Cidade à venda? Empresariamento urbano e participação social em Natal
Natal, RN 27 de abr 2024

Cidade à venda? Empresariamento urbano e participação social em Natal

23 de março de 2024
10min
Cidade à venda? Empresariamento urbano e participação social em Natal
Imagem: Acervo do Salve Natal

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Ruth Ataíde é professora do Departamento de Arquitetura da UFRN membro do Fórum Direito à Cidade e pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo RMNatal.

Sarah Andrade é doutoranda no programa de pós graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN membro do Fórum Direito à Cidade e diretora do Coletivo Salve Natal.

Rodrigo Silva é doutorando no programa de pós graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, membro do Fórum Direito à Cidade e diretor executivo do Coletivo Salve Natal.

Érica Guimarães é professora substituta do Departamento de Administração Pública e Gestão Social da UFRN, membro do Fórum Direito à Cidade e pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo RMNatal.

A busca pela recuperação do dinamismo do setor imobiliário-turístico no município de Natal tem encontrado na atual gestão municipal uma importante aliada e articuladora. Continuando nossas discussões sobre a participação e o controle social, avançaremos hoje sobre essa aliança e como ela tem se mobilizado contra a participação popular no processo de criação da imagem da cidade.

Não é segredo para nenhum natalense quais são as duas principais estratégias de atuação da gestão Álvaro Dias nessa direção: a revisão do Plano Diretor de Natal, finalizada em 2022, e os de grandes projetos denominados de “requalificação urbana”, localizados principalmente na orla marítima e estuarina.

O objetivo dessas estratégias é claro e aponta na direção da reafirmação da cidade Natal como um produto à venda, com o protagonismo do turismo de sol-e-mar. Obras de grande impacto no sistema viário (construção de túneis e elevados) também estão na ordem do dia da gestão municipal, que usa, em seu material publicitário o slogan: “é obra por todo canto, é obra em todo lugar [...] de Redinha à Ponta Negra é trabalho sem parar”. Dessa forma, a atual gestão reabriu o balcão de negócios aos capitais nacional e estrangeiro e escancarou o estímulo à venda do cobiçado território da orla do município.

Desde o final de 2010, com a crise financeira mundial, Natal tem acompanhado a retração dos investimentos do setor imobiliário-turístico. A estagnação da entrada do capital estrangeiro para investimentos nesse setor colocou em xeque a reconhecida “vocação turística” da cidade. Dez anos depois, notadamente a partir de 2019, a gestão municipal se reconciliou com seus objetivos empreendedores e reiniciou a construção de uma nova imagem para a cidade, a partir das estratégias que colocam os negócios como protagonistas do suposto “desenvolvimento”. Cabe-nos, entretanto, indagar: desenvolvimento para quem e a que preço? 

A condução dessas estratégias tem se dado a partir da cooptação, negação ou pouca valorização dos canais de participação e controle social que estruturam o sistema de planejamento urbano do município. No texto anterior, refletimos sobre o sistema de planejamento e gestão democrática de Natal e como seus conselhos são pouco provocados ou convidados a opinar ou deliberar sobre as ações da gestão que interferem na vida dos natalenses.

Sobre o Plano Diretor, nunca é demais lembrar as dificuldades do processo participativo em sua última revisão, como também já discutimos anteriormente. O debate público, embora aberto, foi amplamente questionado devido as limitações à participação direta dos segmentos populares – tanto nas etapas do Executivo, como no Legislativo. Em ambos os momentos, o apertado cronograma de discussão nos espaços representativos induziu uma participação social frágil, onde as discussões protagonizadas pelos movimentos sociais e setores da academia não se refletiram no texto final do Plano, a despeito da preferência tácita às propostas alinhadas aos setores da construção civil, do turismo e dos proprietários de terra, reafirmando o discurso dissimulado da gestão, focado na aprovação de um plano “mais moderno”, representando sua pauta  desenvolvimentista.

Concluída a etapa da aprovação das garantias normativas para o avanço do projeto de cidade para negócios, a gestão atual tem mobilizado o seu capital político para atuar de maneira impositiva com propostas: (1) de regulamentações urbanísticas dos espaços especiais do municípios como, por exemplo, as Zonas de Proteção de Ambiental – ZPAs; e (2) dos chamados projetos urbanísticos estruturantes, a maioria nas frentes marítima e estuarina do município, com objetivos de atender, prioritariamente, aos interesses dos setores do turismo e lazer de sol e mar. Ambas as iniciativas têm sido conduzidas nos gabinetes, a portas fechadas, e, quando oportuno para a gestão, enviadas diretamente ao legislativo municipal ou apenas publicizadas na mídia, igualmente sem o debate público correspondente e necessário.

Sobre as regulamentações das ZPAs, as propostas foram ajustadas aos termos do novo Plano Diretor, com flexibilizações que diminuíram o controle da ocupação, sendo apreciadas pelo legislativo municipal sem nenhuma chamada pública para discussão das matérias. Cabe lembrar também, que esses projetos de lei não foram acompanhados da correspondente avaliação conclusiva do Conselho de Planejamento Urbano e Meio Ambiente do município e do Conselho da Cidade, evidenciando a completa desconsideração da relevância e garantia constitucional do controle social.

Sobre os projetos urbanísticos, alguns em fase de implantação, também não se tem notícia de debates públicos sobre os mesmos. Dentre eles podemos citar alguns dos que se materializam nas falas de agentes municipais, como o Complexo Turístico da Redinha; a Engorda da praia de Ponta Negra e seu enrocamento; o Centro Comercial de Pescados e Frutos do Mar e a Nova praça do Pôr do Sol, no Canto do Mangue; a Estação Turística/Religiosa da Pedra do Rosário, em parte da comunidade do Passo da Pátria, localizada entre os bairros de Cidade Alta e Alecrim; e, mais recentemente, o “projeto de “requalificação da orla central de Natal”, conforme divulgado pela Prefeitura.

