Monitoramento de conflitos fundiários denuncia violações a direitos humanos em Natal
Natal, RN 27 de abr 2024

Monitoramento de conflitos fundiários denuncia violações a direitos humanos em Natal

22 de junho de 2022
10min
Monitoramento de conflitos fundiários denuncia violações a direitos humanos em Natal

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Registrar e denunciar casos de violação a direitos humanos em contextos de conflitos fundiários. É com este objetivo que o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) e a Campanha Despejo Zero têm realizado missões de investigação em diversas cidades brasileiras. No período de 8 a 10 de junho, foi a vez da capital potiguar receber as visitas e averiguações da quarta missão-denúncia.

Em Natal, os territórios com conflitos e violações estão na área urbana da cidade e em áreas de pesca artesanal. As visitas aconteceram à colônia de pescadores, no bairro das Rocas, e às Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) de Brasília Teimosa, Jacó, Mãe Luiza e Vila de Ponta Negra, e foram realizadas por comitivas com representação de organizações nacionais e locais, movimentos sociais e populares. Uma audiência pública, no dia 10 de junho, marcou o encerramento das atividades, com o objetivo de mobilizar a sociedade civil e visibilizar os casos documentos.

Segundo a coordenadora da missão em Natal, Dulce Bentes, professora do departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a iniciativa culminará no lançamento do Relatório-Denúncia nacional das violações, que reunirá o resultado de todas as missões e será entregue a autoridades dos poderes executivo, legislativo e judiciário em nível nacional, além da relatoria da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo direito à moradia.

A professora lembra que o trabalho no Estado do RN não foi iniciado apenas agora com a integração às missões do FNRU, destacando projetos de pesquisa e extensão da UFRN, como o projeto de extensão em habitação, Habitat e Cidadania, o Projeto Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos, o Fórum Direito à Cidade e o Observatório Metrópoles. “No âmbito da universidade nos colocamos como facilitadores dos movimentos sociais no sentido de oferecer uma estrutura e visibilidade à luta daqueles que a enfrentam no dia a dia”, afirma Dulce.

Bentes destacou ainda o papel colaborador da justiça. “Nós tivemos o apoio, desde o início, da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte, do Ministério Público, que disponibilizaram os processos para que nós pudéssemos também levantar estatísticas desses casos de violações que vêm ocorrendo”.

O foco da ação é dar visibilidade aos casos de conflitos fundiários e chamar à responsabilidade o Estado e demais envolvidos, além de contribuir com a inclusão de assentamentos humanos, apoiando o acesso à justiça para as famílias ameaçadas de despejos.

Violações em números

No Brasil, de acordo com dados da Campanha Despejo Zero, de março de 2020 a agosto de 2021, mais de 19 mil famílias foram removidas. Nesse período, mais de 93.485 famílias estão ameaçadas de despejo em todo o território nacional.

Conflitos fundiários, como despejos e remoções forçadas, em geral, resultam em outras violações de direitos humanos, especialmente o direito à moradia, à não discriminação, à integridade física e à vida. Em contextos mais extremos de violência, o próprio Estado atua como violador em vários casos.

Em Natal, a partir de 2018 registrou-se um aumento expressivo dos conflitos fundiários relacionados ao processo de revisão do Plano Diretor, com destaque para as Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis) e territórios da pesca artesanal em área urbana, além das ameaças de despejo que se sucederam no período da pandemia abrangendo áreas centrais e orla marítima, ocupações e População em Situação de Rua.

Ao mesmo tempo, no interior do RN, agravaram- se os conflitos envolvendo comunidades tradicionais da pesca artesanal, face à pressão imobiliária, bem como aquela provocada pela atividade turística na região, além dos impactos gerados pelas implantações de usinas eólicas no litoral norte do estado. Notadamente nessas áreas, os casos de ameaças de despejo se estenderam ao período da pandemia, registando-se cerca de 1.702 famílias ameaçadas de remoção no RN, segundo dados do monitoramento do Núcleo Natal Observatório das Metrópoles /UFRN e do Núcleo RN Campanha Despejo Zero.

Missão-denúncia em Natal

Na capital do RN, as visitas da Missão-denúncia tiveram início na Colônia de Pesca, no bairro das Rocas, um local simbólico para a cultura da pesca artesanal na cidade. A sede foi construída pelos próprios pescadores e pescadoras depois de receber autorização de uso da área nos anos 1920.

Colônia de Pescadores, no bairro das Rocas | Foto: Vlademir Alexandre

Agora, mais de cem anos depois, a comunidade pesqueira enfrenta a pressão da Prefeitura de Natal pela sua retirada. Para os pescadores e pescadoras, a ação significa retirar por completo a história viva da pesca artesanal da cidade. Eles reivindicam o reconhecimento da sede como patrimônio da comunidade pesqueira da cidade e a revitalização da área.

A área portuária do Canto do Mangue acolhe aproximadamente 800 pescadores em trabalho diário, envolvendo 200 barcos e 40 canoas. Apesar da importância da pesca artesanal, responsável pela segurança alimentar das populações litorâneas, a atividade vem sendo ameaçada pelo processo de uso e ocupação do espaço litorâneo, com a expansão de grandes empreendimentos econômicos, com destaque para a atividade do turismo.

