pública do século no Brasil, que é ainda considerado um país de renda média.

O SUS poético é aquele que persegue a utopia de que todos terão acesso universal à saúde de forma integral e com equidade; o que só foi possível durante a pandemia, porque é forte e descentralizado, ou seja, seu comando, felizmente, não se deixou levar pelas mãos dos anticiência, dos antiuniversidades, dos antieducação, dos antivacina e dos loucos e fanáticos, alguns paradoxalmente até religiosos. Esse SUS poético teve a coragem de lutar pelos direitos humanos, pela dignidade, pela equidade e pela justiça social no acesso à saúde baseada em evidências científicas. Ele se posicionou contra as convicções ideológicas e religiosas permeadas pela ignorância, sustentadas pelas redes provedoras de Fake News – a mentira, algumas vezes, vergonhosamente travestida pela pseudociência (o verdadeiro charlatanismo mimetizador da verdade) e até profetizada biblicamente “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O SUS poético lutou contra isso também. Para tanto, usou a ciência, não como uma verdade dogmática ou absoluta, mas como um caminho mais seguro a ser seguido, pois era pautada por estudos e evidências testadas, criticadas e validadas.

Quanto ao SUS pragmático, onde ele estava esse tempo todo? Ele estava gerenciando os problemas, muitas vezes de modo solitário e tomando decisões difíceis. O SUS pragmático é aquele que trabalha olhando para o orçamento, que sabe o tamanho do cobertor, das dificuldades, das limitações e dos desafios – o SUS pragmático, muitas vezes, é aquele que conhece a solidão do comando. A resiliência do sistema de saúde do Brasil, durante a pandemia de covid-19, é algo que ainda merece ser muito estudado. Talvez ela seja o ponto de convergência entre o SUS poético e o pragmático.

A resiliência e a responsividade ocorreram por meio do SUS pragmático, aquele que teve de decidir quais seriam os protocolos para ordenar as internações dos pacientes, quais pacientes deveriam ter acesso prioritário a um leito de UTI e quais iriam para os cuidados paliativos, tudo isso de maneira ética e sempre respeitando a vida – essas não foram escolhas fáceis, certamente, mas decisões necessárias foram tomadas. Era preciso salvar vidas, manter a dignidade enquanto houvesse vida. O SUS pragmático tem interseções com o SUS poético, trata-se de movimentos sinérgicos e, ao mesmo tempo, indutores da qualidade de vida na sociedade, que, em alguns momentos, podem entrar em conflito.

Apesar de o SUS pragmático ouvir, dialogar e receber demandas do SUS poético, há, em alguns momentos, conflitos – algo natural, quando se vive em um Estado democrático no qual o refinamento social, que se reflete na saúde pública, concretiza-se e se materializa. Esses conflitos são sempre saudáveis e comuns, especialmente quando o processo de construção é coletivo e se dá sem autoritarismo.

Esse modelo descentralizado do SUS, construído durante a grande reforma sanitária do Brasil, foi pautado pelo SUS poético, utópico, ao qual hoje o país deve muito. Nesse processo, é preciso compreender que o SUS poético impõe desafios ao SUS pragmático, os quais, atualmente, estão em grande evidência na imprensa nacional. Destaca-se, por exemplo, o desperdício de vacinas e medicamentos vencidos, os quais ultrapassaram os 2.2 bilhões de reais, somente de 2019 a 2022, imagina se fôssemos considerar de 2000 a 2022. A esse respeito, questiona-se: como o SUS poético, que pede por mais recursos com a correta justificativa de que a saúde pública no Brasil é subfinanciada, deixou isso ocorrer?

O atual governo, particularmente o Ministério da Saúde do Brasil, comandado por uma mulher, a cientista Nísia Trindade, tem uma grande missão: a de fazer o SUS – que foi desconstruído por um governo anticiência – avançar e superar os problemas de saúde pública, sem vinganças e sem nostalgia, ou seja, pragmaticamente, mas sem perder a poesia. O SUS tem muitos problemas e que estão sobre a mesa. O principal deles é a regulação do acesso aos serviços de saúde. Atualmente, o número de pessoas esperando por uma cirurgia é enorme, provavelmente, deve ultrapassar a casa dos milhões de indivíduos. Para piorar, os estados, muitas vezes, nem sabem o tamanho dessa fila, uma vez que a prática do fura fila – que beneficia políticos pela troca de acesso à saúde por voto – é uma das dificultadoras da transparência, do controle social e, consequentemente, da regulação. A regulação do acesso aos serviços de saúde é um "vespeiro" que o SUS pragmático precisa ter a coragem de enfrentar urgentemente. Somente com isso o SUS poético irá conseguir observar a política de regulação funcionando adequadamente, promovendo a sonhada justiça social e a equidade no acesso à saúde para todos os brasileiros.

O desperdício de insumos – tais como medicamentos, imunizantes, testes rápidos para HIV, sífilis e covid-19 – é outro problema que precisa ser enfrentado. A má gestão na compra e na distribuição desses insumos, além da ausência de controle e rastreio na dispensação, é um desafio que põe o SUS à prova. Trata-se de um desafio que exige do SUS pragmático a elaboração e a reestruturação dos seus sistemas de informação. Para tanto, tecnologias devem ser projetadas a fim de aumentar a eficiência da gestão pública da saúde, e não somente meros repositórios de dados, muitos deles frágeis e com pouco valor para tomada de decisão. Os antigos sistemas do SUS não dão conta das atuais demandas, eles não foram preparados para qualificar a informação, que exige tomadas de decisão que devem observar a racionalidade do uso dos recursos aplicados nas políticas públicas de saúde e/ou de programas. Sem bons sistemas de informação, sem integração e interoperabilidade desses sistemas, não é possível qualificar os gastos, otimizar investimentos, de forma que as ações do governo estejam em sintonia com a economia da saúde, ou seja, que possam obter o melhor custo-efetividade em suas políticas e nos programas.

Esse SUS pragmático conflita com o SUS poético, pois o primeiro pauta a racionalidade dos gastos; já o segundo pauta mais recursos para que sejam garantidos os preceitos constitucionais. Nessa relação, um não vive sem o outro. O SUS, por um lado, precisa de ações efetivas e pragmáticas, por outro lado, não pode abrir mão de sonhar e lutar para que todos os 220 milhões de brasileiros tenham acesso à saúde de qualidade de forma universal e integral. O SUS poético precisa estar sempre vivo e seguir esperançando!

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PhD. Ricardo Valentim
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Diretor Executivo do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (Lais)

PhD. Thaisa Santos Lima
Servidora do Ministério da Saúde do Brasil
Especialista em Cooperações Internacionais e Políticas Públicas na Saúde

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