Dor invisível: Maternidade Januário Cicco tem projeto para mães que perderam filhos recém-nascidos
Natal, RN 14 de mai 2024

Dor invisível: Maternidade Januário Cicco tem projeto para mães que perderam filhos recém-nascidos

31 de julho de 2023
8min
Dor invisível: Maternidade Januário Cicco tem projeto para mães que perderam filhos recém-nascidos

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Depois de todo um planejamento familiar para engravidar em 2019 e receber o pequeno Davi, Laisa foi surpreendida durante a gestação com um diagnóstico de pré-eclâmpsia e síndrome de Hellp.

A pré-eclâmpsia ocorre quando o feto libera proteínas na circulação sanguínea da mãe, provocando resposta imunológica da gestante que agride as paredes dos vasos sanguíneos, vasoconstrição e aumento da pressão arterial. Já a síndrome de Hellp é uma complicação obstétrica grave, de difícil diagnóstico, que pode causar a morte da mãe e do bêbe. O nome síndrome é referência ao conjunto de sintomas e o nome Hellp é a abreviação, em inglês, para: H: hemólise; EL: elevação das enzimas hepáticas, e LP: baixa contagem de plaquetas.

O filho acabou nascendo pré-maturo, com 34 semanas, chegou a passar alguns dias na UTI, mas acabou não resistindo.

Davi foi um bebê muito planejado e desejado. Ele já era amado por toda a família. Eu tive uma gravidez saudável e com 34 semanas fui diagnosticada com pré-eclampsia e síndrome de Hellp e precisei fazer uma cesárea com urgência. Como os pulmões de Davi ainda não estavam amadurecidos, ele precisou ficar na UTI e, infelizmente, foi um bebê que não evoluiu. Com cinco dias de vida ele teve uma parada de dez minutos e com nove dias de vida, ele faleceu”, conta Laisa Pinheiro, com lágrimas nos olhos.

Para ela, assim como as milhares de mães que tiveram que lidar com o luto de um recém-nascido, a perda do filho ainda bebê parece não ter o mesmo respeito que a morte de um filho com maior idade, o que gera nas mães um sentimento ainda maior de isolamento.

“O luto de quando a gente perde um filho é muito difícil, é um luto invisível. A sociedade não entende o quanto dói, que já tínhamos sonhado uma vida inteira ao lado do nosso filho e a gente perde tudo de uma vez. As pessoas vêm com frases prontas como: ainda bem que pequenininho, foi Deus que quis assim, você ainda é nova e já já tem outro... mas, nunca um outro filho vai substituir o que você perdeu. O que nós queríamos é que as pessoas nos deixassem falar dos nossos filhos, reconhecessem nossos filhos que não estão aqui fisicamente”, orienta Laisa.

Vilma também perdeu o filho que nasceu pré-maturo, com 25 semanas de gestação, em 2022. A criança chegou a passar quatro dias na UTI, mas também não resistiu e acabou morrendo.

“Quando você tem uma perda assim as pessoas veem com outros olhos, acham que porque era pequeno não tem significância, que é melhor perder quando está pequeno do que quando está com muitos anos, e não é assim. Quem é mãe, quem é pai, tanto faz se ele está na barriga ou se vai passar um mês, 10 anos, 20 anos, 30 anos, 100 anos. É a mesma dor. Não se mede uma dor por tempo, mas por amor”, desabafa Vilma Bezerra, que encontrou apoio para lidar com a perda do filho no projeto ‘Com Amor’, um trabalho de extensão criado pela Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC-UFRN).

Temos um grupo de apoio à perda gestacional e neonatal na MEJC. As nossas atividades foram iniciadas no fim do ano de 2016. Em 2017, o grupo de apoio se transformou no projeto de extensão chamado ‘Projeto com Amor’. De 2016 até o ano passado, já tínhamos realizado 92 encontros, que contaram com a participação de 269 mães, que tiveram a assistência de 251 profissionais e 202 estudantes”, relata Gildeci Pinheiro, assistente social da Maternidade.

