História pra ninar gente grande: a Mangueira em verso e prosa
Natal, RN 26 de abr 2024

História pra ninar gente grande: a Mangueira em verso e prosa

7 de março de 2019
História pra ninar gente grande: a Mangueira em verso e prosa

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Marielle não foi a única homenageada no enredo campeão da Mangueira em 2019, assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira. A história para ninar gente grande tem muito mais heróis e heroínas que o Brasil desconhece (ou desconhecia).

Luiza Mahin, Chico da Matilde e Dandara são algumas das protagonistas que a letra do samba exaltou na avenida. Fora as revoltas e rebeliões populares também lideradas pelo povo preto, pobre, indígena e escravo do país.

Uma história que não está no retrato, mas que a verde-e-rosa ousou em levar para a avenida em 24 alas, cinco alegorias e no samba no pé de 3.500 componentes.

Foi o 20º título da Estação Primeira de Mangueira no carnaval Carioca.

Segundo Leandro Vieira, o desfile da Mangueira foi também um recado a Jair Bolsonaro, que tentou desmerecer a maior festa popular do mundo após as críticas que recebeu de uma ponta a outra do país durante o carnaval. "Carnaval não é aquilo que ele acha que é", afirmou em desabafo.

Leandro Vieira, o carnavalesco nota 10 da Estação Primeira de Magueira

A agência Saiba Mais se debruçou sobre os 25 versos composto por Manuela Oiticica (Manu da Cuíca), Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Danilo Firmino, Ronie Oliveira, Márcio Bola e Sílvio Mama.

Entre fatos históricos e interpretações livres, eis o resultado:

História pra ninar gente grande, verso a verso

Mangueira, tira a poeira dos porões

O samba já abre com força. Logo no primeiro verso há uma clara referência aos porões dos navios negreiros que traziam negros escravizados da África para o Brasil, último país da América Latina a abolir a escravidão, em 1888, após muita pressão popular.

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

É o samba exaltando os heróis das comunidades, a periferia. Os moradores e moradoras das favelas que vão a pé, que pegam três ou quatro ônibus por dia, que vão de trem para o trabalho, homens e mulheres que enfrentam o dia-a-dia pra levar o pão de cada dia para casa. A letra vai além das trincheiras das escolas de samba. Os barracões, ressignificados, são as ocas de palha, as casas de taipa, com teto de zinco, madeira ou alvenaria erguidas nas favelas.

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

Lecis e Jamelões são duas referências da Estação Primeira de Mangueira: Lecis, na letra, é uma homenagem à sambista Leci Brandão, primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira e representa todas as mulheres negras do Brasil. Já o intérprete Jamelão (ele odiava ser chamado de puxador de samba) está eternizado como uma das maiores vozes que já ecoaram (e desfilaram) pela Marquês de Sapucaí. “Lecis e Jamelões” são os homens e mulheres do país "que não tá no retrato".

São verde e rosa, as multidões

Exaltação à massa, ao público, a minoria social que é imensa maioria em quantidade e afeto verde e rosa.

Brasil, meu nego

Verso simples, mas de uma força e sensibilidade enormes. Meu nego é afeto, carinho. É o Brasil no colo, recostado no peito do povo. Ao usar o vocativo “meu nego", para “conversar” com o Brasil, o verso demonstra afeto e intimidade com a essência do País.

Deixa eu te contar

Intimidade e autoridade. É algo como “ouve o que eu tenho pra lhe falar, meu nego”.

A história que a história não conta

Esse verso é a chave do samba campeão da Mangueira. O que está escrito na avenida é, na verdade, o que não está escrito em nenhum livro da história oficial. Os heróis de fato estão nos barracões das comunidades, das favelas, nas tribos de índios, e não nas fotografias dos livros editados pelos vencedores.

O avesso do mesmo lugar

Um dos versos mais lindos do samba. Com uma frase, a Mangueira ensina para o mundo que, no mesmo Brasil, não existe uma única versão da história. E deixa claro que a versão contada na Sapucaí em 2019 é o contrário, o avesso da narrativa contada até agora.

Na luta é que a gente se encontra

É o verso que une. Une a militância, une os trabalhadores, une as minorias representadas pelas comunidades: pelas LGBTs, pelas mulheres, pelos negros e negras, pelas pessoas com deficiência, enfim, pelos excluídos, pelos marginais. Há uma esquina no Brasil onde se encontra toda essa gente. Uma esquina chamada luta.

Brasil, meu dengo, a Mangueira chegou

É carinho, é ternura, é afeto, é cafuné. É a Mangueira chegando na avenida para contar que a história que a história não conta vem do povo e é o povo quem tem autoridade para contar.

Com os versos que o livro apagou

É a Mangueira fazendo uma denúncia ao mundo: o Brasil de verdade foi apagado pelos livros oficiais de história. É a história por trás da história.

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Verso síntese do samba. O Brasil não foi descoberto, foi invadido. Invadiram a casa do povo que aqui morava. E desde então, a terra dos índios virou um festival de invasões dos grandes proprietários de terra, dos latifundiários. A versão do descobrimento é, na verdade, a grande mentira do Brasil.

Tem sangue retinto pisado

Lugar de fala dos oprimidos. É uma homenagem às revoltas populares, desde a resistência indígena à ocupação portuguesa. É a exaltação ao herói Cunhambebe, líder dos índios tamoios que resistiram à invasão de Portugal; à Maria Felipe, negra que lutou pela Independência da Bahia; e a Chico da Matilde, jangadeiro que comandou o movimento que pôs fim à escravidão no Ceará quatro anos antes da Lei Áurea.