Se a propaganda do município tem evidenciado a transformação da cidade em canteiro de “obras em todo o canto, obras em todo lugar”, o que ela não tem dito é que as obras ditas “revitalizadoras” são fruto de projetos pouco transparentes e nada participativos. Os efeitos disso estão nos questionamentos que têm ocorrido nos respectivos processos de implementação, protagonizados, principalmente, por trabalhadores da orla e residentes nos territórios populares afetados, como os quiosqueiros da praia da Redinha e os pescadores da praia de Ponta Negra.

No caso do Complexo Turístico da praia da Redinha, nem mesmo as seguidas paralizações da obra, tem sensibilizado a gestão pública para uma reflexão sobre a urgente necessidade de revisão do projeto, abrindo um diálogo com os grupos diretamente afetados, os trabalhadores do comércio informal e os pescadores. O projeto de requalificação da orla central de Natal também está sendo divulgado com os mesmos contornos. Embora os seus defensores informem a ocorrência de supostos diálogos com a sociedade, estes parecem acorrer apenas com segmentos econômicos específicos, sem contemplar os cidadãos diretamente atingidos:  moradores e trabalhadores da orla, notadamente os que residem nas comunidades tradicionais que imprimem a identidade do lugar.

A falta de diálogo, portanto, aparece como um traço característico da atual gestão no seu “esforço” de criação de uma nova imagem para Natal, desconsiderando as atividades já desempenhadas nesses territórios e seus moradores. Quando acontece, esse diálogo costuma ser mediado pelo Poder Judiciário, como no caso da Redinha, somente após diversas denúncias e a judicialização das violações sofridas pelos comerciantes que tiveram seus quiosques derrubados e sem previsão, até recentemente, de inclusão de novos quiosques no projeto em andamento.

Ao escolher dialogar apenas com alguns, enquanto nega a fala de outros, a Prefeitura do Natal declara à sociedade natalense que a nova cidade do sol não nascerá para todos. Ao menos não da mesma maneira.

As Áreas Especiais de Interesse Social - AEIS localizadas nas zonas costeiras marítima e estuarina e seus moradores são pressionados pelos processos de transformação da paisagem ao mesmo tempo que sofrem, há anos, com a falta de implementação de instrumentos de gestão urbana que permitiriam frear ou, ao menos, minimizar seus impactos. De um lado, essas comunidades veem seus territórios serem objetos de desejo dos setores econômicos interessados na construção de novos empreendimentos. De outro, percebem e acompanham, como meros expectadores, um suposto movimento de requalificação urbana da orla que não os contempla, que não atendem as suas necessidades concretas, incluindo as demandas crônicas de infraestrutura urbana, que continuam sendo determinantes para a liberação aumento do adensamento urbano.

As praias urbanas de Natal sofrem com o abandono há anos, mas a intenção de requalificá-las só ganha destaque quando os instrumentos urbanísticos, como o potencial construtivo e o limite de gabarito, são fragilizados e flexibilizados para favorecer os interesses do setor imobiliário. É o que está acontecendo no conjunto dos projetos divulgados ou em fase de execução.

Esses movimentos indicam justamente a reapropriação da cidade do Natal enquanto negócio, criando um falso consenso, que converge para a reivindicação pela modernização, desenvolvimento e geração de emprego. Para além da aparência de discursos pomposos e populistas, é necessário olhar para a essência desses processos e suas consequências, que deterioram a relação do habitante com o espaço cotidiano da cidade.

Na construção desse falso consenso, as vozes discordantes da gestão e seus aliados são suprimidas do debate público com a negação da participação social ampla e contínua. Dessa forma, a atual gestão silencia não apenas alguns setores da sociedade civil e de movimentos sociais históricos do município, mas um modo de vida cotidiano, que se demonstra de difícil adaptação aos novos cenários revelados e almejados para Natal. No balcão de negócios da Prefeitura do Natal, o cliente nem sempre terá razão - principalmente, quando o seu pedido não condiz com a criação de uma nova imagem para Natal.

Dentro desse contexto nos perguntamos:

1.Para que serve a estrutura de participação social, se esta não é convocada ou provocada a opinar sobre as ações que se apresentam como “âncoras” de novos rumos para a cidade, muitas delas conflituosas?

2. Ou mesmo, por que a gestão não abre consultas públicas sobre esses projetos, atuando para o fortalecimento do processo democrático de gestão da cidade?

3. Por que concursos públicos para esses projetos não são realizados, ensejando resultados que possam ser validados pela consulta popular, envolvendo, principalmente, os moradores dos territórios afetados? (Já vivemos essa experiência nos anos 1990, embora poucos lembrem).

4. Em tempos de discussão de construção de uma possível nova identidade paisagística e socioambiental para Natal, com ações que afetarão duramente a percepção de seus elementos simbólicos - o Morro do Careca, o Parque das Dunas, a Fortaleza dos Reis Magos e o estuário do Rio Potengi e entorno - o que podemos fazer? Como podemos interferir para que essa paisagem volte a ser compreendida como uma pérola que precisa ser polida e protegida continuamente para usufruto de todos e todas?

5. Com a aproximação das eleições municipais quais novas decisões podem ser sinalizadas pelos candidatos e eleitores para reversão deste quadro perverso que se anuncia?

Para uma reconciliação com a participação social, a próxima gestão precisa encarar tais problemas com franqueza, sob o risco de perpetuar o silenciamento de setores da sociedade, ainda vistos como personas non grata nos salões e gabinetes institucionais.

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