Surge outra versão no caso das mães presas por supostos maus tratos
Natal, RN 14 de mai 2024

Surge outra versão no caso das mães presas por supostos maus tratos

3 de fevereiro de 2024
10min
Surge outra versão no caso das mães presas por supostos maus tratos
Ana Gadelha, titular da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente de Parnamirim I Imagem: divulgação

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Em janeiro deste ano, um grupo de crianças fez um piquenique na área de lazer de um condomínio de alto padrão, no bairro Parque das Nações, em Parnamirim, região metropolitana de Natal. O grupo comeu cupcake, brincou, conversou com coleguinhas e nada de estranho foi relatado. Mas, alguns dias depois, duas dessas crianças foram tiradas do convívio com a família e as mães foram presas sob a suspeita de privar as filhas de alimentação, praticar tortura, maus tratos e violência psicológica.

O caso se trata de um casal lésbico formado por duas mães que adotou uma criança e uma adolescente irmãs em 2021. As mães foram presas nesta sexta (02), uma semana depois de uma denúncia apresentada por uma babá que ficou com as duas meninas enquanto as mães faziam uma viagem ao exterior.

Segundo a delegada do caso, o pedido de prisão preventiva se deu a partir da análise do laudo do Itep (Instituto Técnico e Científico de Polícia), que comprova a materialidade das lesões corporais, e do depoimento de 17 pessoas, cujos testemunhos constroem um cenário de agressões físicas e psicológicas.

“Cada depoimento foi corroborando os fatos narrados por elas. Gritos que foram ouvidos, pancadas que foram escutadas, sinais dessas crianças que mudaram… esse arcabouço de testemunhas, seja da escola, do local onde moravam ou de pessoas do convívio delas deram o arcabouço para o inquérito policial”, revelou Ana Gadelha, titular da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente de Parnamirim, durante coletiva à imprensa após as prisões. 

A polícia não divulgou como foi coletado o depoimento das meninas, se houve acompanhamento psicológico. A notícia chocou alguns moradores do condomínio quem tinham contato com a família.

“Ainda não acredito, é surreal. Convivemos com elas desde julho do ano passado e nunca percebemos qualquer sinal que indicasse que as meninas eram maltratadas. Nossas filhas brincavam com as filhas delas, as meninas também vinham para cá. Uma das minhas filhas até já dormiu lá e eu não deixaria ir se não conhecesse, sou bem rigorosa com isso”, relata uma pessoa que mora no mesmo condomínio das mulheres detidas, mas que não foi ouvida pela polícia.

“Em outubro do ano passado a menina mais nova até ficou toda contente porque ia almoçar rabada, que é um prato que ela gosta muito, mas não costumava comer com frequência. A mãe demonstrava carinho explicando qual seria o prato do almoço”, continua uma moradora do mesmo condomínio.

 As famílias começaram a conviver com mais intensidade em julho do ano passado por causa da amizade entre as crianças. Elas costumavam frequentar as casas umas das outras, assim como de uma outra família, que também ficou surpresa com o caso divulgado na imprensa.

“Em novembro elas [filhas do casal de mães] foram menos para a área de lazer por não falarem a verdade, de vez em quando tinham problemas com isso. Mas, no começo do ano, elas voltaram a frequentar e todas brincaram bastante. Elas estavam bem e felizes. Minha criança mais nova tem a mesma idade que a menor [filha do casal], elas são confidentes, tiveram várias chances de conversar. Se sofresse algo, acho que ela teria contado. Uma criança não consegue esconder algo tão grave, como passar fome ou ser agredida”.

Após a denúncia da babá, as duas meninas foram afastadas das mães. Inicialmente, elas foram abrigadas pelo Conselho Tutelar e, atualmente, estão em uma casa de acolhimento. As guardas da criança e da adolescente serão decididas pela Vara da Infância e Juventude.

Nossa fonte também revela que não conheceu a babá que cuidou das meninas no período da viagem das mães, mas conta que suas crianças haviam feito algumas observações sobre a cuidadora das coleguinhas, antes mesmo que qualquer fato viesse à tona.

Não conheci a cuidadora, mas as meninas encontraram com ela duas vezes. Numa das situações, ela chegou a ouvir a cuidadora dizer ‘Tô aqui cuidando das meninas nesse condomínio chique’. Em outra ocasião, a babá perguntou para as meninas se elas tinham namorado. A mais velha comentou que iria se envolver com alguém bacana, que respeitasse ela e que poderia ser menino ou menina. A babá disse ‘ah, o correto é ter relacionamento homem e mulher’. Isso foi antes de acontecer tudo”, ressalta.

Em nota publicada pela defesa, as mães afastadas das filhas sob a suspeita de maus tratos citaram uma tentativa de extorsão por parte da babá das meninas, que teria pedido mais dinheiro depois de perceber que as duas mulheres formavam um casal.

Obesidade

Quando foram adotadas, as duas meninas estavam obesas e, desde então, as mães tentaram organizar uma alimentação mais regrada e saudável.

“Elas estavam curtindo muito que tinham emagrecido. Tanto é, que não queriam mostrar as fotos mais antigas, de como estavam antes. Acho que chegaram a perder 21 quilos”, conta a moradora do condomínio.

