A última forja
Natal, RN 26 de abr 2024

A última forja

17 de julho de 2022
8min
A última forja

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Sentado num pequeno tamborete próximo à porta de sua oficina, apoiava o queixo nas mãos e olhava para a marreta deitada em cima da bigorna, como se estivesse dormindo ou descansando. Mas a verdade é que já fazia alguns dias que elas estavam lá e ele não tinha porque mudar aquele estado de sossego. Pensava o quanto a primeira tinha castigado a segunda e imaginava que agora, as duas, naquele repouso letárgico, faziam as pazes e não tinham que brigar diariamente.

A marreta, pensava ele, já não aguentava bater tanto, e a bigorna apanhar sem descanso. A partir de então iria curar as marcas das pancadas esperando a ferrugem encobri-las. Apesar de quase surdo, ouvia com a imaginação e muita nitidez o teim-teim que a contenda entre as duas provocava. Podia mesmo ver as faíscas saltando a cada marretada, e os cascalhos flamejantes caindo ao pé da bigorna, apagando-se para compor ao longo do tempo restolhos que, de vez em quando, ele recolhia e jogava fora. Assim também imaginava a forja. Há dias que não acendia o fogo. As cinzas estavam lá para dizer o que tinha sido o último castigo do barro pelo fogo. A forja vivia, há muito, uma vida fria e o fole de couro e madeira que alimentava as chamas e amolecia o ferro parou um pouco e poderia, enfim, descansar também daquele estica-encolhe diário, como se tivesse os pulmões em permanente esforço. Olhava os tenazes empilhados num canto da mesa da forja e os imaginava em um sono restaurador do qual talvez nunca mais saíssem. O cheiro do ferro impregnava o ambiente e era o alimento que ainda o motivava a ir para a oficina, além da esperança de que, por aquela porta onde ele experimentava os ferros de marcar gado, entrasse um agricultor conhecido seu com uma chibanca para calçar, uma alavanca, uma picareta, uma enxada para bater, até mesmo para encomendar um par de armador de rede... Já fazia muito tempo que vinha à oficina apenas porque isso era parte de sua vida diária e também porque tornara-se um ritual do qual não imaginava abandonar. Até bem pouco o movimento era frenético, todos os dias, com mais intensidade aos sábados, quando os agricultores vinham à feira e traziam suas ferramentas para apontar. Nesses dias a oficina era uma festa. Muitos dos seus clientes tornaram-se amigos e ficavam na oficina não apenas para deixarem seus troços, mas sentavam, pitavam seus brejeiros e conversavam, antes de se dirigirem à feira para retornarem depois e recolherem os ferros que deixavam de manhã. Sentiu saudades desse tempo, olhou em volta de si e viu, calados, a forja, a marreta a bigorna, os tenazes, o esmeril, a bancada, o torno, o tanque para a têmpera com óleo queimado em repouso, a colher de mexer as brasas... Não sabia mais quando ou se ainda teria aquela alegria de entregar uma foice renovada e ver nos olhos do amigo a satisfação de retornar para casa com seu artefato tinindo. Podia mesmo ouvir os rumores das vozes dos homens simples, intercalados pelo fog-fog do fole e da forja ou pelo teim-teim da marreta na bigorna, trazendo notícias de outros amigos, do inverno ou da seca e ele, concentrado, de dentes trincados, tronco nu meio curvado sobre a bigorna, balançando o braço musculoso para levantar e baixar a marreta, molhado de suor, respondia monossilábico, às vezes sem nem mesmo ter ouvido direito o que o outro falara. Agora não, havia muito que ninguém entrava mais na oficina com um trabalho. Dias antes, ainda manteve aceso o fogo e fez uma ou outra ferramenta que ficou encostada sem nenhuma utilidade. Fazia isso porque não queria parar de ser ferreiro, não perdia a esperança de que ainda voltasse aos tempos de intensa atividade. Mas logo caía em si e, sem praguejar, desdenhava do progresso que o levara a aquele estado. Ninguém mais arava com capinadeiras, agora era o trator que revirava a terra, moldava os leirões, e essa mesma máquina removia hercúlea os troncos das árvores cortadas nas limpas, dispensando o uso das chibancas e das picaretas, ninguém mais precisava dessas ferramentas. Aliás, poucos agora plantavam. A maioria acostumara-se à mercearia ou ao supermercado e comprava o que antes produzia nos escassos invernos. Enfim, resignara-se com essa realidade e estava conformado com a falta do trabalho que fora sua vida até ali. Sessenta anos acordando diariamente às quatro horas, passando um café, aguando as plantas de casa e indo para a oficina. Sem descanso, todos os dias acendia a forja, empunhava a marreta e desmanchava-se em suor até o final do dia, quando, por fim, fechava a oficina e retornava para casa com o apurado que garantiria o alimento da família. Deixava na oficina fechada, dormindo, a marreta cansada, a bigorna dolorida, a forja ainda quente, o fole respirando suave e, assim, os encontrava no dia seguinte, para recomeçar tudo novamente. Um moto contínuo. Agora respirava baixinho e solfejava um hino. Mudava de posição, prendia os joelhos com as mãos entrelaçadas, mirava a rua vazia e aguardava solene a hora de voltar para o almoço e retornar à tarde, onde ficaria à espera de que alguma coisa mudasse. Estava ficando velho, tinha a vista curta, turvada pela catarata que insistia em não remover por não crer na medicina “ninguém mexe nos meus olhos”. Estava quase mouco, mas também se recusava a usar o aparelho para surdez. “Eu lá vou usar essa bosta!”. A única coisa que o entristecia era a possibilidade de deixar a oficina, o lugar no qual empenhara toda sua vitalidade, e de onde tirara o sustento de todos os filhos, o que lhe motivava para a vida e lhe permitia exercer a sua condição de artista, o espaço sagrado de sua existência, o templo inviolável no qual deleitava-se e rendia ao ferro e ao fogo sua homenagem diária. Agora, ali, imaginava que talvez estivesse na hora de parar. Há tempos que a oficina não era mais produtiva e tornara-se mesmo mais um espaço de ócio e meditação. Começava a não ver mais sentido naquela teimosia cotidiana, apagava-se lentamente a chama interior que o impulsionava a acender o fogo que derretia o ferro. Pensou nisso precavendo-se de amolecer para não chorar ao deixar de ver sentido na vida sem a sua oficina aberta. Convencia-se, aos poucos, de que assim como o ciclo do fogo e do ferro que fora sua ascese diária, havia também um ciclo de vida e trabalho que em algum momento toparia num final. Concluiu que não havia mais porque insistir naquela luta contra o que estava posto pela natureza, pelo rumo da vida e, sem nenhuma hesitação, decidiu, por fim, cessar sua jornada. Era fim de tarde.