Atrás do herói emoldurado

Mais uma referência à história oficial que fabrica e emoldura seus heróis, a exemplo de Duque de Caxias, Dom Pedro I e a princesa Isabel. É a Mangueira retirando os quadros oficiais da parede para contar a história do Brasil.

Mulheres, tamoios, mulatos

Os verdadeiros heróis do Brasil que lutaram e lutam até hoje pelo país. As mulheres, os índios tamoios, os negros mulatos, o povo pobre brasileiro.

Eu quero um país que não está no retrato

Mais que um pedido, o verso traz uma reivindicação: “Devolvam o nosso país”, grita a Mangueira.

Brasil, o teu nome é Dandara

Dandara foi heroína negra e rebelde que se juntou a um grupo de negros escravos e desafiou o sistema colonial escravista por quase um século. Para a história oficial machista, ficou como a mulher de Zumbi de Palmeiras, mas o samba da Mangueira devolve à Dandara o protagonismo que ela conquistou. Mas no enredo também cabe a Dandara travesti, linchada e morta em 2017 a pedradas em Fortaleza, no Ceará. Na luta, as duas Dandaras se encontraram na Sapucaí quatro séculos depois.

E a tua cara é de cariri

Referência à Confederação dos Cariris, revolta indígena que enfrentou a dominação portuguesa no Nordeste, entre 1683 e 1713. O estopim do movimento foi a oposição dos índios da nação Kiriri à presença e ocupação dos portugueses em suas terras. Os indígenas também eram contrários à ação de portugueses que escravizavam índios e os vendiam como mercadoria.

Não veio do céu

De simples esse verso não tem nada. É de uma importância descomunal para o samba e para a história do povo brasileiro. Sabe aquele bordão: “quer que eu desenhe ?”. Pois é, tudo para dizer que a história do Brasil, aquela que a história oficial não conta, foi escrita com muita luta, à custa de, como diz o próprio samba, muito “sangue retinto pisado”.

Nem das mãos de Isabel

Entre tantos versos significativos do samba que conta o enredo “História pra ninar gente grande”, esse talvez seja o mais simbólico porque descontrói o mito de que a princesa Isabel assinou a lei áurea por vontade própria, como se fizesse um favor aos negros escravizados. Mais uma vez a Mangueira reconta a história quando canta que a abolição não veio do céu e muito menos das mãos de Isabel. A lei, frágil, só foi assinada depois de muita pressão dos abolicionistas e dos escravos. A escravidão ainda segue tão presente no Brasil que nos últimos dois anos 1.122 trabalhadores foram libertados em condições análogas à escravidão, sendo que 153 vinham sendo impedidos de deixar os locais onde trabalhavam.

A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Francisco José do Nascimento era filho de Matilde Maria da Conceição e, como é comum no Nordeste, era chamado de Chico da Matilde. Jangadeiro, convivia em Aracati com pescadores e cresceu como espectador do tráfico negreiro no Ceará, primeiro estado onde a escravidão foi abolida, quatro anos antes da lei áurea de Isabel. Chico da Matilde foi um dos líderes do movimento abolicionista e de resistência popular no Ceará. A província do Ceará aboliu a escravidão em 1884 e virou referência nacional. Em razão do pioneirismo, aquele grupo de abolicionistas cearenses, entre eles o líder Chico da Matilde, é convidado ao Rio de Janeiro para conversar com outros abolicionistas sobre a experiência. É nesse encontro que ele recebe o nome de Dragão do Mar. Foi a história do abolicionista nordestino que tem sinônimo de liberdade que a Mangueira levou para a Sapucaí.

Salve os caboclos de julho

Os caboclos de julho representam os soldados esfarrapados, os batalhões de índios usando armas tribais, de negros escravos e libertos, os sertanejos, a população voluntária que se organizou por conta própria em grupos para lutar, e que formaram maior contingente das tropas na luta pela independência da Bahia. O exército popular na província da Bahia foi derrotado pelas tropas portuguesas em 2 de julho de 1824, daí o nome “caboclos de julho”.

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Referência aos militantes de esquerda torturados e centenas até hoje desaparecidos que morreram nos porões da ditadura militar. Heróis de aço que deram a vida pela democracia e pelo Brasil.

Brasil, chegou a vez

É a Mangueira fazendo um chamado, mandando um aviso: é hora de um encontro com a história. Uma história contada por personagens que construíram o verdadeiro Brasil.

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

É hora de ouvir as mulheres que lutaram e lutam diariamente por outro Brasil.
É hora de ouvir Luiza Mahin, personagem histórica na luta contra a escravidão e uma das heroínas da revolta dos Malês, em Salvador.
É hora de ouvir Marielles, mulher, negra, LGBT, feminista e vereadora do Rio de Janeiro executada com tiros na cabeça em 14 de março de 2018.
É hora de ouvir os malês, negros muçulmanos protagonistas de uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da religião católica, em janeiro de 1835. Nessa época, a cidade de Salvador tinha cerca de metade de sua população composta por negros escravos ou libertos, das mais variadas culturas e procedências africanas. A rebelião ficou conhecido como a revolta dos malês.

Em resumo: é hora de ouvir quem escreveu, a suor e sangue, a verdadeira história do Brasil.

Fontes pesquisadas:

Entrevista com Leandro Vieira
Dandara, Zumbi dos Palmares
Confederação dos Cariris
Dandara
Trabalho análogo à escravidão
Dragão do Mar de Aracati
A revolta dos Malês

História pra ninar gente grande, samba completo

https://www.youtube.com/watch?v=JMSBisBYhOE

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

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