A partir de 2023, a Lei nº 11.357, aprovada em janeiro deste ano, estabeleceu que hospitais públicos e privados devem adotar procedimentos relacionados à humanização do luto materno e parental em todo o território do Rio Grande do Norte.

O luto parental é considerado um luto invisibilizado pela sociedade, visto que foge da ‘ordem naturalmente esperada’. Assim, percebe-se um despreparo para lidar com a temática, seja da família do enlutado ou até mesmo de profissionais de saúde. Tal contexto, muitas vezes, vulnerabiliza ainda mais o enlutado, visto que gera desamparo e solidão, que podem intensificar a dificuldade de falar sobre o tema, expressar sentimentos de tristeza, culpa e outras preocupações. A literatura indica que todo esse sofrimento solitário é um fator de risco aumentado para diversos transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade, além de maior risco de adoecimento cardiovascular e do sistema endócrino e tentativas de suicídio. Algumas famílias relatam, ainda, dificuldade para o retorno ao mercado de trabalho e até conflitos conjugais. Dessa forma, vale a pena tornar ampla a discussão sobre o tema, bem como investir na qualificação de profissionais e serviços de saúde”, ressalta Caroline Lemos, psicóloga da MEJC.

Vilma, que perdeu o filho em 2022, conta que o apoio trazido pelo grupo foi fundamental para entender e aceitar o processo de luto.

Quando recebi a notícia, a assistente social da UTI perguntou se eu teria interesse em participar do grupo. Eu disse que sim, meu suporte foi o projeto ‘Com Amor’. Quando entraram em contato comigo eu me senti muito acolhida porque me senti novamente inserida na sociedade, revela a mãe enlutada.

Como funciona

O ‘Projeto com Amor’ faz parte de um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que tem como objetivos: criar um espaço de fala e compartilhamento de saberes e experiências capaz de contribuir para o desdobramento do processo social do luto; promover cuidado multiprofissional por meio do atendimento de profissionais da enfermagem, psicologia, serviço social, ginecologia e psiquiatria; colaborar para a formação acadêmica e aperfeiçoamento profissional com foco no cuidado integral à mulher frente ao processo de luto; e estimular os profissionais de saúde para um atendimento acolhedor diante da perda fetal e neonatal.

Atualmente, são realizados encontros quinzenais, de modo virtual, com a participação em média de oito mães, profissionais da psicologia, serviço social e educação física, além de alunos de graduação e residentes. Essa modalidade de encontro online tem propiciado maior adesão das mães, visto que rompe com barreirais sociais e geográficas.

Participam do projeto assistentes sociais, psicólogas, enfermeiras, obstetras, neonatologistas e psiquiatra. Além dos encontros quinzenais, esses profissionais acolhem as diversas demandas das mulheres e familiares, funcionando como uma rede de apoio qualificada de modo a facilitar o processo do luto.

A iniciativa surgiu de um movimento internacional que visa honrar os filhos que morreram e homenagear sua memória, fomentando o apoio social às famílias que tentam sobreviver após a morte de um filho. Ela é atribuída aos americanos Peter e Deborah Kulkkula, que perderam seu filho Peter John aos 19 anos. Há registros, desde 2013, de organizações e movimentos que celebram a data. No ano de 2019, a ONG Amada Helena trouxe a iniciativa para o Brasil, por meio da aprovação da Lei 15.313, que instituiu a Semana Estadual de Conscientização sobre a Causa do Luto Parental no Estado do Rio Grande do Sul.

A Maternidade Escola Januário Cicco faz parte da Rede Ebserh desde 2013, que é vinculada ao Ministério da Educação (MEC) e foi criada em 2011. Atualmente, a Rede administra 41 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.

Mães reunidas pelo projeto 'Com Amor', da Maternidade Januário Cicco I Foto: cedida
Mães reunidas pelo projeto 'Com Amor', da Maternidade Januário Cicco I Foto: cedida

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