O porquê de tributar
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O porquê de tributar

25 de julho de 2020
O porquê de tributar

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Nos debates sobre tributação no Brasil muito se fala da necessidade de tornar o atual sistema mais progressivo, isto é, condicionar a incidência de impostos à capacidade de pagamento dos diferentes contribuintes. Na prática, a predominância de tributos sobre o consumo penaliza as pessoas mais pobres, já que os impostos estão embutidos nos preços das mercadorias e serviços, de tal modo que a cobrança não diferencia o nível de renda do comprador. Assim, um regime mais justo deveria privilegiar renda e propriedade como bases de arrecadação, e evitar que altos rendimentos sejam isentos de taxação.

Outro ponto bastante discutido é o tamanho da carga tributária brasileira, que seria alta na comparação internacional. Na verdade, o país encontra-se em posição intermediária e o peso dos tributos no PIB tem se mantido relativamente estável nas últimas duas décadas, oscilando em torno de 32%, segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente. A questão central é a péssima composição da arrecadação (pautada majoritariamente em impostos indiretos) que drena proporcionalmente mais recursos das classes populares e médias.

Qual é, então, a razão de ser dos tributos e como aperfeiçoar o sistema?

Primeiramente, é preciso estar livre dos mitos que comparam o orçamento público ao doméstico. Por mais estranho que possa parecer, o governo central arrecada impostos depois de gastar, não o contrário. Diferentemente do senso comum (e o atual contexto deixou claro), governos com soberania monetária têm grande flexibilidade para se financiar, sendo suas despesas limitadas basicamente pelas regras que o próprio governo cria e pelo processo legislativo que anualmente resulta na elaboração do orçamento público. O ponto aqui é ser desnecessário que uma grande arrecadação de impostos preceda um grande volume de gastos. Na realidade, ocorre o oposto: a cobrança de impostos drena recursos que o governo anteriormente injetou na economia, ou que foram criados pelos bancos privados (sim, eles também criam moeda) e chancelados pelo Estado como moeda nacional.

A descrição acima tem implicações importantes. Se o governo deixar de focar no equilíbrio orçamentário como o objetivo maior da política econômica (já que na prática ele não funciona como uma família) e passar a perseguir outros objetivos, como crescimento econômico, melhor distribuição de renda e maior nível de emprego, a política fiscal e particularmente a política tributária adquirem um papel completamente distinto. Vejamos.

Ao parar de analisar a tributação exclusivamente pela ótica do financiamento e entendê-la como uma forma de regular o nível de atividade econômica, torna-se fundamental considerar os seus impactos distributivos. Para tanto, temos um exemplo muito próximo do que não fazer: o caso brasileiro. Nosso sistema tributário é uma máquina de reproduzir desigualdades, com pobres pagando mais impostos e classes abastadas beneficiadas por isenções. Ainda que pelo lado do gasto primário (saúde, educação, etc.) exista um efeito redistributivo favorável às classes populares, pois os serviços públicos são uma espécie de salário indireto, quando consideramos as despesas financeiras (pagamento de juros) há uma verdadeira redistribuição de renda às avessas. Recursos são retirados das classes pobres/médias e transferidos aos ricos – um problema histórico no Brasil, temporariamente amenizado pela recente queda da taxa básica de juros para um patamar civilizado.

É importante ter clareza que estamos diante de um problema distributivo, de justiça social, que não implica necessariamente em dificuldade de financiamento do Estado nacional. Além da concentração de renda reforçada por nossa perversa estrutura tributária, há outro efeito colateral: a economia perde demanda (mercado consumidor), uma vez que as camadas sociais mais taxadas são justamente aquelas com maior propensão a gastar, ou seja, a fazer a roda da economia girar. O resultado é um menor nível de PIB e emprego comparado a uma situação onde a tributação fosse mais justa, ampliando a renda disponível dos mais pobres.

Vamos agora a um exemplo mais específico. O Brasil é um dos únicos países do mundo onde lucros e dividendos não são tributados na pessoa física; somente a Estônia possui regime semelhante. Em estudo de 2016 sobre o tema[2], os pesquisadores do IPEA Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair demonstraram que essa isenção torna o Estado brasileiro cúmplice da brutal concentração de renda presente no país. Ainda que se tenha alguma progressividade na taxação da renda do trabalho (prejudicada, diga-se de passagem, pelas faixas e alíquotas da tabela do imposto de renda), o estudo indicou que as isenções sobre a renda do capital violam os princípios da equidade tributária e provocam sérias distorções na distribuição de renda, que, como vimos, repercutem na própria estagnação da economia.

Os dados mais recentes publicados no relatório Grandes Números das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, da Receita Federal, corroboram as conclusões acima. Com referência ao ano de 2018, 31% dos rendimentos declarados foram isentos e não-tributáveis. Contribui decisivamente para esse resultado o fato de as remunerações mais altas apresentarem maior parcela da renda oriunda do capital (lucros, dividendos, heranças, alguns tipos de aplicações financeiras) que do trabalho assalariado, mais tributado. Em outras palavras, quanto mais rico menos imposto se paga em proporção à renda.

Não há dúvidas que o sistema tributário brasileiro precisa ser reformado. Devemos notar, entretanto, que mudanças são necessárias não porque o país enfrenta dificuldades para se financiar. A crise da pandemia vem mostrando que o mesmo país que supostamente estava quebrado agora tem sido capaz de transferir renda para mais de 60 milhões de pessoas até então desassistidas. É, portanto, fundamental uma nova política tributária que seja mais justa e redistributiva, que deixe de reproduzir desigualdades e consequentemente favoreça o crescimento da economia e dos empregos. Simplificar, eliminar impostos cumulativos e repactuar o federalismo fiscal são medidas bem-vindas, mas insuficientes se o caráter regressivo e concentrador de renda do sistema não for atacado.

Resta saber quais forças políticas serão capazes de constituir um Estado que conduza o país a tais mudanças.

Breno Roos é economista, Doutor pela UFRJ. Membro do Grupo de Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) da UFRN.

[2] Gobetti e Orair (2016). Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Texto para Discussão 2190 (IPEA).

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