O espírito natalino e o sentido jurídico da solidariedade
Natal, RN 26 de abr 2024

O espírito natalino e o sentido jurídico da solidariedade

25 de dezembro de 2022
7min
O espírito natalino e o sentido jurídico da solidariedade

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Por Lázaro Amaro*

Desenvolve-se aqui um tema que orbita a semântica de expressões como “espírito natalino” e “espírito solidário”, e a compreensão transdisciplinar do significado jurídico da solidariedade.

A orientação posta como transdisciplinar já se materializa quando nos movimentamos como observadores de uma celebração de cunho religioso, objetivando relacioná-la ao direito, dois universos que possuem conexão histórica arraigada, tendo os ritos religiosos sido a fonte primordial dos ritos processuais.

Adentra-se aqui o mínimo possível a história e as narrativas bíblicas, não por desvio, mas para que se concentrem esforços no reconhecer que o "espírito natalino” está socialmente identificado com o “espírito de solidariedade”, apesar de predominarem os motivos, alegorias e músicas em louvor do “pai que dá presentes às pessoas que ele julga que merecem”, o Senhor Noel. Afinal, ninguém leva as crianças ao shopping para fazerem fotos com representações do Jesus nascido.

Por outro lado, parece necessária a atenção ao fato de que essa celebração, pelos fiéis, do nascimento de um Deus não possui correspondência lógica com o sentimento de consternação que arrebata a maioria das almas, durante o período do Natal, nesse pedaço de ocidente judaico-cristão.

É que o nascimento de Jesus não é conhecido como uma curta notícia de que “a criança nasceu”, senão como a narrativa que inclui uma gravidez fora do casamento, numa sociedade patriarcal por essência, a fuga da grávida com seu marido para outro país, para salvar a vida do bebê, que ainda não havia nascido e já se encontrava ameaçado de morte, e, ao final, um parto que se realiza em um estábulo, para listar apenas alguns elementos que traduzem uma realidade de sofrimento e de tribulação.

A própria formação da mentalidade brasileira está marcada por essa narrativa, desde a infância, e os presépios, enquanto representação do momento logo depois do nascimento, estão postos nos mais variados lugares do país, nesse período específico, embora se denuncie que a situação social daquela narrativa se repita na própria realidade, o ano inteiro, e em muitos lugares, pelo infeliz crescimento da pobreza. Fato é que não se soltam fogos no Natal. É momento de confraternização, que tem a ver com fraternidade, reunião das famílias e amigos.

De tal arte, no Brasil, predomina o sentido de caridade para a palavra “solidariedade”, a ponto de haver tradução bíblica que exibe a palavra “caridade” em textos onde, em outras traduções, aparece a palavra “amor”, de que é exemplo a Primeira Carta aos Coríntios, em que Paulo hierarquiza as virtudes , fixando o amor como valor maior.

O sentido jurídico da solidariedade, embora esteja identificado com o amor, não se satisfaz com a ideia de caridade, de ato voluntário de ajuda a outras pessoas, sem, contudo, excluir essa significação.

Em direito, a solidariedade decorre do princípio da dignidade humana, um dos pilares do estado democrático de direito e possui o caráter jurídico de dever e de responsabilidade.

Como se trata de uma semântica pouco socializada, apresentam-se um caso e uma hipótese, no afã de promover um entendimento geral básico.

O caso deu-se na cidade francesa de Morsang-sur-Orge, onde uma casa noturna mantinha, entre as “diversões” que oferecia a seus frequentadores, um chamado concurso de “arremesso de anão”, jogo em que as pessoas disputavam classificação para saber quem atirava mais longe um pequeno homem.
Mesmo tendo o dito homem declarado oficialmente que aceitava ser objeto daquela “brincadeira”, a Prefeitura da cidade e, depois, o Conselho de Estado francês proibiram a prática, por ser atentatória à dignidade humana.

O caso chegou à Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a qual asseverou que o banimento do arremesso não era abusivo, e sim necessário para manter a ordem pública, fundamentando o entendimento no respeito à dignidade humana, considerada irrenunciável.

Esse é o sentido inafastável para a solidariedade posta como fundamento da República Federativa do Brasil.

Com efeito, a Constituição Federal também estabelece que “constituem objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A construção dessa sociedade está projetada constitucionalmente como social-democracia, conjugando-se a iniciativa privada com a função social da propriedade. Isso significa que podem existir ricos, mas não podem existir pobres. A pessoa que prega que isso não é possível, no Brasil, está cultivando a falta de solidariedade, ou, usando um termo conhecido da cultura judaico-cristã, está semeando a iniquidade, isto é, a falta de equidade.

Ser solidário é jamais aceitar, por exemplo, pagar um preço vil por um serviço. No mundo da injustiça e das desigualdades, há quem se sujeite a trabalhar em troca meramente de comida. Isso é insuportável, dentro do estado democrático de direito e sob qualquer perspectiva minimamente humanitária.

Solidariedade é também dar comida a quem precisa, se você pode, sem esperar nada em troca. E, se você não pode garantir a alimentação dos necessitados, seu dever passa a ser de busca por condições que garantam a satisfação daquelas necessidades, para a própria sobrevivência das pessoas.

Se o dispêndio de recursos para isso é muito para uma pessoa, deve-se garantir que o estado se torne a pessoa com essas condições, mesmo sendo capitalista a sociedade e principalmente por essa causa, porque, sob o sentido constitucional de solidariedade, se toda pessoa tem o dever de proteger a dignidade das demais, o estado detém a maior porção desse dever.

É esse significado de solidariedade, aliás, que orienta a regra de trânsito que obriga os motoristas a pararem diante da faixa de pedestres e que determina que o motorista do caminhão seja responsável por cuidar do carro de passeio e demais veículos menores, que o motorista do carro de passeio seja responsável por cuidar das motocicletas, bicicletas e pedestres, e assim por diante, todos sendo, ao final, responsáveis por cuidarem uns dos outros, dos que possuem mais condições até os que possuem menos.

É esse sentido de solidariedade que justifica a afirmação do Artigo 226 da CF de que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do estado”. Esse o sentido que permeia todo o arcabouço constitucional e o ordenamento jurídico, como um todo.

Considerando o enorme abismo existente entre o conteúdo da Constituição e a realidade cultural brasileira, em especial quanto ao direito, é oportuno trazer a seguinte hipótese, como prometido, para fins didáticos: se pessoas são vítimas de uma catástrofe e se encontram em tal situação que somente sobreviverão se receberem ajuda de seus piores inimigos, como quererão que esses inimigos ajam e se conduzam em relação a sua situação? Vão aceitar que seus inimigos lhe ajudem? E se fosse o contrário? Ajudar os inimigos e ser ajudado por eles diz respeito a aceitação da dignidade e, portanto, da solidariedade como valores supremos. Está de acordo com o Evangelho do Cristo, está de acordo com a filosofia humanista, está de acordo com o estado democrático de direito, está de acordo com a Constituição Federal.

Por essas razões, são deixados aqui votos para que o espírito natalino continue a ser identificado como espírito de solidariedade, e que a solidariedade seja cada vez mais compreendida no sentido insculpido na Constituição Federal, e que esse espírito seja alimentado todos os dias do ano, pela vida inteira, o que é, inclusive, muito mais conforme o que pregou Jesus, Deus que se fez humano por amor, por vida digna para os pobres, pelas vidas de todas as pessoas, até dos inimigos. Que a solidariedade torne-se um dever desejado por todas as pessoas.

Lázaro Amaro é advogado*

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