Advogada que escreveu cartas na ditadura vira elo para irmã de vítima
Natal, RN 19 de mai 2024

Advogada que escreveu cartas na ditadura vira elo para irmã de vítima

26 de agosto de 2023
6min
Advogada que escreveu cartas na ditadura vira elo para irmã de vítima

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Eloá do Carmo Guimarães tinha 22 anos de idade quando foi arrancada da casa onde estava hospedada em Recife, por volta das 23h30. Era agosto de 1969 e o país vivia sob a violência de 11 atos institucionais baixados entre 1964 e aquele mês. O AI-11 ampliava o ambiente de terror no país. A medida acabava com a Justiça de Paz eletiva e criava regras mais rígidas para as eleições municipais.

Naquela noite, militares armados levaram a estudante para a sede da secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, localizada na rua da Aurora. Eloá cursava, na época, faculdade de Teatro e de Sociologia na Universidade Brasil, no Rio de Janeiro. E noves fora a participação em passeatas de rua e plenárias abertas do movimento estudantil, de acordo com a família, não tinha ligação com partidos clandestinos nem com grupos de esquerda, taxados de "subversivos" pelos milicos.

Em agosto de 1969, ela desembarcou em Recife para visitar uma amiga de infância, que voltara há poucos dias para o Brasil vinda de Londres.

A família acredita que um homem a quem o pai de Eloá pediu para ela procurar em Recife se precisasse de algum dinheiro foi o autor da falsa denúncia contra a jovem, mas a suspeita nunca foi investigada a fundo.

O caso do sequestro, prisão e tortura de Eloá Guimarães era desconhecido até agora.

Natural de Leopoldina (MG), era a quarta de uma família de seis irmãos. Na capital pernambucana, a estudante foi vítima de tortura psicológica durante mais de 30 dias na prisão e só foi libertada após o pai dela receber uma carta de um carcereiro que a conheceu na cadeia. Eloá carregou durante longos anos sequelas daquele período, o que incluiu três tentativas de suicídio e acompanhamento médico até a morte, em 2001.

Por mais de 50 anos, Elizabeth, hoje com 80 anos de idade, vem lutando para que o Estado brasileiro reconheça a irmã como vítima da ditadura militar. Nesse percurso, algumas tentativas e muitas frustrações.

- No final dos anos 1990 eu sabia que minha irmã tinha uma necessidade imensa de ser reconhecida como vítima da ditadura. Foram 30 anos de sofrimento”, disse por telefone.

Elizabeth Guimarães quer que o Estado brasileiro reconheça sua irmã como vítima inocente da ditadura militar / foto: reprodução

Mércia Albuquerque, o elo perdido

No entanto, um projeto idealizado pelo diretor do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte Roberto Monte devolveu esperanças à família Guimarães.

Monte vem divulgando há algumas semanas o lançamento, em dois volumes, dos diários de Mércia Albuquerque, advogada pernambucana que defendeu mais de 500 presos políticos nordestinos.

Os escritos foram reunidos após o material chegar às mãos do ativista potiguar doados pela família da advogada. O lançamento dos livros acontece nesta segunda-feira (28), a partir das 18h30, na Universidade Católica (Unicap), durante a programação do 8º Encontro de Comitês e Comissões Norte-Nordeste por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.

Na ocasião, Monte também vai lançar um memorial online dos presos políticos nordestinos, outro desdobramento dos diários da advogada.

Elizabeth Guimarães mora no Canadá e virá a Recife especialmente para o evento e também para pedir oficialmente, ao representante do Ministério dos Direitos Humanos Nilmário Miranda, que o Estado brasileiro reconheça a irmã como vítima da ditadura no Brasil.

- É a minha esperança e agora eu quero conversar com ele sobre a possibilidade de um reconhecimento... de que a minha irmã foi uma vítima inocente”, disse.

Afeto na cadeia

Mércia Albuquerque não chegou a assumir o caso Eloá, mas o encontro entre as duas marcou a vida da estudante. Elizabeth lembra do relato da irmã sobre uma mulher, de nome Mércia, que esteve com ela dentro da cela. Foram poucos minutos, mas marcados por uma generosa demonstração de afeto, carinho e solidariedade:

- Mércia foi a única pessoa que Eloá conseguia lembrar o nome, por causa do carinho que recebeu. É como se fosse a presença de um único ser humano ali perto, no meio de tanta selvageria. Ela não contou o que conversaram, mas se lembrava do nome da Mércia. E eu nem sabia que a Mércia existia, podia ser algo da cabeça de Eloá”, conta.

Como a única pista era o nome da advogada, mesmo que não soubesse de quem se tratava, Elizabeth recorreu várias vezes ao Google para tentar encontrar algo a mais. Há algumas semanas, assistindo a TV Brasil 247, ela viu o escritor pernambucano Urariano Mota fazer referência a uma mulher chamada Mércia Albuquerque.

E assim que Roberto Monte começou a divulgar o lançamento dos diários de Mércia, destacando a defesa de presos políticos na ditadura, ela teve certeza que era a mesma pessoa de quem Eloá se lembrava na prisão.

- Vi a notícia dos diários, mandei uma mensagem para o Roberto e ele me respondeu rápido. E na lista de presos que ele me mandou, é mencionada a prisão de Eloá para averiguações. Agora eu tenho esperanças de conseguir esse reconhecimento do governo brasileiro”, concluiu.

Assista a entrevista de Elizabeth Guimarães realizada por Roberto Monte na Pós-TV DHNet:

https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=kU-E-pT1PEw&ab_channel=P%C3%B3sTVDHnetDireitosHumanos
Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.