Também foram averiguadas as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) de Brasília Teimosa, Jacó, Mãe Luiza e Vila de Ponta Negra.

Entre as principais ameaças às AEIS estão o processo de regularização fundiária sem transparência, a sobreposição de zonas, com o último Plano Diretor de Natal, a redução do perímetro, e a falta de transparência sobre o plano para essas áreas. Segundo os territórios visitados, a Prefeitura de Natal tem um projeto de cidade que não dialoga com as populações.

Brasília Teimosa

A comunidade Brasília Teimosa está instituída como Área Especial de Interesse Social, desde 1994, embora não tenha ocorrido a regularização fundiária e a regulamentação no âmbito do Plano Diretor de Natal. Assim como as demais AEIS situadas na orla marítima de Natal, a comunidade de Brasília Teimosa vem sendo progressivamente afetada quanto as suas possibilidades de permanência nessa região, tendo em vista a pressão do mercado imobiliário formal combinada com os interesses de “modernização“ da orla marítima pela municipalidade; a subtração de frações de AEIS na última revisão do Plano Diretor de Natal e as ações de regularização fundiária, em curso, que contemplam apenas parte da comunidade, sem que os moradores saibam exatamente porque suas casas estão demarcadas ou não. A ausência de transparência nesse processo constitui um dos problemas vividas pela comunidade nesse processo.

Jacó

A comunidade do Jacó, localizada no bairro das Rocas, próxima da orla marítima, teve início na década de 1960 e foi designada AEIS no Plano Diretor de 1994. No entanto, a área Jacó- Rua do Motor não foi regulamentada. Desde 2018 a comunidade passou a sofrer ameaça de remoção, diante da decisão do poder municipal em inseri-los no Programa Minha Casa Minha Vida como alternativa habitacional, sob justificativa de situação de risco.

Mãe Luíza

Mãe Luiza é uma comunidade que tem registro de ocupação desde os anos 1940, foi formada, em sua maioria, por populações oriundas do interior do Estado, sobretudo nos grandes períodos de seca. Reconhecida como AEIS também desde o Plano Diretor de Natal de 1994.

A Lei de Uso e Ocupação do Solo da AEIS Mãe Luiza (1992-1995) foi pioneira quanto a regulamentação de AEIS em Natal. Com essa conquista, a mobilização da comunidade para defender o direito à moradia e de defesa da AEIS é permanente. A cada Revisão do Plano Diretor de Natal, no entanto, agravam-se as ameaças para desconstrução e/ou flexibilização da Lei que regulamenta a AEIS Mãe Luiza.

Vila de Ponta Negra

A Vila de Ponta Negra, localizada no bairro Ponta Negra, o mais importante cartão postal de Natal, é também uma AEIS ameaçada pelo último Plano Diretor, tendo redução da área na última revisão. A história da Vila começa há mais de 300 anos, com a ocupação da área por pescadores artesanais e mais recentemente, no início do século XX, por agricultores familiares. A segregação socioespacial e gentrificação na região são resultado de diversas intervenções ao longo dos anos e seguem até os dias atuais.

Ponta Negra | Foto: Vlademir Alexandre

Recomendações

A curto prazo, as instituições presentes à audiência pública recomendaram que fosse cessado imediatamente as abordagens violentas, as ameaças e constrangimentos das populações de rua e os despejos; fornecido documentações civis destas populações para que possam acessar os serviços públicos, bem como de estrutura mínima emergencial para a população em situação de rua, como banheiro químico, por exemplo; reestabelecido os valores do aluguel social e auxílio moradia com reajuste que acompanhe a evolução do preço dos aluguéis e da cesta básica; criado canais de diálogo para mediação e solução de conflitos; instituído um Comitê de Regularização Fundiária que envolva os gestores públicos e a representação das Aeis e das áreas que demandam por regularização fundiária como espaço para o diálogo e a orientação das ações normativas, institucionais e dos investimentos nessas áreas; e inserida representação da sociedade civil no Comitê de Conflitos Agrários do Estado.

Além dessas 7 recomendações, a missão indica a necessidade de garantia do direito à terra, à moradia, ao trabalho, à cultura das populações pesqueiras a partir da proteção dos seus territórios, do reconhecimento  das suas tradições e cultura a partir da  demarcação e regularização dos seus territórios com a paralização de todos os processos e projetos que incidam em seus territórios até que os direitos destas populações estejam protegidos e a participação efetiva das populações nos planejamento de toda e qualquer intervenção que incida sobre os territórios pesqueiros; o retorno imediato dos gravames de AEIS que foram suprimidas na revisão do Plano Diretor e gravame de outras áreas direcionadas para a produção de novas unidades habitacionais como terrenos e prédios vazios e subutilizados; e cessar os despejos com a elaboração de um plano de utilização de imóveis vazios em áreas centrais que priorize habitação de interesse social, que realize a identificação de imóveis, estudos de viabilidade e se utilize dos instrumentos da política urbana, como PEUC, IPTU Progressivo e desapropriação e gravame de AEIS  para o efetivo direcionamento destes imóveis para o atendimento das demandas de moradia de interesse social.

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