A adoção

Em uma das várias conversas que teve com as mães das meninas, o casal comentou o motivo de terem optado pela adoção.

“O motivo de adoção era que a vida delas estava bem organizada, estável e queriam dar a chance a duas meninas, negras, que fossem irmãs e até já crescidinhas, porque teriam menos chances de serem adotadas”, revela nossa fonte.

A conversa relatada bate com uma realidade bem conhecida de crianças e adolescentes que aguardam na fila de adoção. No caso do Rio Grande do Norte, até outubro do ano passado, 444 pessoas estavam na fila de espera da adoção, enquanto 31 crianças estavam disponíveis para serem adotadas no estado, de acordo com dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN).

A diferença entre o grande número de adultos que deseja adotar e a quantidade de crianças disponíveis é resultado do perfil desejado pelos adotantes que, em sua maioria, sonham com uma criança recém-nascida, branca e sem doenças. Uma idealização bem diferente da realidade onde o mais comum são crianças mais crescidas, com algum tipo de doença ou com irmãos, que pedem para serem adotados juntos.

Além da dificuldade em ser adotada diante de toda a probabilidade jogando contra, as meninas desse caso tiveram que trocar de escola, segundo o relato das mães com nossa fonte, porque elas passaram a sofrer bullying depois que os colegas descobriram que as irmãs eram adotadas.

As tarefas de casa

Segundo a investigação da Polícia Civil, as duas meninas eram usadas para fazer os trabalhos domésticos, eram responsáveis por retirar o lixo da casa, além de serem vítimas constantes de castigos, agressões e xingamentos.

“Nesse período de janeiro, quando as meninas se encontravam pra conversar, eu perguntava sobre o que elas conversavam e minha filha respondia… ‘falamos de muita coisa, sobre livros, produtos beleza, filmes e atividades que cada uma faz em casa. As nossas crianças também fazem. Lavam louça, as roupas delas, arrumam o quarto.  A menina mais velha comentou que a obrigação dela era regar as plantas e lavar louça. É normal você colaborar na casa, ajudar a cuidar do quarto, da louça, da comida… não estávamos dentro da casa, mas nunca percebi qualquer fala que pudesse denunciar algo no sentido de exploração”, assegura.

O presente

Ainda durante a conversa, nossa fonte relatou ter presenciado vários momentos e situações que demonstravam, ao contrário das acusações, que as duas mães eram preocupadas com a educação das duas meninas e recebiam cuidados típicos de uma família zelosa.

A criança mais nova, por exemplo, teria passado a usar óculos depois de uma consulta ao oftalmologista em setembro do ano passado. Já a adolescente, em janeiro deste ano, contou que havia comprado um perfume do Boticário para a mãe de presente.

“Uma vez passei lá e elas [o casal de mães] estavam fazendo o almoço para as meninas que iam chegar para comer. Outra vez outras colegas tinham dormido lá e fui buscar logo de manhã, no dia seguinte, e estavam todas juntas na mesa felizes e tomando café. Isso tudo é tão doido… uma pessoa seria tão psicopata assim?”, questiona.

Eu não acho… pelo tanto que conversamos. O que elas comentavam era que estavam tendo problemas com mentirinhas que as meninas contavam ou quando omitiam coisas. A mais velha já foi suspensa da escola porque levou objetos inapropriados e não quis dizer onde conseguiu”, conta.

Política

Os moradores do condomínio com os quais nós conversamos ainda comentaram que as mulheres, pelo fato de serem lésbicas e terem duas filhas negras adotadas, sofriam preconceito de outros moradores do condomínio, que possui mais de 200 casas. O sentimento de rejeição já havia sido relatado pelo casal em algumas conversas e, na avaliação dos moradores, isso pode ter influenciado na investigação por causa dos depoimentos de vizinhos colhidos pela Polícia Civil.

Não sabemos quem foi ouvido, mas sei que há um sentimento forte no condomínio de reprovação contra elas… e essa pode ter sido uma oportunidade para prejudicá-las”, ponderam.

A versão das mães

Por meio de nota, antes da prisão, as mães repudiaram as acusações e disseram acreditar que estão sendo vítimas de um julgamento prévio, calúnia e difamação por serem um casal lésbico que adotou duas crianças negras.

O casal afirma que se empenha diariamente na educação das filhas e que acreditam que a injustiça que estão sofrendo será reparada dentro do devido processo legal. Além disso, elas criticaram divulgações sensacionalistas do caso que teriam resultado no afastamento das crianças do convívio familiar.

O casal de mães também disse ter medo de permanecer na casa da família por causa das ameaças que passaram a sofrer e que adotará providências judiciais contra a pessoa mal intencionada que gerou toda a situação atual e quem desrespeitar o direito à defesa e privacidade das mães e crianças envolvidas.

A denúncia contra o casal foi registrada no dia 26 de janeiro numa cidade do interior do estado e encaminhada à Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente de Parnamirim na noite do mesmo dia. A investigação continua e outras pessoas ainda serão ouvidas. O inquérito transcorre em segredo de justiça e a prisão preventiva das mães não tem prazo para expirar.

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