Campelo, presente
Natal, RN 27 de abr 2024

Campelo, presente

25 de março de 2024
5min
Campelo, presente

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Por Sindicato dos Bancários do Rio Grande do Norte (SEEB/RN)

Na verdade, eu queria que as pessoas esquecessem isso”, assim terminou a única entrevista dada por José Campelo Filho, presidente do Sindicato dos Bancários do RN, preso e torturado assim que o Golpe Militar de 1964 foi implementado. A entrevista concedida em 24 de março de 2015, ocorreu menos de três meses antes de sua morte e deixou registrada a importância de não esquecermos sua trajetória nem a história do país.

Ironicamente, ou não, em 2024, ano em que o golpe completa 60 anos e deveria ser lembrado, visto e debatido amplamente pela sociedade brasileira, está sendo “jogado para debaixo do tapete” pelo Governo Lula, eleito por uma coalizão que visava barrar o avanço da extrema-direita. Lula simplesmente mandou ignorar a data e ainda barrou a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.

O Sindicato dos Bancários do RN, que neste ano completa 87 anos, teve parte de sua história apagada quando Campelo foi preso e torturado e quase toda a documentação da Entidade queimada pela repressão, sobrando apenas uma Carta Sindical. O Sindicato dos Bancários foi questionado na Justiça devido a essa “ilegalidade” por uma direção que perdeu nas urnas nos anos 2000. Apenas em 2019 conseguiu se legalizar totalmente, sendo que sua legalidade já era respaldada há mais de 80 anos pelos trabalhadores.

O ex-presidente hoje dá nome ao auditório da categoria, situado na avenida Deodoro, em Petrópolis, e está aberto para todos os trabalhadores de forma gratuita. Assim, apoiando toda a classe, os bancários do RN procuram manter viva a lembrança de um período em que a simples necessidade de questionar a exploração dos bancários era visto como um ato subversivo.

Na entrevista citada, Campelo contou que sempre foi um agente social, mas nunca um comunista, se intitulava até como playboy de carrão, em suas palavras, visto que além de presidir o Sindicato também presidia a AABB. Na época, alguns anos antes de ver as instituições brasileiras serem depredadas em 8 de janeiro de 2023, ele não acreditava em novo golpe, e falava que aquilo era apenas uma minoria que não lembrava o que tinha acontecido cerca de 50 anos antes.

No entanto, de acordo com o Relatório Veras-abr.set/64, durante seu depoimento afirmou: "... que é materialista-dialético; que verificou no regime socialista as possibilidades de solução de muitos problemas nacionais; esclarece que pessoalmente não necessitava daquela solução, mas, sim, para os outros que não possuíam condições iguais aos respondente", e ainda "...que quanto aos livros marxistas encontrados em sua casa, os tem para sua formação cultural-ideológica". Ou seja, demonstrava a importância da formação política para a luta coletiva.

Campelo poderia ter morrido numa das inúmeras sessões de tortura a que foi submetido no Quartel da Polícia Militar, em Natal, em 1964. Acordado aos berros, geralmente de madrugada, era espancado até o amanhecer. Foi assim durante os quase oito meses em que esteve encarcerado, a maior parte do tempo na capital potiguar. Certa vez, com o rosto coberto de sangue, após outra bateria de tortura, foi parar na enfermaria da unidade. Nesse dia correu o boato no Quartel de que Campelo teria ficado cego com os murros e chutes”. Assim começa o texto que abre a entrevista, imagens que o líder sindical fez de tudo pra esquecer e não conseguiu.

O Governo manda olhar para o futuro e esquecer o passado, mas José Campelo Filho, ao conceder aquela entrevista não sabia que estava nos lembrando que sem passado não há futuro. Ele foi responsável, por exemplo pela aquisição da primeira sede do Sindicato (um andar na rua João Pessoa em Natal, atual edifício T. Barreto) e da aquisição da atual sede da AABB (avenida Hermes da Fonseca), e assim proporcionou à categoria sobreviver e se fortalecer para enfrentar os poderosos banqueiros.

Sua consciência social era tão presente que ele chegou a sugerir à então diretoria do Sindicato que mudasse o nome do ainda não inaugurado auditório. “Deveria ser Auditório dos Bancários, seria uma homenagem à classe, e não a uma pessoa que foi da classe”, ao mesmo tempo que reconhecia “(acho) que essa homenagem tem um cunho, um objetivo de fazer a classe lembrar que tem um passado e que esse passado foi vivido por outras pessoas da classe”.

O Sindicato dos Bancários do RN não esquecerá a luta de José Campelo Filho e de muitos outros trabalhadores e trabalhadoras presos, torturados, desaparecidos e mortos pela ditadura militar. Por isso está construindo, em conjunto com outras Entidades, uma série de atividades que visam rememorar a data e não deixar que nada parecido ocorra novamente. Não Campelo, não esqueceremos...

Entenda

José Campelo Filho morreu em 13 de junho de 2015 deixando esposa, filha e neto. Ele, que passou a vida inteira se recusando a falar sobre esse período delicado de sua vida, concedeu uma entrevista de uma hora e 27 minutos ao jornalista Rafael Duarte, então editor da  Putz!, revista impressa do Sindicato dos Bancários que tratava de temas como história e cultura. O auditório que leva seu nome foi inaugurado em 25 de setembro de 2015 ocasião em que foi representado por sua filha, Ana Lucia Targino Campelo.

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