Levantou-se, olhou em volta e deteve-se rapidamente em cada um dos elementos que compunham a oficina: a bancada, a bigorna e a marreta, as outras maretas ao pé da bigorna, o esmeril, a forja, o fole, o braço de puxar o fole, os tenazes, a pilha de carvão no canto do salão, o tanque de óleo queimado, os restos de ferros, as limalhas frias, uma foice que fizera pensando em vender, as limas, as tarraxas, as brocas, a furadeira, o torno... Respirou longa e profundamente de olhos fechados e pode sentir o cheiro de ferro e carvão que inundava o salão. Abriu os olhos e decidiu acender a forja pela última vez. Limpou-a das cinzas, pôs carvão novo, acendeu-a, puxou o fole ouvindo o estalo do carvão queimando e vendo as faíscas subindo, consolidou o fogo, pegou um pedaço de ferro qualquer, levou-o ao fogo, cobriu-o com as brasas, deixou-o avermelhado, no ponto de forja, pegou o tenaz, prendeu o ferro e o levou à bigorna. Empunhou a marreta e deu uma marretada.

Parou, soltou o ferro na bigorna e de seus olhos uma lágrima caiu e ferveu, emitindo um suave chiado ao bater no ferro em brasa. Olhou para o fogo longamente observando escurecer o que antes eram brasas chamejantes. Deu meia volta, dirigiu-se à porta, saiu, fechou-a. Lá dentro, ainda quentes, a forja, a marreta, o pedaço de ferro e a bigorna voltaram a um longo descanso.

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